Imigrantes tentam driblar lei arcaica para conseguir documentação no Brasil.
Em meio a uma política descoordenada, imigrantes pobres se deparam
com uma dura realidade burocrática para obter documentos no Brasil e
culpam diretamente o Estatuto do Estrangeiro. Na lei, sancionada em 1980
pelo último presidente da ditadura civil-militar, João Baptista
Figueiredo, eles são vistos como uma potencial ameaça à segurança da
nação. Para tentar contornar o Estatuto, estes migrantes têm entrado
como refugiados no país.
Haitianos encontram, além disso, um problema adicional: não se
encaixam na categoria de refugiados.
Oriundos de um local com catástrofe
natural, e não de uma situação de perseguição política ou guerra civil,
eles entram no país por meio de uma autorização legal chamada “visto
humanitário”. Esse documento é destinado apenas a nacionais do Haiti e
garante a permanência no Brasil durante cinco anos. O certificado pode
ser renovado por igual período, e, dependendo da situação, ser trocado
pelo visto permanente.
A ausência de secretarias de imigração no país é outro dos entraves
para regularização do estrangeiro. Imigrantes andinos são alguns dos que
mais sofriam com esta situação. Geralmente empregados na indústria
têxtil, acabam suscetíveis à exploração em tecelagens e em outros
subempregos.
Todavia, imigrantes andinos mais recentes já possuem uma estrutura
mínima que lhes permite de se organizar melhor contra esses problemas,
após o acordo do Brasil com os países do Mercosul. Com ele, um nacional
dos países-membros pode cruzar a fronteira sem visto e ficar no país
durante três meses como turista. Caso estenda o período provisório e ele
queira se regularizar, precisará reunir diversos documentos. Entre
eles, passaporte ou documento com foto que tenha o nome dos pais,
antecedentes criminais do país de origem e do Brasil emitidos pelas
Justiças Federal e Estadual e mais uma série de taxas que somam, ao
total, R$ 200,00.
“Nós temos uma legislação muito atrasada, defasada e violadora de
direitos humanos”, alertou Camila Lissa Asano, coordenadora de política
externa da ONG Conectas Direitos Humanos, durante a palestra “Como é ser
migrante no Brasil”, realizada em São Paulo no último mês de fevereiro.
“Entre os países da região da América do Sul, o Brasil é o que está
mais atrasado – tanto em termos de legislação quanto em termos de
políticas públicas.”
Imigrante pobre x imigrante rico
A dualidade de tratamento do imigrante rico para o imigrante pobre
também é uma realidade. Veronica, nascida na Bolívia e criada no Brasil,
destaca essa diferença na recepção dos imigrantes. “O imigrante rico
tem espaço garantido no Brasil, o pobre não. O rico não precisa torcer
para ser bem tratado, ele tem flexibilidade na questão burocrática. Se
ele vai empregar algumas pessoas ou é um Neymar versão boliviana, tudo
fica bem mais fácil. Se for um imigrante pobre, a impressão que fica é
que existe uma vontade do país de mantê-lo nessa situação”, diz.
A jornalista Bianca Vasconcellos, diretora de documentários da TV
Brasil, realizou um trabalho que aborda a vida dos imigrantes andinos
sob exploração em São Paulo. Na reportagem “A mão de obra escrava
urbana”, que ganhou menção honrosa do Prêmio Jornalístico Vladimir
Herzog de Anistia e Direitos Humanos em 2012, bolivianos e paraguaios
trabalham trancafiados em porões e galpões, na região do Brás,
costurando mais de 13 horas por dia. Boa parte deles é oriunda de um
cenário hostil em suas nações.
“Eles trabalham em uma situação análoga à escravidão. O melhor
momento para conversar com eles é no final do dia, quando eles ‘saem da
toca’. Faço uma analogia até pior; em vez de escravo, bicho. Quando o
sol se põe, eles se sentem mais seguros de pôr o rosto pra fora”,
explica Bianca.
A atividade têxtil é algo cultural entre os bolivianos e paraguaios.
Na zona rural, as famílias possuem varias máquinas overlocks como forma
de sustento. “Aqui no Brasil, eles têm a oportunidade de crescer fazendo
o que eles sabem fazer desde berço, que é costurar. Por mais que seja
uma condição subumana, que a nossa legislação trabalhista condena, eles
vão construindo uma vida aqui, diferente daquela em que eles viviam nas
suas origens. São homens e mulheres supercorajosos”, comenta
Vasconcelos.
Uma legislação humanitária
“A imigração é um fenômeno complexo, uma vez que existe a figura do
imigrante, a maneira mais eficaz de garantir o seu direito é
regularizando-o”, afirma Raísa Cetra, assessora de Política Externa da
Conectas.
Não existe, atualmente, uma política migratória no Brasil e nem quem
pense essa política de forma conjunta. Três ministérios podem atuar
sobre a questão da migração, mas não necessariamente estabelecendo um
diálogo entre eles. Dentro dessas estruturas, se encontram o Ministério
de Relações Exteriores (MRE), que controla a emissão de vistos;
Ministério da Justiça (MJ), que se foca em deportações, expulsões e o
setor da Polícia Federal na área de regularização; e o Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE). Além disso, existe o Conselho Nacional de
Imigração (CNIg), órgão central que decide sobre os casos que a
legislação não abarca.
“A Polícia Federal atua com uma lógica securitária, ela sempre vai
olhar para migração como um risco, como se os migrantes fossem muitas
vezes potenciais criminosos. Ela não irá enxergá-los pela ótica dos
direitos”, alega Cetra.
Dentro da América Latina, outros países já reviram as suas leis.
Argentina e Uruguai mudaram o paradigma de segurança pública e laboral
para um de direitos. No Brasil, o projeto de Lei do Senado (PLS)
288/2013, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), tenta uma
mudança semelhante. Aprovado pelo Senado, o texto foi encaminhado para a
Câmara.
O projeto tem 65 artigos e sete títulos e estabelece critérios
relacionados à concessão de vistos, repatriação, deportação, expulsão e
naturalização. Conforme a proposta, o Estatuto do Estrangeiro será
substituído por uma mudança na política migratória, atualmente
subordinada à lógica da segurança.
“Esse é o momento de definir que sociedade seremos com relação a
migrantes. Quem deve responder isso é o Estado, aprovando uma nova
legislação migratória. Nós precisamos de um governo que trate as pessoas
sem discriminação”, diz Cetra.
Luan Ernesto Duarte
(Opera Mundi – 27/07/2015)