Estão enganados aqueles que pensam que esta coluna vai tratar de roupas, sapatos, cosméticos e idas a shopping centers.
Uma falsa visão sobre a relação das mulheres com o dinheiro que precisa
ser desmistificada. Nosso dinheiro — o dinheiro público —, como se
poderá constatar, é muito bem aplicado se gerenciado pelas mulheres e se
a elas for destinado.
Nesta quarta-feira, dia 8 de março,
comemora-se o Dia Internacional da Mulher. Adotado pela ONU em 1977, foi
uma data conquistada após mais de um século de lutas pela plena
igualdade e de direitos que eram negados a elas.
O Estado
brasileiro não fica alheio às importantes questões que envolvem as lutas
por esses direitos que ainda não foram plenamente alcançados e que
ainda se fazem necessárias não só aqui como em muitos países do mundo.
Isso
se pode observar pela existência de órgãos, políticas públicas e seus
reflexos na atividade financeira do Estado brasileiro, materializada em
programas orçamentários específicos e em recursos dispersos em dotações
diversas, evidenciando a especial atenção que elas merecidamente recebem
e que o Direito Financeiro deve lhes dispensar.
É preciso
enfatizar a importância de políticas públicas voltadas às mulheres.
Talvez poucos saibam, mas já há algum tempo se evidencia que a pobreza
não é um fenômeno independente do gênero. Diversos estudos e documentos
internacionais mostram que as mulheres são expressiva maioria entre as
populações pobres do planeta. Em 1995, o Relatório do Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento aponta que 70% dos pobres do mundo
eram mulheres, que representavam também dois terços da população
analfabeta
[1]. Passados
mais de 20 anos, determinados grupos são mais afetados do que outros
pelo multidimensional fenômeno da pobreza: nos países em
desenvolvimento, os índices são maiores entre mães solteiras e mulheres
idosas que vivem sozinhas, em comparação com homens de mesmas
características
[2].
Em artigo seminal sobre o tema, a socióloga norte-americana Diane
Pearce usou, em 1978, a expressão “feminização da pobreza” para
caracterizar a expressividade da pauperização feminina naquele momento, a
despeito de sua crescente participação na força de trabalho
[3].
Apesar das inúmeras discussões que o assunto tem levantado desde então
entre os especialistas, diversos pesquisas corroboram resultados que
indicam a propensão à pobreza de domicílios chefiados por mulheres nos
países em desenvolvimento
[4].
As
definições são variadas, e os debates a respeito da ocorrência do
fenômeno com essas características no Brasil são muitos. O que não
impede a conclusão de que as políticas públicas não devem ser neutras
com relação à questão de gênero, pois “[a] existência de uma mesma
proporção de homens e mulheres na pobreza não significa que ambos os
grupos tenham as mesmas necessidades, que experimentem a pobreza da
mesma maneira ou que tenham de seguir os mesmos caminhos para superar
essa condição”
[5].
Segundo
a ONU, a taxa de desemprego das mulheres é cerca de duas vezes a dos
homens, e, na comparação de homens brancos com mulheres
afrodescendentes, o percentual de 5,3% aumenta para 12,5%. A maioria das
famílias brasileiras é chefiada por mulheres, que também se dedicam às
tarefas domésticas. A violência contra as mulheres (feminicídios e
estupros) dobrou entre 1980 e 2011, colocando o Brasil na 7ª posição
dentre os países mais violentos. Aqui, uma mulher é assassinada a cada
duas horas, na maioria dos casos por homens com os quais têm relações. O
número de estupros foi superior a 50 mil em 2012
[6].
Há
que se enfatizar também a complexidade para que seja possível criar e
implementar políticas públicas voltadas às mulheres, uma vez que, assim
como em outras áreas de atuação do Estado, não são específicas de uma
esfera de governo, nem de um único setor da administração pública. As
políticas que envolvem as mulheres são múltiplas e de variadas
naturezas, tornando-as interfederativas, multissetoriais e transversais,
envolvendo no mais das vezes uma complexa relação entre órgãos,
poderes, instituições e entes da federação.
Essas políticas
públicas exigem a articulação de diferentes órgãos governamentais, como
aqueles responsáveis pelos programas de educação e de saúde.
Por isso, o planejamento é fundamental, e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM)
[7], no âmbito federal, instituiu em 2004 o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres
[8], com 199 ações, distribuídas em 26 prioridades
[9],
traçadas a partir de quatro linhas de atuação: autonomia, igualdade no
mundo do trabalho e cidadania; educação, inclusive a não sexista; saúde
das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e enfrentamento à
violência contra as mulheres. Renovado e aperfeiçoado posteriormente em
novas edições, o PNPM avança muito no enfrentamento de problemas
relacionados às questões de gênero, mas peca, tal como outros planos
governamentais, pela sua pouca institucionalização, sequer sendo
materializado em lei, o que fragiliza sua implementação e execução,
especialmente por abranger políticas públicas interfederativas.
Daí
porque convém analisar os programas orçamentários sob condução da
Secretaria de Políticas para as Mulheres, previstos no sistema formal de
planejamento orçamentário, incluídos nos planos plurianuais e nas leis
orçamentárias, onde se constatam programas por ela gerenciados, como, no
âmbito federal, o Programa de Promoção da Igualdade e Enfrentamento à
Violência (Programa 2016, PPA 2016-2019), que congrega os objetivos de
aplicação de recursos públicos para as políticas públicas voltadas às
mulheres. É aí que se situam as metas de promoção de autonomia
econômica, social, sexual e de garantia de direitos das mulheres
(Objetivo 0931), visando, por exemplo, a capacitação de mulheres
urbanas, rurais, do campo, da floresta e das águas para fortalecer sua
participação no mundo do trabalho e o fomento à participação em
empreendimentos econômicos solidários.
A intersecção entre orçamento e
políticas voltadas para as mulheres se torna mais evidente quando
consideradas as iniciativas desse objetivo, as quais, se bem executadas,
seriam poderoso instrumento de ação governamental para a melhoria de
sua qualidade de vida e para a igualdade de renda e de bem-estar.
Vejam-se as iniciativas de “implementação de ações para a promoção de
autonomia econômica voltadas para as mulheres em situação de violência e
para a garantia de direitos” (Iniciativa 05CM), as “ações de estímulo
ao empreendedorismo das mulheres e de fortalecimento da organização e
inclusão produtiva, em especial do segmento de mulheres catadoras e
quilombolas” (Iniciativa 05CN) e “as ações de apoio à aprovação e
implementação do Projeto de Lei n.º 4.857/2009, que trata da igualdade
entre homens e mulheres no mundo do trabalho público e privado”
(Iniciativa 05CP).
Além de se voltarem à integração econômica e à
geração de renda, muitos objetivos visam ainda à participação social, à
cidadania e à igualdade de um modo mais amplo. É o que se nota nos
programas orçamentários que têm por objetivo promover a “a
transversalidade intra e intergovernamental das políticas para as
mulheres e de igualdade de gênero, observando as diretrizes do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres” (Objetivo 0935); “fortalecer o
processo de participação política, democrática e igualitária das
mulheres, nas instâncias de poder e decisão, considerando sua
diversidade e especificidades” (Objetivo 0934); e, finalmente, “ampliar a
política nacional de enfrentamento de todas as formas de violência
contra as mulheres, considerando sua diversidade e especificidades”
(Objetivo 0998).
A formalização de políticas públicas nos planos e
leis orçamentárias, no entanto, não é suficiente para garantir que
sejam executadas, ou se executadas, que resultem em benefícios para as
mulheres. É preciso que o controle interno, o controle externo e o
controle social exerçam seu importante papel fiscalizatório, exigindo o
cumprimento do planejamento, analisando os resultados e a eficiência da
política planejada, o que nem sempre é preocupação do gestor público.
Reavaliar as políticas públicas é uma obrigação, assim como
implementá-las de forma mais eficiente.
E os gestores públicos não
têm sido eficientes na implementação dessas políticas públicas, e em
razão dessa deficiência no planejamento e na execução das políticas,
muito dinheiro é gasto em ações que acabam não resolvendo os problemas.
Políticas mal planejadas geram gastos mal planejados, e nem todas chegam
a ser implementadas, porque são contingenciadas, e na prática o que se
verifica no Brasil é que a violência contra a mulher continua e aumenta a
cada ano, a discriminação no ambiente de trabalho se mantém, persiste a
falta de capacitação, de educação e de participação mais expressiva na
política.
A educação pública de qualidade, preferencialmente
integral, inclusiva e igualitária, é a principal delas, porque formará
cidadãos mais preparados, e as mulheres terão melhores condições de se
tornar agentes, acessar empregos permanentes e qualificados, onde serão
tratadas sem discriminação
[10].
Da mesma forma, uma educação melhor e inclusiva propiciará às mulheres
melhores condições e iniciativa para participar mais da política, seja
nas ações comunitárias, seja no Poder Legislativo ou no Executivo, onde
serão gestoras do dinheiro público, função que já estão desempenhando
com eficiência na sua vida privada, apesar de tantos percalços.
A Finlândia é exemplo de eficiência na política pública de educação, o que resulta na proteção dos direitos da mulher também
[11].
Foi o primeiro país da Europa a conceder às mulheres, em 1906, o
sufrágio universal. As finlandesas foram também as primeiras no mundo a
obter a elegibilidade nas eleições parlamentares, com plenos poderes
políticos numa sociedade ainda patriarcal
[12].
Os países nórdicos figuram entre os três melhores índices em igualdade
de gêneros. A lista foi divulgada pelo Fórum Mundial de Economia em
2015. A Islândia está em primeiro lugar, seguido de Finlândia e Noruega
(empatadas) e depois a Suécia (a Dinamarca ocupa a 14º posição). Nesse
ranking, o Brasil está na 85º posição
[13].
A
situação brasileira está tão distante dos países nórdicos porque, ao
contrário de lá, por aqui temos um país continental com acentuada
desigualdade social, uma violência generalizada, uma das piores
políticas de educação do mundo, e, neste ano de 2017, mais de 12 milhões
de desempregados, muitos dos quais mulheres.
E as mulheres são
reconhecidamente gestoras boas e responsáveis. Quando as mulheres
conseguem ocupar cargos ou funções antes reservadas somente aos homens,
elas têm um excelente aproveitamento e são eficientes tanto nos negócios
como na economia
[14], e também na área pública.
Veja
como pouco aparecem em escândalos de corrupção, má gestão e outros
problemas dessa natureza; quase não estão presentes em casos rumorosos
como “lava jato”, mensalão e outros. A própria legislação já reconheceu
essa qualidade. Na Lei 11.977, que dispõe sobre o programa Minha Casa
Minha Vida, em seu artigo 35, estabeleceu que os “contratos e registros
efetivados no âmbito do PMCMV serão formalizados, preferencialmente, em
nome da mulher”, e nos casos de separação, será registrado em nome da
mulher
[15].
Instrumentos
financeiros muito úteis, os fundos permitem a alocação direcionada e
mais segura de recursos que viabilizam a implementação e execução das
políticas públicas.
É importante nesse sentido estar atento para aqueles
que são voltados às questões de gênero, como é o caso do Projeto de Lei
7371/14, que cria o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência contra a
Mulher, até hoje um grave problema no setor e que necessita ser
combatido, para o que fundos como esse têm especial relevância, sendo a
aprovação desse projeto de lei uma medida importante para solucioná-lo.
Há também destinação específica de recursos de fundos às políticas para
as mulheres, como a prevista no Fundo Penitenciário Nacional (Funpen),
que prevê recursos para manutenção de casas de abrigo destinadas a
acolher vítimas de violência doméstica
[16] e para a implantação e manutenção de berçário, creche e seção destinada à gestante e à parturiente nos estabelecimentos penais
[17].
Veja-se que há muito o que fazer pelas mulheres, e o Direito Financeiro tem um papel importante a desempenhar.
Que
amanhã as mulheres comemorem seu dia, e que este dia sirva de reflexão
para os nossos gestores públicos darem a elas a atenção que merecem.
[1] HAQ, Mahbul ul (Principal coordinator),
Human Develop Report 1995, New York, Oxford University Press, 1995, p. iii.
[2] The
World’s Women 2015 – Trends and Statistics, United Nations Statistics Div., ch. 8 (
https://unstats.un.org/unsd/gender/downloads/WorldsWomen2015_chapter8_t.pdf), p. 179.
[3] PEARCE, D, The Feminization of Poverty: Women, Work and Welfare.
The Urban and Social Change Review, vol. 11, nº 1, 1978, p. 28.
[4] Como pode ser verificado no detalhado estudo de COSTA, J. S.; PINHEIRO, L.; MEDEIROS, M.; QUEIROZ, C.
A face feminina da pobreza: sobre-representação e feminização da pobreza no Brasil. Brasília: IPEA, 2005.
[5] A face feminina..., p. 36.
[6] In http://www.onumulheres.org.br/brasil/visao-geral/. Acesso em 4/3/2017.
[7] Que é relativamente recente, tendo sido criada em janeiro de 2003.
[8] Inspirado no Programa ONU MULHERES, do qual participam vários países, inclusive o Brasil (
ONU Mujeres – Informe Anual 2015- 2016. New York: ONU, 2016 -
http://www2.unwomen.org/-/media/annual%20report/attachments/sections/library/un-women-annual-report-2015-2016-es.pdf?vs=3039).
[9] I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2004.
[10] http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-03/mulheres-precisam-ocupar-diferentes-areas-de-trabalho.
[11] http://noticias.universia.com.br/destaque/noticia/2016/10/24/1144860/conheca-4-paises-melhores-sistemas-educacionais.html# e
https://finland.fi/pt/vida-amp-sociedade/o-poder-da-simplicidade-do-sistema-educacional-finlandes/.
[12] http://www.finlandia.org.br/public/default.aspx?contentid=109006.
[13] http://www.brasileiraspelomundo.com/finlandia-igualdade-de-generos-na-sociedade-061628146.
[14] SEN, Amartya.
Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. p. 260-261.
[15]
Lei 11.977, art. 35-A. Nas hipóteses de dissolução de união estável,
separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no
âmbito do PMCMV, na constância do casamento ou da união estável, com
subvenções oriundas de recursos do orçamento geral da União, do FAR e do
FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido,
independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que
envolvam recursos do FGTS (
Incluído pela Lei nº 12.693, de 2012).
[16] Lei Complementar 79/1994, artigo 3º, XIV, com redação dada pela Lei Complementar 119/2005.
[17] Lei Complementar 79/1994, artigo 3º, XV, com redação dada pela Lei Complementar 153/2015.
http://www.conjur.com.br/2017-mar-07/contas-vista-relacao-mulheres-dinheiro-desmistificada