No
encontro dos países membros do Mercosul em Brasília, o discurso da
presidente Dilma Rousseff chamou a atenção desse articulista. Como
reprisado por diversos veículos de comunicação, a presidente do Brasil
discursara a respeito da importância da afirmação democrática na América
do Sul, dizendo, por conseguinte, que não há espaço para aventuras
antidemocráticas na América do Sul.
A presidente brasileira não
está errada na observação. Complementaria, apenas, dizendo que não há
mais espaço em qualquer lugar e não só na América do Sul. Observando o
mundo atual, com as alterações nas estruturas políticas e sociais
acontecidas desde o século XX, não há muita dúvida de que a democracia
caminha para ser o regime político universal. A propósito, sobre isso,
brilhantemente escreve a professora Monica Herman Caggiano, ensinado que
com o fim da cortina de ferro, a queda do muro de Berlim, a
independência dos estados africanos e a adoção de uma economia de
mercado no mundo asiático, é evidente a tendência da democracia se
transformar em regime político universal
.[1]
De
qualquer forma, o Estado brasileiro defender que não há lugar para
aventuras antidemocráticas na América do Sul, não obstante ser o
esperado de qualquer representante que tenha em sua Constituição essa
previsão, tratando-se da região e do seu momento atual, podemos
considerar como uma mensagem alvissareira.
No entanto, o que há de
se questionar na declaração da presidente Dilma e, em especial, para a
aceitação dessa afirmação como verdade para os demais representantes dos
países do Mercosul, é compreender o que é uma democracia, ou pelo menos
os elementos que podem caracterizar esse regime político que tenciona a
ser universal.
E parece-nos ser aí o grande desafio da cúpula do Mercosul, ou pelo menos de parte dos Estados integrantes.
Na
continuidade do discurso de não haver mais aventuras antidemocráticas, a
presidente Dilma Rousseff afirmou que a realização periódica e regular
desses pleitos (citava as recentes eleições nos países do bloco
Mercosul) demonstra a capacidade de lidar com as diferenças políticas
por meio do diálogo, do respeito às instituições e da participação
cidadã.
Eis aí o problema: será que somente a realização periódica
de eleições caracteriza o regime político de um Estado como
democrático? Se assim for, a ideia de que o regime democrático
tornar-se-á um regime universal está bem mais próxima do que se imagina.
Evidentemente
que conceituar democracia é uma das tarefas mais complexas e árduas do
Direito e essa coluna não tem a pretensão de, nesse pequeno espaço,
apresentar os seus conceitos e as diversas espécies de democracia
admitidas pela doutrina
[2]. Entretanto, para o ponto em que se pretende refletir, válida é a citação dos ensinamentos de Robert A. Dahl
[3]
a respeito do assunto, que traz oito critérios (ou elementos) em que é
possível verificar a presença da democracia: i) liberdade de formar e
aderir a organizações; ii) liberdade de expressão; iii) direito de voto;
iv) elegibilidade para cargos públicos; v) direito dos líderes
políticos disputarem apoio e votos; vi) acesso a fontes alternativas de
informação; vii) eleições livres e idôneas; viii) instituições seguras
que garantam que a política governamental dependa de eleições ou por
outro meio de manifestação de preferência.
Para Dahl, um dos
elementos a caracterizar um regime democrático é a presença da liberdade
de expressão, ou seja, a permissão do exercício pleno de manifestação
de pensamento, crítico ou não. Em outras palavras, bem mais incômodas,
um Estado que se pretende democrático há de permitir o exercício livre
da atividade jornalística. Não basta, portanto, a realização tão somente
de eleições periódicas, garantindo o sufrágio, para que um Estado possa
ser considerado democrático. Esse elemento, direito de voto, é, sem
dúvida alguma, pressuposto de uma democracia, mas não só. Como Dahl
assinala, há outros tantos e, entre eles, a liberdade de expressão.
E,
nesse ponto, a América do Sul não avança. Inconcebível sustentar que
temos na Argentina uma democracia; assim como na Venezuela, no Equador.
Em uma rápida consulta no site
Freedom House,
organização americana, sem fins lucrativos, dedicada ao desenvolvimento
de direitos humanos, democracia e economia de mercado, Venezuela e
Equador são países que não possuem uma imprensa livre. Com exceção do
Uruguai, que, segundo aponta a organização, possui uma imprensa livre,
os demais países do continente são apontados por terem uma imprensa
parcialmente livre.
O presidente Rafael Correa, do Equador, por
exemplo, apoia a ideia de tornar a atividade jornalística, de
comunicação, um serviço público, passando a ser de titularidade do
Estado. É verdade que o Equador não compõe a cúpula do Mercosul, mas não
é esse o obstáculo para o ingresso desse Estado no bloco econômico.
Tanto que no caso da Argentina, que está classificada pela Freedom House
como um Estado de imprensa parcialmente livre, temos assistido
episódios que depõem contra qualquer aspiração de Estado democrático.
Não só o assassinato do promotor Alberto Nismam, que estava investigando
eventual participação do Governo no encobertamento do atentado
acontecido no centro judaico em 1994, como a intervenção de sua
presidente na imprensa argentina, sob a alegação de monopólio da
informação, revelam ser duvidosa a ideia de democracia plena na América
do Sul.
Aqui no Brasil, temos, nesse espaço, nos ocupado de
apresentar alguns ataques à atividade jornalística, manifestando o
quanto esse comportamento contraria os preceitos democráticos. Excesso
de ações contra jornalistas, pleitos para que material jornalístico seja
retirado, alterado ou complementado têm sido recorrentes no Poder
Judiciário. Projetos de lei que buscam amordaçar a atividade
jornalística, colocando esse mister a uma prévia avaliação de conteúdo,
também revelam um afastamento dos pressupostos há muito esclarecidos por
Dahl para uma democracia.
Voltando ao discurso de Dilma, na
reunião com representantes do Mercosul, afirmar que democracia se faz
tão somente com eleições periódicas, é o mesmo que inaugurar obra sequer
iniciada, ou seja, constitui uma mentira.
Grande passo o
continente daria se os líderes das nações da América do Sul colocassem
em pauta de discussão o fortalecimento da imprensa como condição de
regime democrático. Ao contrário disso, o discurso que ainda se vê dos
líderes dos Estados aqui da América do Sul é de que a imprensa exerce
atividade persecutória, criando fatos e a serviço de uma suposta
oposição, que, quando assumir o governo, terá o mesmo discurso à
imprensa.
A democracia é o modelo que mais assegura o resguardo da
liberdade, nos seus mais diversos sentidos, dado que dela emerge os
elementos liberdade e igualdade a nortear os rumos democráticos e a sua
concretização mediante eleições livres e competitivas com amplos espaços
para oposição
[4].
Parafraseando
o ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, no julgamento
das “biografias”, a liberdade de expressão não é medida de justiça, mas
sim de democracia.