São Paulo – Todo processo de
impeachment é
composto por um viés jurídico e outro político. Mas, na prática, são as
ações políticas que determinam o seu resultado. É o que afirma o juiz
Paulo Henrique Blair de Oliveira, professor de Direito Constitucional da
Universidade de Brasília (UnB).
Na ação contra Dilma que tramita na
Câmara dos Deputados,
esse jogo fica ainda mais evidente uma vez que caberá exclusivamente ao
Parlamento decidir se pedaladas fiscais configuram ou não um crime de
responsabilidade – tema sem consenso no meio jurídico.
Em tempo: para que o pedido de abertura de impeachment tenha
consistência, devem existir evidências de que o mandatário cometeu algum
crime comum (como homicídio ou roubo) ou crime de responsabilidade –
que envolve desde improbidade administrativa até atos que coloquem em
risco a segurança do país.
Nesta entrevista, Blair explica a lógica que pauta esse processo e o papel da Justiça em tempos de
crise política.
EXAME.com: Não há consenso no meio jurídico se as pedaladas
configuram ou não crime de responsabilidade. Por que o Supremo Tribunal
Federal (STF) não se pronunciou sobre esse assunto?
Paulo Henrique Blair de Oliveira: Nos julgamentos de
pedido de impeachment, cumpre ao Parlamento funcionar como tribunal
político. Na verdade, quem tem que examinar se as pedaladas são ou não
enquadradas como crime de responsabilidade será o Parlamento. Não há
revisão judicial para o que for decidido nestes casos.
Tendo em vista isso, podemos afirmar que o processo de impeachment é mais político do que jurídico?
Sem dúvida alguma. É um processo político com um rito jurídico. Os
acusadores são políticos, os julgadores são políticos. A forma deve
preservar as garantias constitucionais, mas o conteúdo é político.
Diante disso, é possível afirmar que o argumento de que o atual
processo de impeachment é golpe é, então, apenas estratégia de retórica?
Essa é uma estratégia de defesa. O governo advoga haver uma
interpretação da lei que lhe favorece. É uma interpretação que contraria
a sustentada pela acusação.
Uma coisa, contudo, deve ser respeitada no argumento deles: se pedaladas
fiscais forem crimes políticos, então sempre foram desde a Constituição
de 1988. Esse não é um tipo de procedimento que começou com o atual
governo, começou bem antes.
Supondo que o Parlamento considere que pedaladas fiscais são
crime de responsabilidade, o que muda em processos semelhantes no
futuro?
A gente espera que se isso for julgado e decidido desse modo que em uma
ocasião futura os mesmos critérios sejam aplicados. Mas não podemos
garantir isso exatamente por que esse tribunal é jurídico na forma e
político no conteúdo.
Se existirem decisões contraditórias no futuro, quem perde legitimidade
perante a opinião pública são esses que hoje exercem a acusação.
Reuters / Ricardo Moraes
Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília
Fala-se muito hoje sobre um suposto processo de judicialização da política. O senhor concorda com esse termo?
Esse termo é, acima de tudo, uma má compreensão sobre a relação entre
Direito e política. Se o Direito pudesse ser reduzido à política, o
tribunal não teria função. Se política pudesse ser reduzida ao Direito,
os parlamentos não teriam função. Na democracia, parlamentos e tribunais
funcionam de modos opostos.
Na democracia, a política se realiza pela ideia de decisão majoritária:
ganha a maioria de votos. Num sistema de preservação de direitos, o
papel dos tribunais é o oposto, é contra-majoritário: se uma só pessoa
for detentora do Direito contra a opinião de 100 milhões de pessoas, o
tribunal deve proteger aquela única pessoa contra a vontade dos 100
milhões. O tribunal é um contraponto da política.
Portanto, o papel do Supremo Tribunal Federal não é se reger pelo
aplauso das ruas. Cortes que existem para fazer a vontade do povo só
persistem em ditaduras, onde só há tribunais populares porque não há um
processo legal.
Numa democracia, o pior dos criminosos tem direito à melhor defesa e ao
mais cônscio julgamento. Quando a gente acha que está fazendo justiça
popular, a gente está abrindo caminho para a injustiça, para a ditadura.
Quais os efeitos da relação tão próxima da Justiça com a política?
A gente anda no fio da navalha. Nós temos notado um estreitamento das
relações entre Direito e mundo político. Diante dessa “judicialização da
política”, a sociedade civil começa a se questionar sobre o mandato
vitalício dos ministros, sobre mudanças na seleção dos magistrados. Toda
democracia encontra essas dificuldades, o problema é que nunca o
encaramos de frente.
Como o senhor avalia a popularidade do juiz Sergio Moro?
Ele é um jovem juiz extremamente competente e corajoso. Muitos acham que
o juiz Moro é o nosso redentor da moralidade social com a sua
probidade. Mas é necessário compreender que a decisão do juiz Moro vai
ser submetida ainda a três graus de recursos. Estamos falando em talvez
cinco ou seis recursos em três tribunais diferentes. Para a gente ter
uma ideia do tempo que isso demora, no caso do ex-senador Luiz Estevão, o
processo dele ainda não terminou.
Para realmente mudar a situação da apuração judicial dos crimes de
corrupção, temos que mudar o código de processo penal com a máxima
urgência.
O que deve ser mudado?
O ideal é um sistema penal calcado no fortalecimento das duas primeiras
instâncias - o juiz que julga em primeiro grau e a corte revisora – e
que transforme qualquer outra medida para além do segundo grau em algo
absolutamente extraordinário.
O que o debate sobre as causas do impeachment revelam sobre a natureza do Direito?
O Direito não é uma ciência exata porque ele se vale da linguagem
humana. A rigor, nem as ciências que chamamos de Exatas o são. Se você
perguntar para um físico por exemplo, se vivemos um tempo exato, ele vai
dizer que o tempo é relativo. Na verdade, nada existe de seguro,
preciso e exato – nem Matemática, nem Física, muito menos a linguagem
humana.
A linguagem humana está sempre aberta à construção de uma outra
interpretação. Esse é o desafio de lidar com área. Por outro lado, isso
também é uma vantagem tremenda. Quando aberta para outra interpretação,
ela se torna propícia a uma mudança para o futuro. Eu não troco a
incerteza do Direito por nada. Que sua leitura no futuro seja melhor do
que a atual.