Um total de R$ 2,9 bilhões recuperados. Junto a R$ 2,4 bilhões em bens apreendidos ou bloqueados.
Outros R$ 21,8 bilhões que podem voltar aos cofres públicos. Mais US$ 800 milhões bloqueados apenas na
Suíça.
Junto a R$ 659 milhões repatriados. Mais de 40 ações penais contra mais 180 pessoas.
São só alguns números, mas eles não deixam dúvidas: ao completar dois anos neste mês, a
Operação Lava Jato já é um marco na história do Brasil e também do mundo quando o assunto é o combate à corrupção.
Entre as quase 70 pessoas condenadas – boa parte delas já atrás das
grades – constam doleiros, funcionários públicos e empresários.
De uma investigação que começou em razão de um carro importante dado de presente a um executivo poderoso da
Petrobras, passando por um posto de gasolina em
Brasília
(DF) no qual encontros resultavam em entregas de grandes somas de
dinheiro, agora a Lava Jato se vê diante da central nevrálgica do
escândalo: a política.
Um acirramento político e social que já era evidente em 2014, durante as
eleições presidenciais, só se acirrou nos últimos meses.
Não que a Lava Jato seja causa, porém ela agora entra em um campo
recheado não só de corrupção que parece sistemática e multipartidária,
mas também de interesses que os seus protagonistas tentarão manobrar.
“Vamos trabalhar com tranquilidade, com equilíbrio. Quem tiver de pagar
vai pagar”, sentenciou há um ano o procurador-geral da República,
Rodrigo Janot. Doze meses depois, o discurso não mudou.
“A pauta política não pode contaminar a pauta jurídica (...). Ninguém
está acima ou abaixo da lei”, emendou, em entrevista a jornalistas na
Suíça.
Dividido na política e na sociedade, o País e, por consequência, a Lava
Jato enfrentam o desafio de avançar em meio ao que parece ser um ‘mar de
lama’ dos conchavos entre as grandes empreiteiras nacionais e os
interesses de políticos – alguns implicados na própria operação. Como
esperado, não há consenso até aqui sobre o quão limpo o Brasil pode
ficar.
"É preciso investigar a todos"
O fim do sigilo de grampos telefônicos solicitados pela Justiça, na
figura do juiz federal Sérgio Moro, teve significativo impacto político e
social, seja aos que clamam pelo impeachment da presidente Dilma
Rousseff (PT), seja entre os que falam em ‘golpe’ contra o governo
federal e em criminalização de Lula e do Partido dos Trabalhadores.
Não ao acaso, os recentes atos pelo País – os verdes e amarelos pedindo a
queda de Dilma, os vermelhos defendendo a causa petista e a democracia –
ressoam no Judiciário e no ambiente acadêmico do País.
Embora o PP seja o partido mais implicado em número de parlamentares na
Lava Jato, a operação estaria perseguindo com ênfase os petistas,
‘blindando’ os demais.
“Acho que lideranças políticas estão apostando em radicalizações. A Lava
Jato escolheu uma formatação muito comum para investigar, atacando
ramos da investigação em determinado momento. Você não consegue abarcar
tudo que é investigado em determinado momento. Tudo vem sendo apurado e,
direi ponderadamente, é absolutamente normal que, após uma coalizão de
13 anos no poder, uma investigação se concentre sobre os seus
políticos”, avalia o presidente da Associação Nacional dos Procuradores
da República (ANPR), José Robalinho Cavalcanti.
Tatiana Vaz/Exame.com
Protesto na Avenida Paulista, em São Paulo, em 17/03
Entidade que apoia os trabalhos e a conduta de Moro, a ANPR e o seu
presidente não acreditam em uma tese que vem sendo muito recorrente,
sobretudo entre os partidários do governo: de que a Lava Jato, uma vez
que Dilma deixe a Presidência da República – uma possibilidade real,
dado o processo em andamento e sua fragilidade política –, irá
arrefecer, beneficiando outros parlamentares também investigados.
“Com todo o respeito, achar isso, que só se investiga o PT, não é
verdade. É preciso investigar a todos. Veja que houve uma investigação
contra o Aécio Neves [senador e presidente do PSDB] e ela foi arquivada,
o que não impede que ele volte a ser investigado. O PP e o PMDB estão
até mais envolvidos do que o PT. O procurador Rodrigo Janot já disse que
tudo será apurado. Não vejo nenhum viés político no trabalho da
Força-Tarefa. É um trabalho extremamente responsável”, diz Cavalcanti.
Outro a refutar qualquer seletividade é o presidente da Associação dos
Juízes Federais (Ajufe) , Antônio César Bochenek . Figura de relativa
proximidade com Moro, ele vê com maior preocupação uma eventual
interferência no trabalho da Políc ia Federal que possa dificultar a
Lava Jato, e assegura que o Judiciário quer é a liberdade para
investigar, dentro dos limites constitucionais, deliberando em cima dos
autos, e não sob ideologias ou crenças.
“Repito que os juízes estão preparados e irão julgar em cima do que a PF
e o Ministério Público trouxerem. Não há seletividade ou preferência
por esse ou aquele. Qualquer obstrução hoje é que não seria republicana,
e o Judiciário tem feito o seu papel. Qualquer modificação deve ser
feita pelo processo judicial, o sistema permite recursos e eles podem
modificar entendimentos e decisões. Há falhas e decisões que podem ser
reformadas”, avalia.
Para o doutor em Direito pela Universidade Mackenzie e presidente
do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra, não há nenhuma
contaminação política nos trabalhos da Lava Jato.
O que há, segundo ele, é a constatação de que “o partido do governo é o
maior beneficiário do esquema de corrupção” apurado pela investigação, e
que a parte política ficará exclusivamente a cargo do Congresso, a
começar pela Câmara, que deve votar até a terceira semana de abril o
relatório que aceita ou rejeita o pedido de impeachment de Dilma.
“O que pode haver, caso o impeachment aconteça, é uma diminuição da
pressão popular, uma vez que o vice-presidente Michel Temer seria
nomeado o substituto. Mas com isso eu acredito que, em maior ou menor
grau, as manifestações continuarão. O impeachment é um julgamento
político que depende da temperatura da nação, que hoje está elevada.
Juridicamente, a questão seguirá sendo apurada. Estamos longe do fim”,
explica.
Para o secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castelo Branco, o
pior que poderia acontecer para o País seria um ‘acordão’ para blindar
políticos. Contudo, ele também é outro a acreditar na autonomia dos
investigadores.
“Ainda que esse governo seja substituído, a Lava Jato vai continuar. Há
um compromisso para isso de todos os que investigam esse escândalo. Não
creio em arrefecimento. Parte da sociedade não tem ‘corruptos de
estimação’, ‘bandidos de estimação’. Há uma cobrança generalizada contra
os políticos, como demonstraram as recentes manifestações. Pau que bata
em Chico bate em Cunha, Renan, Aécio,Fernando Henrique Cardoso... em
todos que, comprovadamente, tenham infringido a lei.”
"Há um risco real de acordo para blindar políticos"
Nem todos, porém, acreditam que a Lava Jato esteja imune a problemas e
pressões. Na análise de Bruno Brandão , representante no Brasil da
Transparência Internaci onal (TI) , uma investigação que apura a
participação de mais de 60 políticos em um amplo esquema de corrupção
sempre “é um momento prolífico de ‘acordões’”, e há um risco real de que
um esteja sendo articulado nos bastidores.
“Esta é talvez a única esperança de impunidade de vários dos que estão na mira da operação”, afirma.
Todavia, ele alerta que o êxito político sobre a investigação da Lava
Jato é fruto da união entre Polícia Federal, Procuradoria-Geral da
República (PGR),Ministério Público Federal (MPF), e o Judiciário – salvo
a PF, as demais possuem autonomia suficiente para escapar de influência
política.
“Com uma operação envolvendo tantos atores, poderes e interesses
conflitantes, além do escrutínio da imprensa e da população, é bastante
complexa a tentativa de sufocar a Lava Jato. Talvez o maior risco de
fracasso da Lava Jato hoje seja ela própria, que no afã de cumprir sua
missão e se defender da imensa pressão política, termine caindo em
armadilhas e atropelando a lei, o que pode levar a nulidades processuais
e mesmo à perda de apoio de uma parte importante da sociedade. Foi
este o final d a Satiagraha , não tanto tempo atrás”, diz Brandão.
A doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e
professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp) Esther Solano acredita que o juiz Moro já caiu nessa
‘armadilha’, no episódio dos grampos de Lula – pelo menos três ministros
do Supremo Tribunal Federal (STF) criticaram a condução que levou à
liberação dos áudios para a imprensa e para a opinião pública.
“Tudo aponta para uma blindagem dos outros partidos [caso o impeachment
aconteça]. Não vejo o mesmo interesse da operação e da própria classe
política para que ela avance além do PT. Acho que a Lava Jato vai
continuar, mas dará uma segurada no ímpeto das investigações. Venho
conversando com outras pessoas e o senso é este: que o PT é o foco
principal e outros nomes, como o do Aécio e o do Cunha, vão desaparecer
do noticiário. O Temer será poupado, assim como o PSDB, em prol de uma
coalizão possível”, afirma.
Paulo Whitaker/Reuters
Protesto pela democracia e contra o impeachment de Dilma na Avenida Paulista, em São Paulo
Esther acredita que “as instituições não estão cumprindo o seu papel”,
uma vez que o Judiciário, por exemplo, “deveria ser mais sóbrio” em suas
decisões.
“Ele não deveria se posicionar, a isenção é própria do Judiciário. Acho
que falta cautela e imparcialidade, enquanto o Congresso se tornou um
‘circo’ de projetos personalistas de poder, ao passo que a imprensa
mainstream tem sido muito parcial”, completa. Outro que teme pelo futuro
da Lava Jato é o filósofo da
USP Vladimir
Safatle, para quem a operação não mostrou “simetria estrita” ao longo
de suas 26 fases com todos os atores políticos investigados.
“Temos um escândalo que toca tanto o governo quanto a oposição. Esse é
um esquema que começou no governo FHC, os operadores são os mesmos, o
Delcídio [Amaral,
senador que foi diretor da Petrobras e deixou o PT neste mês, após a
sua delação premiada ser homologada pelo STF] vem desde o governo FHC.
Até
Furnas tem
relação com esse processo, desde 2004, 2005. Essas pessoas que falar
que é questão de foco, ‘primeiro aqui e depois lá’, devem achar que
somos idiotas. É só olhar para a história brasileira”, analisa.
Safatle relembra ainda o chamado mensalão tucano, que só neste ano
condenou em primeira instância o ex-governador e ex-deputado Eduardo
Azeredo (PSDB), passados 18 anos do escândalo que desviou recursos
públicos para a sua campanha de reeleição em Minas Gerais.
De acordo com o filósofo, seria um caso clássico de como a Justiça e a
imprensa são claramente seletivas no Brasil quando o assunto é o combate
à corrupção.
“Dados os indícios que temos, é muito clara a chance de que a operação
desapareça após a queda do governo, que é enorme. Os últimos lances da
Lava Jato foram dentro do jogo político, e pouco tiveram a ver com o
ritmo necessário em uma operação profunda e complexa, que coloca às
claras a relação incestuosa entre políticos e empresários. Está claro
que desde o fim da ditadura (1985) a democracia brasileira só funciona
sob corrupção generalizada. Temos um fracasso completo, é muito sério.”
Na mesma linha, o cientista político da Unicamp Valeriano Mendes Costa
Ferreira avalia que o perigo que um arrefecimento da Lava Jato pode
causar é enorme, uma vez que os primeiros indicativos – como as recentes
conversações entre lideranças de PMDB e PSDB– são de que muito pouco
vai mudar na esfera política nacional.
Mudam partidos, mas a coalizão e a forma com que ela se dá, ao que parece, não deve mudar por interesses partidários.
“O ritmo da Lava Jato tem sido alucinado apenas na primeira instância.
Se fosse uma operação séria e republicana, essas demais forças políticas
que estão comprometidas já estariam inviabilizadas. Quando acabar essa
‘farra do boi’, com massacre da Dilma e do Lula, sobrará o Congresso,
que não há como escapar. Aí vão tirar o pé e se considerarão
satisfeitos, se tornando mais razoáveis para, aparentemente, colaborar
com uma solução governativa”, opina.
"Lava Jato não transformará o Brasil"
Talvez o único ponto que é unânime para os especialistas é que a Lava
Jato, embora histórica e de grande importância, não irá transformar o
Brasil por si só.
‘Nunca antes na história deste País’, como diria Lula, uma investigação
chegou a figuras de tamanha envergadura, quer no poder público, seja no
âmbito privado.
Mesmo assim, o trabalho dá fôlego aos brasileiros para construírem uma alternativa melhor do que a que está colocada hoje.
“Acho que há uma injustiça muito grande com o juiz Moro, que não está
dando nenhuma entrevista, mas que é acusado de estrelismo. Ele não
buscou isso, é o trabalho que, pela sua importância, gerou esse
holofote.
Temos mais de 50 magistrados envolvidos na Lava Jato, que meus colegas
de Curitiba acreditam que durará pelo menos mais três anos.
O legado da operação será a busca pela eficiência na administração pública, com uma busca por um novo padrão cultural.
A sociedade não tolera mais impunidade e corrupção”, diz José Robalinho Cavalcanti, da ANPR.
Fiel defensor de uma democracia mais participativa, Vladimir Safatle
acompanha o pensamento de que a corrupção não deve ser tolerada, o que o
faz reforçar o pedido por simetria à operação que “começou muito bem” e
que fez “coisas admiráveis contra a nata do empresariado corrupto”.
Porém, o filósofo alerta que o País hoje rachado não pode ignorar os direitos individuais, sob pena de pagar um preço alto.
“Vemos no mundo todo situações de emergência usadas para flexibilizar os
direitos dos cidadãos contra o Estado. Por exemplo, usa-se o exemplo do
terrorismo para suspender direitos individuais. Como não tem terrorismo
no Brasil, a corrupção foi transformada nisso. Não se pode aceitar a
vulnerabilização de cidadãos perante o Estado. Acho que a sociedade
civil pode ainda vir a sofrer uma violência absurda. Há hoje um
movimento de pessoas que se acham no direito de tomar posse do Brasil,
que não precisam do voto popular.”