A situação
delicada da presidente Dilma,
que tem menos de 10% de aprovação popular e corre o risco de ter as
contas de seu governo rejeitadas pelo Congresso, é o ponto de partida
para
Le Monde Diplomatique analisar o papel da Câmara dos Deputados na atual crise política brasileira.
A
destituição da chefe de Estado
por "crime de responsabilidade", como defende a oposição, não pode
avançar sem o "aval de um parlamento cada vez mais rebelde" em relação à
autoridade da presidente, afirma o jornal, que escolheu como título da
reportagem "Trezentos ladrões com título de doutores".
A frase faz referência ao trecho da música do grupo Paralamas do
Sucesso, que parodiou uma declaração do ex-presidente Lula, em 1993, de
que a Câmara era controlada por uma maioria de "300 picaretas".
Depois
de eleito presidente em 2002, Lula aprendeu a elogiar quem tanto ele
havia recriminado, observa a autora do texto, Lamia Oualalou.
Controle do poder
Le Monde Diplomatique lembra que o Congresso brasileiro,
criado em 1824, após a independência do país, conta atualmente com 513
deputados e 81 senadores e se "caracteriza por uma fraca
representatividade popular. Sua principal virtude? Permitir às elites
perpetuarem sua influência sobre o poder", escreve.
Recorrendo ao trabalho executado pelo site Congresso em Foco, Le Monde Diplomatique
lembra que desde a declaração de Lula, o perfil típico dos deputados
não mudou: é "um homem branco, de cerca de 50 anos de idade, titular de
um diploma universitário e com patrimônio superior a R$ 1 milhão".
Outro dado relevante desse perfil não esquecido pela publicação
francesa: em 2008, um estudo indicou que 271 deputados estão ligados
direta ou indiretamente a alguma empresa de comunicação.
"O sistema político perpetua um fosso entre a população e seus eleitos", diz o texto. Em tom pedagógico, Le Monde Diplomatique
compara o Congresso brasileiro ao americano, observando que a votação
proporcional ao número de habitantes, mas com a obrigação de um número
mínimo de representantes por estado, cria distorções que só favorecem os
"caciques locais" da política, que "se impõem aos partidos e impedem a
renovação da classe política".
Além de contornos ideológicos pouco claros, os políticos mudam de
etiqueta partidária em função de interesses próprios, mesmo após a
reforma adotada em 2007 para limitar essa prática, ressalta o texto.
Tiririca “puxador de votos”
Outro aspecto singular do processo eleitoral para o Congresso é o
sistema de "quociente eleitoral". Com esse método, em que o voto a um
candidato pode beneficiar outro da mesma sigla, o eleitor pode dar
mandato a um político que defende os direitos humanos e acabar, sem
querer, garantindo também uma cadeira a um homofóbico e militante pela
expulsão de trabalhadores sem terra.
"Tal sistema incita os partidos a atrair personalidades e líderes
carismáticos, os chamados puxadores de votos", explica. O melhor exemplo
escolhido pelo Le Monde Diplomatique foi o conhecido "palhaço"
Tiririca, eleito deputado federal em 2010, mesmo sem ter nenhuma
experiência política. Ao receber 1,3 milhão de votos, ele permitiu que
seu partido elegesse outros 24 deputados, que não conseguiriam sozinhos
votos suficientes para entrar no Congresso.
Esse sistema também adora personalidades esportivas, pastores
evangélicos e herdeiros políticos, afirma. Citando a radiografia do
Congresso feita pelo Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar (DIAP), o jornal informa que nada menos que 211
parlamentares devem suas eleições às ligações com algum parente.
“Marqueteiros” políticos entre os mais caros do mundo
A reportagem destaca ainda os preços exorbitantes das campanhas
eleitorais em um país com dimensões continentais. A eleição de cada
deputado custa R$ 6,4 milhões ao partido, um aumento de 283% em 12 anos.
Os custos incluem despesas com deslocamentos até spots publicitários,
passando pelo pagamento dos marqueteiros eleitorais, cujos preços estão
entre os mais altos do mundo.
Mas os valores são bem maiores porque os partidos usam "caixa 2",
para os financiamentos ocultos. A prática favorece a corrupção, como
ficou evidente no caso da Petrobras, exemplifica a jornalista Oualalou.
O financiamento de campanhas pelas empresas foi suspenso pela primeira
vez pelo Supremo Tribunal Federal, mas "nada garante que não será
rapidamente retomado", diz.
"Presidencialismo de coalizão"
Le Monde Diplomatique também explica como a multiplicação de
partidos no Congresso, 28 no total, dificulta a vida de um
governo. Mesmo quando o partido tem o maior número de deputados, não
consegue maioria na casa e é obrigado a fazer alianças para governar.
A prática leva a uma situação em que as negociações com aliados são
permanentes para manter apoio até o final do mandato. O escândalo do
Mensalão, descoberto em 2005, durante o governo do ex-presidente Lula, é
a melhor ilustração da dificuldade em manter uma base de apoio
majoritária. É o que o jornal chama de "presidencialismo de coalizão".
Le Monde Diplomatique explica também a conturbada relação
entre os poderes executivo e legislativo, envolvendo desde a
distribuição de cargos no governo até a aprovação de ações como a
construção de casas e pontes.
Em entrevista ao semanário francês, o cientista político Paulo Peres,
da UFRGS, explica como é tentador para os partidos políticos se
aproximarem do governo, mas, por outro lado, essa relação vira uma
armadilha quando se trata de negociar com um governo fraco e com falta
de carisma. Neste caso, lembra o especialista, os "aliados" passam a
exigir mais cargos e verbas. É o que acontece com a presidente Dilma
Rousseff, afirma o jornal.
PMDB, partido sem linha política
Ao insistir nas posições ideológicas "opacas" de muitos políticos, Le Monde Diplomatique
argumenta que elas são tão fortes que provocam distensões no interior
de um mesmo partido. É o caso do PMDB, uma legenda "sem linha política".
A presidente deu vários cargos à legenda na esperança de frear o
processo de impeachment no Congresso, mas ela só contentou a uma ala do
partido. Outros líderes continuam a exigir sua saída do cargo e querem
deixar a base de apoio do governo para não serem prejudicados nas
próximas eleições.
Em entrevista ao jornal, o cientista político Stéphane Monclaire, da
Universidade Sorbonne, explica que os grupos parlamentares "não são
homegêneos" e os deputados, que deveriam seguir a orientação de seus
líderes, podem obedecer a outros políticos de fora do Congresso, como
prefeitos e governadores.
Ao "ignorar a engrenagem do sistema", Dilma Rousseff permitiu a Eduardo Cunha
"deitar e rolar" no primeiro ano de seu mandato, afirma o jornal, dizendo ter sido um "erro" da presidente tentar impedir sua eleição para a presidência do Congresso.
Bancada do “Cunha”
Le Monde Diplomatique explica como Cunha, que tem o poder de
decidir sobre a agenda do Congresso, ampliou seus poderes sobre os
deputados e conseguiu aprovar projetos de lei extremamente
conservadores, como a redução dos direitos dos trabalhadores e a mudança
da maioridade penal para 16 anos.
O jornal explica também como deputados se unem e formam as bancadas,
que atuam de acordo com temas de interesse comum. Entre os exemplos
citados estão as bancadas do agronegócio, das empresas e até dos
evangélicos. Mas esses grupos perderam um pouco de seus poderes depois
da ratificação da "fidelidade partidária", explica. Só em casos
excepcionais os deputados podem votar contra a orientação de suas
lideranças, afirma.
Ao analisar o cenário político, o professor Monclaire afirma que as
tensões existentes entre o Congresso e o Planalto acontecem
principalmente pelas disputas internas do PMDB com vistas à próxima
campanha eleitoral. Sem contar com o apoio dos movimentos sociais, a
presidente Dilma se encontra em uma situação delicada e seu partido, o
PT, parece estar "imobilizado" por pertencer a esse governo, que corre o
risco de ser o mais reacionário da história, afirma o cientista
político da Sorbonne.
Le Monde Diplomatique encerra o artigo comentando que nem no
auge de sua popularidade, quando tinha 85% de aprovação, o
ex-presidente Lula não teve disposição de enfrentar o Congresso e propor
uma reforma política.