
Os cartolas brasileiros se dizem dispostos a pôr em campo, a partir de 2026, uma série de medidas capazes de elevar a organização do futebol nacional ao nível da qualidade de seus jogadores, ainda que a maioria deles prefira exercer seu talento nas principais ligas europeias, em busca de fama e dinheiro escassos por aqui, sobretudo o segundo item.
Entre as medidas, elencam-se um calendário minimamente exequível, o início da profissionalização da arbitragem e fair play financeiro, um conjunto de medidas para, basicamente, impedir os clubes de gastarem mais do que arrecadam e conquistarem triunfos à custa de impagáveis endividamentos.
As proposições foram feitas pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), mas, por falta de uma, os cartolas decidiram criar duas ligas no Brasil e uma delas acabou contestada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
O órgão que zela pela livre concorrência no país recebeu um parecer jurídico sobre a legalidade e os efeitos econômicos da operação que envolve a Liga Forte União (LFU) e investidores privados para a exploração, por 50 anos, dos direitos de transmissão das Séries A e B do Campeonato Brasileiro.
O documento, assinado pelo jurista e professor Wladimyr Camargos — especialista em direito esportivo —, aponta violação constitucional, risco concorrencial severo, possibilidade de nulidade de contratos e até ameaça à soberania esportiva nacional.
Em seu parecer, Camargos afirma que a cessão realizada por clubes ao chamado Condomínio LFU, estrutura que incorpora investidores financeiros externos ao Sistema Nacional do Esporte, é nula de pleno direito.
Segundo o jurista, o artigo 160, §3º, da Lei Geral do Esporte estabelece que direitos de arena só podem ser cedidos a organizações esportivas que regulam a modalidade e organizam competições — ou seja, entidades como a CBF ou ligas formalmente reconhecidas. Um condomínio privado com participação de fundos, diz o documento, não se enquadra nessa definição.
O parecer sustenta que a operação compromete o núcleo essencial da autonomia esportiva, princípio constitucional que protege o esporte de interferências políticas e econômicas externas capazes de desequilibrar a competição ou capturar seu funcionamento.
Para o jurista, embora os clubes tenham o direito de negociar a transmissão de suas partidas, a titularidade e a integridade da competição pertencem à CBF, nos termos do estatuto da entidade e das normas da Fifa e da Conmebol (federação internacional e confederação sul-americana de futebol, respectivamente).
Ao ceder poderes estruturais por meio século a um investidor financeiro, a LFU estaria expropriando competências regulatórias da confederação. O parecer alerta ainda que o modelo pode levar o Brasil a desalinhamento com o sistema mundial do futebol, sujeito a medidas corretivas internacionais.
O documento lembra casos internacionais — como o da Superliga Europeia, discutido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia — para reforçar que federações esportivas só preservam sua legitimidade se mantêm autoridade plena sobre seus campeonatos.
Ao entregar influência decisória a fundos de investimento, diz Camargos, cria-se uma forma de “interferência econômica indevida”, expressamente vedada pela Lei Geral do Esporte.
A duração contratual também é alvo de críticas duras. O parecer afirma que nenhum sistema regulado admite vinculação comercial por horizonte equivalente a meio século, já que isso impede que gerações futuras de dirigentes decidam autonomamente o futuro do esporte no país.
Gun jumping
No plano concorrencial, o parecer menciona decisão recente do Cade que identifica indícios robustos de gun jumping, quando uma operação de concentração econômica é consumada antes da aprovação da autoridade reguladora.
A investigação já levou o Cade a impor medida preventiva para proibir a entrada de novos clubes na estrutura da LFU até a conclusão do processo. Os contratos firmados antes da autorização podem ser declarados nulos de pleno direito, nos termos da Lei 12.529/2011.
O parecer enfatiza que, se houver nulidade, haveria risco de apagão jurídico e televisivo, pois acordos de transmissão celebrados pela LFU poderiam perder eficácia, afetando torcedores, patrocinadores e a própria realização das competições.
O texto conclui que a manutenção da operação como estruturada viola a autonomia esportiva protegida pelo art. 217 da Constituição. Rompe a cadeia federativa que conecta clubes à CBF, Conmebol e Fifa. Cria vulnerabilidade sistêmica ao permitir eventual alienação futura das cotas do investidor a fundos internacionais ou plataformas de apostas. E ameaça a segurança jurídica necessária para a organização das competições nacionais.
O parecer recomenda que a cessão seja considerada juridicamente impossível e que a CBF aja para evitar que contratos contaminados por vícios concorrenciais repercutam sobre o campeonato.






