Enchentes
prejudicaram lavouras ainda não colhidas, mas, sobretudo, interromperam
cadeias de produção e distribuição. Arroz, soja, frango e leite são
alguns dos produtos mais afetados
Desabrigados em consequência das enchentes alojados em ginásio em Porto Alegre (RS) 10/05/2024
REUTERS/Diego Vara
O
Rio Grande do Sul é tradicionalmente conhecido como um dos grandes
produtores do agronegócio brasileiro, e os efeitos das históricas
enchentes no estado foram prontamente alvos de preocupação para o setor.
O
impacto nas colheitas de arroz, soja e trigo deve ser sentido na
inflação em todo o Brasil, o que também deverá ocorrer no caso do leite e
de outros produtos. Além disso, a atividade industrial gaúcha também
foi fortemente afetada – nove em cada 10 empresas do estado estão em cidades atingidas pelas enchentes,
de acordo com levantamento da Federação das Indústrias do Estado do Rio
Grande do Sul (Fiergs). Este cenário deve ter repercussões para a
atividade econômica do Brasil como um todo.
Além
da grande presença na alimentação dos brasileiros, o arroz chama a
atenção pelo forte componente doméstico da produção do estado. O Rio
Grande do Sul é responsável por mais de 70% da produção brasileira do
alimento que, no último ano, representou apenas 1,4% das exportações
gaúchas, segundo dados do Comex, sistema para consultas e extração de
dados do comércio exterior brasileiro. Embora 80% do arroz já tivesse
sido colhido, nos últimos dias o Brasil se mobilizou pela importação do
grão, enquanto supermercados pelo país restringiram as compras, temendo
desabastecimento em razão de danos aos estoques e à cadeia de
distribuição.
O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea) identificou impactos em outros itens relevantes da dieta comum dos brasileiros: leite e frango.
Em ambos os casos, a infraestrutura afetada, incluindo danos no
processamento, devem ser responsáveis por alguma escassez, chegando ao
consumidor final com alta de preços. No caso do frango, granjas já
relatam dificuldade para receber alimentos para os animais devido aos
problemas nas estradas.
“O
viés inicial para a economia brasileira é de efeitos temporários em
2024 de maior pressão de alta na inflação de alimentos e de bens
manufaturados, além de alguma moderação no ritmo de crescimento do PIB
nacional”, aponta o Rabobank, em relatório assinado pelos analistas
Maurício Une e Renan Alves.
No último
relatório Focus, os analistas de mercado consultados pelo Banco Central
projetaram uma alta no índice de preços ao consumidor amplo (IPCA) de
3,76% em 2024, um pequeno aumento ante os 3,72% da semana anterior.
Desde o meio do último ano, os riscos inflacionários do fenômeno El Niño
vinham sendo apontados por analistas. Até as chuvas no Rio Grande do
Sul, algumas estimativas chegaram a reduzir suas previsões para a
inflação, o que foi revertido nos últimos dias.
Grande impacto nas cadeias de fornecimento
A
analista de grãos da StoneX Ana Luiza Lodi afirma que os impactos devem
afetar não apenas as plantações, mas as cadeias de fornecimento como um
todo, lembrando dos prejuízos nos silos e às indústrias que usam a
soja, como o caso da proteína animal – e isso sem falar nas estradas,
rodovias e pontes. No caso da soja, a expectativa antes das enchentes
era de uma exportação de 23 milhões de toneladas, que foi reduzida para
20 milhões. O chamado complexo da soja, que abrange ainda o farelo, é o
maior produto de exportação do Brasil, tendo a China como principal
compradora.
Além disso, ela aponta uma possível perda na qualidade
em parte da safra, o que deve impossibilitar a exportação em alguns
casos. Em 2023, o produto foi responsável por 18% das vendas
internacionais do estado, o que representou um ingresso de US$ 4,1
bilhões para o Rio Grande do Sul.
No caso do trigo, a expectativa é de queda de 6,9% na produção da safra,
que será prejudicada ainda pelos impactos da chuva também em Santa
Catarina. Por sua vez, para o milho, as perdas não tendem a ser tão
relevantes, já que uma parte importante já havia sido colhida. Com
chuvas ainda previstas para os próximos dias, Lodi afirma que é difícil
estimar o tempo para uma normalização no Rio Grande do Sul. Segundo a
Empresa de Extensão Técnica e Extensão Rural (Emater-RS), 76% da soja e
83% do milho plantados no estado já tinham sido colhidos antes das
enchentes.
Nos últimos anos, os produtores do estado já haviam
sofrido com fenômenos climáticos. No entanto, nas colheitas anteriores,
ao contrário deste ano, o que ocorreu foi uma forte seca no Sul do país,
impulsionado pela La Niña, que, ao contrário do El Niño, tende a causar
períodos mais secos nesta parte da América do Sul.
Outro ponto a
ser levado em consideração é a perda de tratores, caminhões e outras
máquinas agrícolas que podem atrapalhar o plantio de algumas culturas,
como o trigo. Mesmo nas áreas em que a água já baixou, o solo continua
exarcado e ainda é cedo para saber as condições de plantio para as
próximas safras.
Apesar do cenário de constantes problemas para o
plantio, Lodi não acredita que haja grande estímulo para produtores
deixarem de investir na atividade ou mudar o uso do solo. A analista
lembra que a soja é muito relevante para o estado, contando com uma
cadeia já pronta, que torna difícil que a produção seja substituída.
Impacto na indústria
Dos
497 municípios gaúchos, pelo menos 447 (cerca de 90%) foram afetados
pelas enchentes, de acordo com o governo do Estado. Isso representa,
segundo a Fiergs, 94,3% de toda a atividade econômica estadual.
“Os locais mais atingidos incluem os principais polos industriais do
Rio Grande do Sul, impactando segmentos significativos para a economia
do Estado”, afirmou o presidente em exercício da Fiergs, Arildo Bennech
Oliveira, em comunicado.
A tragédia levou à paralisação de
fábricas de diversos setores, de montadoras a utensílios domésticos.
Empresas desligaram as máquinas e concederam férias coletivas ou deram
folga aos empregados, como no caso da Tramontina e da fábrica local da
General Motors. O tema chegou a atingir os vizinhos, com a Fiat
suspendendo sua atividade industrial em Córdoba, na Argentina, pela
falta de insumos vindos do Sul do Brasil.
Riscos ao sistema financeiro
De
acordo com a ata da última reunião do Conselho de Política Monetária
(Copom) do Banco Central, os desdobramentos da tragédia seguirão sendo
acompanhados para definir a política monetária.
A catástrofe
ocorre em um momento no qual cresce a discussão pelo mundo sobre a
necessidade de bancos centrais levarem em conta as mudanças climáticas,
já que os eventos extremos cada vez mais recorrentes afetam grande parte
de sua área de atuação. Além de influenciar na inflação, em tragédias
como a do RS, corridas bancárias, com grande volume de saques
simultâneos, podem gerar algum estresse, que coloca riscos ao sistema
financeiro em efeito cascata.
A Oxford Economics acredita que as
enchentes no RS serão um obstáculo significativo ao crescimento nos
próximos meses. Em relatório, a consultoria lembra que o governo federal
anunciou um pacote de expansão fiscal de 0,5% do PIB, mas ainda vê
riscos de impacto negativo para sua projeção de crescimento do PIB
brasileiro de 1,2% neste ano, que já é mais baixa do que outras
projeções.
Em um primeiro momento, o pacote anunciado pelo governo
federal para reconstrução do Rio Grande do Sul foi de R$ 52 bilhões.
Por sua vez, uma série de integrantes do governo afirmou, ao longo dos
últimos dias, que o tema não deverá alterar a trajetória fiscal do país.
Desta forma, os gastos não deverão entrar no limite orçamentário de
2024, o que traz dúvidas sobre o efeito para as contas públicas.