Guerra econômica entre Estados Unidos e China se acirra e as consequências para os demais países — Brasil em especial — serão graves e imprevisíveis
É uma questão em aberto se, em poucos anos, a turbulência nos
mercados financeiros da última semana será considerada a data oficial
do começo da hostilidade aberta entre China e Estados Unidos. Na
segunda-feira 5, as bolsas desabaram ao redor do mundo devido à decisão
chinesa de deixar sua moeda, o yuan, desvalorizar-se levemente em
relação ao dólar. Pela primeira vez desde 2008, a taxa de câmbio superou
sete yuanes por dólar, movimento reforçado por uma decisão do Banco do
Povo, o banco central chinês, na quinta-feira 8 (leia mais ao fim da
reportagem). Em termos absolutos, uma variação irrelevante. Porém, em
termos simbólicos, um alerta poderoso.
Na noite do domingo 4, ao anunciar a nova taxa de câmbio, o Banco do
Povo, o banco central chinês, emitiu um comunicado dizendo que a decisão
foi provocada pela “imposição unilateral de medidas protecionistas e
tarifas sobre a China”. Destoando da linguagem normalmente neutra dos
banqueiros centrais, a declaração foi um sinal eloquente que, para as
autoridades em Pequim, a postura belicosa do presidente americano Donald
Trump havia chegado perigosamente perto do limite. E o fato de os dois
maiores países do mundo em Produto Interno Bruto (PIB) terem elevado o
tom na arena econômica pode ter consequências graves e imprevisíveis, em
especial para o Brasil.
A reação chinesa da segunda-feira seguiu-se a um prolongado processo
de atrito entre Washington e Pequim. Periodicamente, Trump solta seus
tuítes ameaçando elevar as tarifas comerciais. No dia 31 de julho, ele
ameaçou lançar uma tarifa de 10% sobre bens e serviços chineses que
representam US$ 300 bilhões em exportações, o maior aumento já
anunciado. O principal ponto é a tecnologia. No dia 5 de maio, Trump
proibiu grupos americanos de fazer negócios com empresas de tecnologia
que “representassem risco à segurança nacional dos Estados Unidos”. Dias
depois, o Google e Facebook anunciaram que estavam rompendo contratos
com a gigante Huawei. Fundada em 1988 e com um faturamento que atingiu
US$ 100 bilhões em 2018, ela é a principal concorrente em todo o mundo
para a instalação da tecnologia de transmissão de dados 5G, que promete
revolucionar a internet e deverá ser o principal negócio desse setor na
próxima década. Trump a colocou na alça de mira.
Em dezembro do ano passado, Meng Wanzhou, vice-presidente financeira e
filha do fundador da companhia, foi presa no Canadá, acusada de violar
as sanções americanas impostas ao Irã. Ela foi solta dez dias mais tarde
após pagar dez milhões de dólares canadenses de fiança, de entregar seu
passaporte e de concordar em usar uma tornozeleira eletrônica. O caso
de Meng foi o movimento mais estridente, mas não o mais recente. A luta
de Trump contra a Huawei continua. Na quarta-feira 7, o governo proibiu
as agências governamentais de comprar produtos ou serviços da empresa e
de mais cinco concorrentes conterrâneas a partir de 13 de agosto.
JOGO DURO
Fiéis a seu estilo sutil de negociar, os
chineses vinham minimizando as pressões de Trump e apostando as fichas
na diplomacia tradicional. Porém, no fim de julho, um exasperado Trump
elevou o tom de maneira a forçar Xi Jinping, o presidente chinês, a
agir. Conseguiu. Deu certo? Philip Levy, economista republicano que
participou do comitê de assessoramento econômico do ex-presidente George
W. Bush acha que não. “Entramos em uma disputa comercial com a China
com uma estratégia simples, que era pressionar Pequim até eles cederem”,
disse ele à Bloomberg. “Só que não previmos o que aconteceria se eles
não cedessem, e eles não parecem que vão ceder.” Trump permanece
irredutível em sua eloquência. “Agora estamos no topo, os chineses
realmente querem fechar um acordo”, disse ele na quarta-feira 7.
Bravatas à parte, os chineses acreditam poder resistir aos ataques de
Trump. Além disso, os chineses prometem avançar nas retaliações se
Trump for adiante com sua ameaça de impor tarifas. Desde maio, Jinping
vem defendendo uma nova “Longa Marcha”, alusão à campanha que levou Mao
Tse-Tung ao poder em 1949 e implantou o governo comunista na China.
Apesar de ter definido uma estratégia de privilegiar o consumo interno
para tornar sua economia menos suscetível às variações do comércio
global, Pequim tem dado sinais de que é capaz de sobreviver apesar das
sanções americanas. Em vez de se dobrarem, eles deixaram o yuan
desvalorizar. Mais do que isso, eles anunciaram mudanças em um dos
pontos mais sensíveis nas relações comerciais através do Pacífico: o
agronegócio. Ao lado do comunicado do BC chinês, foi anunciada a decisão
de Pequim de interromper as compras de soja dos Estados Unidos.
Para entender como a situação chegou a esse ponto é preciso olhar
para os números do comércio global. Desde 1975, os Estados Unidos
importam mais do que exportam, e essa situação só piora para os
americanos. Em 2018, o déficit comercial, sem contar as transações
financeiras, foi de US$ 891 bilhões. Quase metade dessa diferença veio
dos negócios com a China, com quem o déficit comercial no ano passado
foi de US$ 419 bilhões, ou 47% do total. Na quinta-feira 8, o
Departamento de Comércio divulgou os dados relativos a julho. No
acumulado dos sete primeiros meses deste ano, o déficit com os chineses
já está em US$ 168 bilhões.
Nesse cenário, as medidas protecionistas, as declarações bombásticas e
a pressão explícita visam tentar reequilibrar a balança comercial a
favor dos Estados Unidos. Desde que ocupou seu assento na Casa Branca, o
presidente colocou o déficit comercial com a China no topo da agenda. A
questão vai além dos meros números. Ao buscar reduzir o desequilíbrio
comercial, ele pretende fazer com que os americanos comprem menos
produtos industriais e eletroeletrônicos chineses, e também ampliar as
vendas do agronegócio americano para o outro lado do Pacífico. Todas
essas medidas são destinadas a gerar empregos nos Estados Unidos,
principal bandeira na eleição de 2016 e no pleito previsto para o
próximo ano.
O problema com a reação chinesa é o impacto sobre os demais países.
Na própria segunda-feira, o banco de investimentos americano Morgan
Stanley divulgou um relatório dizendo que, se as maiores tarifas dos EUA
e a retaliação da China durarem de quatro a seis meses, a economia
global estará em recessão em nove meses. E os investidores estão
começando a entender o potencial de um conflito prolongado. As ações
americanas tiveram sua pior semana do ano, o dólar perdeu valor em
relação às principais moedas e o ouro fechou no nível mais elevado desde
2013 na Bolsa de Londres, a US$ 1.503 a onça-troy (31,1 gramas). “O que
parecia uma batalha comercial está se tornando parecido com uma guerra
de longo prazo, sem nenhuma solução clara de curto prazo e com graves
danos a uma economia global já enfraquecida”, avalia Chris Johnson,
ex-analista da CIA especialista na China.
E O BRASIL?
O agronegócio é importante nessa
equação. Os Estados Unidos são o maior produtor mundial de soja, com 124
milhões de toneladas na safra 2018/2019, ante uma produção brasileira
de 118,8 milhões de toneladas. Além de comprarem muita soja, os chineses
são consumidores vorazes de carne de porco, um item que deverá trazer
preocupações devido à febre suína africana, que vem devastando as
criações por lá. “Ao bloquearem as compras de soja dos Estados Unidos,
os chineses abrem espaço para o Brasil”, diz Marcos Jank, professor do
Insper e um grande conhecedor dos mercados asiáticos. “Porém, esse
espaço está longe de ser garantido”, diz ele. Jank avalia que os
solavancos da semana passada demonstram a mudança no quadro geral do
comércio internacional. Desde a queda do muro de Berlim, no início dos
anos 1990, a tendência vinha sendo pelos acordos multilaterais. O melhor
exemplo é o fortalecimento da Organização Mundial de Comércio (OMC),
que vem sendo sistematicamente esvaziada pelos Estados Unidos nos
últimos dois anos.
Um bom exemplo é a demora americana em indicar juízes para o Tribunal
de Resolução de Conflitos, um dos órgãos mais importantes da
organização. “O multilateralismo está sendo substituído por uma política
em que os principais países fecham acordos bilaterais, sem a
participação dos demais parceiros”, diz Jank. “Com isso, no longo prazo,
o agronegócio brasileiro pode perder espaço no mercado chinês.” Pequim
depende da importação de soja, mas não abre mão de preservar seu mercado
de carnes, que têm maior valor agregado que os grãos. As autoridades
chinesas podem facilitar o acesso das proteínas animais americanas a seu
mercado em troca do relaxamento das sanções contra as empresas de
tecnologia, alijando o Brasil desse segmento.
MAPAS REDESENHADOS Independente do movimento de
curto prazo dos mercados financeiros, os primeiros dias de agosto
mostraram claramente uma mudança na direção dos ventos. Em vez de
multilateralismo, acordos bilaterais. Em vez de abertura, protecionismo.
E uma visão mercantilista da economia, em que caberá aos países
defender seus mercados em vez de integrá-los. Nesse cenário, perde quem
tem menos competitividade e tecnologia. No caso brasileiro, as
perspectivas não são boas. “O País tem vantagens no minério de ferro, na
soja e no petróleo, mas não vai além disso”, diz Jank. Isso vai
redesenhar os mapas do comércio internacional. E a primeira guerra séria
do século 21 será econômica, e travada entre combatentes poderosos.
País mais populoso do planeta, com 1,42 bilhão de pessoas (a Índia chega
perto, com 1,37 bilhão), possuidor de um PIB de US$ 13,6 trilhões em
2018 segundo o Banco Mundial e dotado de armamento nuclear, a China é o
único adversário capaz de enfrentar o poderio americano.
A perspectiva a partir de agora coloca em xeque a tese de que a
globalização seria prevalente no longo prazo. No início dos anos 1990, o
sociólogo americano Francis Fukuyama defendeu a ideia de que a
confluência entre democracia e liberalismo econômico seria o ápice do
desenvolvimento socioeconômico da humanidade. Ou, em uma frase muito
citada e pouco entendida, havíamos chegado ao “fim da História”, um
período em que arranjos totalitários e fundamentalistas não teriam mais
espaço. Trinta anos depois, a guerra entre impérios nos dois lados do
Pacífico mostra que não. É hora de apertar os cintos e se preparar para
muita turbulência à frente. A História acabou de recomeçar.
Prejuízos (dos) bilionários
Desvalorização do yuan fez evaporar US$ 110 bilhões do patrimônio das 500 pessoas mais ricas do mundo
Na segunda-feira 5, os mercados reagiram de maneira quase
catastrófica à decisão chinesa de desvalorizar sua moeda. A Bolsa de
Nova York caiu 2,9%, e percentuais semelhantes de baixa espalharam-se
pelos pregões em todo o mundo. Isso drenou as fortunas dos bilionários.
Segundo um levantamento da Bloomberg, as 500 pessoas mais ricas do mundo
sofreram uma desvalorização de US$ 110 bilhões em seus patrimônios em
um só dia, uma baixa de 2,1%.
Segundo cálculos da Bloomberg, o maior perdedor foi Jeff Bezos,
fundador da Amazon. A desvalorização das ações da empresa – e de outras
nas quais o magnata investe – custou-se US$ 3,4 bilhões. Mesmo assim,
Bezos permanece confortavelmente na posição de habitante mais abonado do
planeta, com um patrimônio estimado em US$ 109 bilhões. Bem perto está o
empresário francês Bernard Arnault, presidente da holding de luxo LVMH,
com uma fortuna estimada em US$ 108 bilhões. Arnault sofreu prejuízos
de US$ 3,2 bilhões. Outros ricaços também perderam dinheiro. Bill Gates,
fundador da Microsoft e que até há pouco era o segundo da lista, viu
sua fortuna de US$ 107 bilhões emagrecer US$ 2 bilhões. E o patrimônio
de Mark Zuckerberg, estimado em US$ 69 bilhões no início do ano,
encolheu US$ 2,8 bilhões na segunda-feira.
Um prejuízo de US$ 3,4 bilhões pode levar mesmo o mais calmo dos
mortais ao desespero. Porém, não houve notícias de que Bezos perdeu a
calma. A explicação é que, apesar dos valores elevados, essas perdas só
serão efetivas se, por um azar, os bilionários optassem por vender todas
as ações exatamente no momento da baixa, algo que raramente ocorre.
Como as ações oscilam todo o tempo, os magnatas estão acostumados a ver
seu patrimônio oscilar ao sabor dos humores do mercado. E, na ponta do
lápis, não há tantas razões assim para reclamar. Segundo a Bloomberg, o
patrimônio acumulado dos 500 mais ricos, estimado em US$ 5,2 trilhões, já cresceu 11% desde o início do ano devido à trajetória de alta das bolsas.
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