Vício
aparente é aquele de fácil constatação, perceptível com o simples uso e
consumo do produto ou serviço. Já o vício oculto é aquele que,
concomitantemente, não pode ser verificado com o mero exame do produto
ou serviço e não provoca a impropriedade, inadequação ou diminuição do
valor. Note-se que a mera inacessibilidade do vício pelo consumidor não
induz sua clandestinidade se as suas consequências puderem ser
facilmente percebidas.[1]
Constatado o vício, surge o direito
subjetivo de o consumidor demandar o fornecedor pelo prejuízo incorrido.
Evidentemente, não poderá o fornecedor manter-se responsável
perpetuamente, razão pela qual o Código de Defesa do Consumidor
estipulou prazos, a depender da natureza do produto e do vício, para que
o consumidor possa ver-se ressarcido.
Nesse sentido, conforme
preceitua o artigo 26 do CDC, em se tratando de bem não durável, deverá o
consumidor reclamar em 30 dias; se durável, tal prazo será de 90 dias.
Em
ambos os casos, sendo o vício aparente, o prazo do consumidor se
iniciará com a efetiva entrega do produto ou do término da execução dos
serviços, segundo o parágrafo 1º do referido dispositivo.
Por outro
lado, no caso de vício oculto, o prazo é deflagrado da ciência do
referido vício, conforme anuncia o artigo 26, parágrafo 3º, do CDC.
Assim
é porque afrontaria a segurança jurídica a possibilidade de exercício
vitalício de uma prerrogativa jurídica, seja ela oriunda de um direito
potestativo, no caso da decadência, ou de uma pretensão, no caso da
prescrição. Ao revés, seria ilógico penalizar o interessado que se
mantém inerte na hipótese de ele desconhecer a prerrogativa que possui
ou não poder exercê-la, sequer se podendo, a bem da verdade, falar em
inércia nesse caso. Tal premissa é aceita desde os romanos, que
conceberam o brocardo contra non valentem agere nulla currit praescriptio (em português, contra quem não pode agir, não corre a prescrição).
Importa
ressaltar que, conquanto alguns se refiram ao artigo 26, I e II, do
CDC, como prazos de garantia, não se trata propriamente de prazo de
garantia, mas de reclamação. O artigo 618 do Código Civil, ao tratar do
contrato de empreitada, exemplifica a distinção com clareza, prevendo no
seu caput o prazo de garantia, e, no parágrafo único, o prazo de
reclamação.
É por isso que a ministra Nancy Andrighi defende que,
quando o fornecedor oferece garantia contratual, o prazo desta não é
somado àqueles previstos no artigo 26, servindo estes apenas de
embasamento para reclamação de vício surgido enquanto vigente aquela.[2]
Em
razão da semelhança entre desgaste natural e vício oculto e das
consequências sobre a responsabilidade do fornecedor, é relevantíssima a
diferença entre um e outro.
Desgaste natural é a deterioração do
produto em razão do seu uso normal[3], i.e., o uso de acordo com a
finalidade do produto e as limitações especificadas pelo fornecedor.
Nesse contexto, os prazos de garantia visam acautelar o consumidor
quanto a prejuízos causados por um tal desgaste dentro de um prazo
mínimo no qual se espera não ocorram. Após a expiração desses prazos,
tolera-se que o produto apresente algum desgaste.
Já vício oculto é
aquele oriundo de causa outra que não o uso normal do produto. É
existente desde antes da sua aquisição, mas somente pode ser aferido
posteriormente, sendo fruto de diversas causas: falhas de projeto,
cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros.[4]
Assim,
é imprescindível reiterar uma característica essencial do vício oculto:
o fato de que ele existe antes da aquisição do bem, sendo que apenas o
seu surgimento se dá a posteriori[5]. A ressalva é importante para
distinguir situações que não configuram vício oculto.
A
responsabilidade civil do fornecedor por vícios engloba os deveres de
qualidade, quantidade e informação que tem em relação ao consumidor.
Tais deveres, em conjunto, visam a assegurar que o produto ou serviço
ofertado pelo fornecedor atenda à finalidade que legitimamente se
espera, o que se perfaz no dever de adequação (artigo 18, caput, do
CDC).
No que tange a bens duráveis, da leitura sistemática do
referido dispositivo com o artigo 4º, II, “d”, do CDC, percebe-se a
intenção do legislador em substanciar o que se entende por expectativa
legítima do consumidor em relação ao produto ou serviço adquirido: a
conjugação entre finalidade e durabilidade razoável.
Vida útil,
portanto, é o lapso temporal durante o qual o consumidor pode esperar
legitimamente que o produto ou serviço irá funcionar de maneira
adequada.
Como visto, em se tratando de vício oculto, o consumidor
tem os prazos de 30 ou 90 dias, a depender da durabilidade do bem,
contados da sua ciência, para reclamar perante o fornecedor.
No
entanto, o CDC não estabeleceu um termo final para essa
responsabilidade, é dizer, a legislação consumerista não fixou até
quando pode o fornecedor ser responsabilizado por um vício oculto.
É
verdade que essa ausência de prazo subjetiviza a questão, podendo dar
azo a abusos, bem como encarecer o bem. Inobstante, parece-nos ter sido a
melhor opção, tendo assim feito o legislador porque, a uma, seria
arbitrário e desproporcional um prazo único de garantia para todos os
bens e, a duas, seria impraticável elaborar uma lista com prazo de
garantia para todos os produtos e serviços oferecidos no mercado, além
de ter de ser atualizada a cada instante.[6]
Por outro lado,
instalar-se-ia enorme insegurança jurídica caso possível o exercício
vitalício de uma prerrogativa jurídica, razão pela qual teve a doutrina
que estabelecer um lapso temporal findo o qual não poderá mais o
consumidor pleitear a responsabilização do fornecedor por um vício
oculto, identificando-se duas posições: (i) uma fundada no prazo de
garantia, e (ii) outra na vida útil do produto ou serviço.
A
primeira corrente argumenta que o consumo de um produto ou serviço passa
por uma fase de preservação, na qual se busca conservar a sua
adequação. E esse prazo, em regra, é mensurado pela garantia contratual,
que, por sua vez, é fixada pelo fornecedor. Assim, não podendo ser
eterna a responsabilidade do fornecedor, somente responderá por vício
oculto caso este se manifeste dentro do prazo da garantia contratual.[7]
Já
a segunda corrente aduz que o fornecedor será responsável por vícios
ocultos enquanto o produto ou serviço estiver dentro da sua vida
útil[8]. E nós nos alinhamos a esta pelos argumentos seguintes.
Em
primeiro lugar, a garantia contratual, quando é estipulada, ela o é
unilateralmente, ao exclusivo arbítrio do fornecedor, como também
reconhece a primeira corrente. Contudo, entendemos que o parâmetro
utilizado pelo fornecedor para fixar tal garantia não é o da vida útil
do produto, mas a sua intenção de lucro e seu objetivo de reduzir seus
custos ao abreviar o prazo pelo qual responde por eventuais vícios.
Até
porque, se estivesse correta a primeira corrente, seríamos obrigados a
concluir que nas hipóteses em que o fornecedor não oferece garantia
contratual a vida útil do produto seria equivalente a zero. E isso
violaria um dos princípios da tutela consumerista: dentre os diversos
norteadores da Política Nacional das Relações de Consumo, encontramos
aquele que determina que a Administração Pública agirá para garantir ao
consumidor produtos duráveis (artigo 4º, II, “d”, do CDC).
Em
segundo lugar, a primeira corrente, aparentemente, distingue desgaste
natural e vício oculto conforme a expiração ou não do prazo de garantia
contratual, respectivamente. No entanto, essa não nos parece ser a
distinção mais recomendada, seja porque os institutos são diversos do
ponto de vista ontológico – e não do volitivo do fornecedor –, seja
porque submeter a fixação da vida útil de um bem ao exclusivo arbítrio
do fornecedor exacerbaria a vulnerabilidade do consumidor[9], além dos
demais aspectos já enfrentados no primeiro argumento.
Além disso,
valer-se da garantia contratual como critério de fixação da vida útil de
um bem estimularia, ainda que indiretamente, a obsolescência
programada, pois essa fixação se fundaria em um parâmetro absolutamente
arbitrário.
Em terceiro lugar, aceitar a responsabilidade do
fornecedor por vício oculto apenas enquanto vigente a garantia
implicaria dupla cobrança do mesmo bem: uma pela sua aquisição e outra
pelo seu conserto em um momento no qual o produto ou serviço não deveria
apresentar impropriedades.
Isso viola mais de uma norma jurídica:
configura enriquecimento ilícito e afronta o princípio da boa-fé
objetiva, pois, se ainda está na sua vida útil, nada mais lógico e
legítimo que o consumidor não tenha que arcar com custos para manter o
produto ou serviço funcionando, sob pena de desvirtuamento do próprio
conceito de vida útil.
E uma vez que é legítima a expectativa do
consumidor de que o bem por ele adquirido funcione adequadamente durante
a sua vida útil, reveste-se de indispensável lealdade a conduta do
fornecedor em oferecer seus bens sob tais parâmetros. Assim, pode-se
afirmar que essa expectativa do consumidor quanto à vida útil do produto
está protegida pela boa-fé. Nas palavras do ministro Salomão no REsp
984.106:
“9. Ademais, independentemente de prazo contratual de
garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior
àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de
adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que
deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de
direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de
informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a
compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e
razoável, fosse mais longo.”
E, finalmente, em quarto lugar,
corrobora essa segunda corrente o fato de que, como dito, o CDC não
previu prazo de garantia, mas de reclamação, porque impossível prever um
prazo de garantia para cada produto.
Dessa forma, entender pela
vinculação da responsabilidade do fornecedor ao prazo de garantia por
ele estipulado geraria uma situação, no mínimo, curiosa, já que, no caso
de não haver essa garantia, a rigor, o consumidor poderia reclamar, mas
não teria garantia para embasar a reclamação. Seria uma reivindicação
oca.
Não se desconhece o raciocínio empregado pela ministra Nancy Andrighi no REsp 967.623, mas, data venia,
dele discordamos, exatamente porque, se o prazo de reclamação diz
respeito apenas aos vícios ocorridos no prazo da garantia contratual, em
inexistindo essa, não haveria possibilidade de reclamação alguma.
Portanto, ainda que tecnicamente não tenha o CDC previsto prazo de
garantia, apenas de reclamação, os prazos previstos no seu artigo 26, I e
II, devem ser interpretados como que imbuídos de um direito de
garantia.
Por todo o exposto, concluímos que cabe ao magistrado,
no caso concreto, a determinação da vida útil, segundo as
características do produto ou serviço, bem como a expectativa legítima
da sua fruição[10] e parâmetros de adequação. Essa a solução mais
razoável porque
“É regra de equilíbrio que empresta utilidade à
extensão diferenciada do prazo em relação aos vícios ocultos, ao mesmo
tempo em que não permite interpretação irrazoável no sentido do
estabelecimento de uma garantia sem termo final de eficácia, e
confundindo-se, eventualmente, com o resultado do próprio desgaste
natural do uso do produto”.[11]
[1] NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor,
5ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 229 e 422; BENJAMIN, Antonio
Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de
direito do consumidor, 6ª ed., São Paulo: RT, 2014, p. 208; CRUZ,
Guilherme Ferreira. Teoria geral das relações de consumo, São Paulo: Saraiva, 2014, p. 114.
[2] REsp 967.623/RJ, 3ª Turma, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 16.4.2009.
[3] TARTUCE, Flavio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual, 3ª ed., São Paulo: Método, 2014, p. 147.
[4] REsp 984.106/SC, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 4.10.2012.
[5] MIRAGEM, Bruno. Vício oculto, vida útil do produto e extensão da responsabilidade do fornecedor: comentários à decisão do Resp 984.106/SC, do STJ, in Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 85, jan/2013, p. 350.
[6] MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor,
6ª ed., São Paulo: RT, 2011, p. 1250; BENJAMIN, Antonio Herman V.;
MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Cit., p. 228.
[7] DANARI, Zelmo. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990: arts. 8 a 28, in Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto (orgs. Ada Pellegrini Grinover et al.), 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 245.
[8] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor,
5ª ed., São Paulo: RT, 2014, p. 624; NUNES, Luiz Antonio Rizzatto.
Cit., p. 439; BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA,
Leonardo Roscoe. Cit., pp. 228-229; TARTUCE, Flavio; NEVES, Daniel
Amorim Assumpção. Cit., p. 147; CRUZ, Guilherme Ferreira. Cit., p. 113.
[9] BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Cit., p. 229.
[10] MARQUES, Claudia Lima. Cit., p. 1254.
[11] MIRAGEM, Bruno. Vício... Cit., p. 353.