O
lavajatismo foi uma expressão do judiciarismo, uma doutrina própria do
liberalismo brasileiro segundo a qual é preciso apostar no Poder
Judiciário como uma terceira força imparcial e defensora dos valores
constitucionais para romper o domínio oligárquico ou autoritário. Em
nome de uma suposta cruzada contra a corrupção, os lavajatistas
descumpriram leis e torceram a jurisprudência. Porém, por ingenuidade e
desconhecimento da política, foram usados por grupos conservadores e
ajudaram reacionários a assumir o poder com o presidente Jair
Bolsonaro. É o que afirma o professor Christian Edward Cyrill Lynch, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Segundo Lynch, houve uma "revolução judiciarista" nos últimos anos no Brasil, que passou a ser freada após o impeachment da presidente Dilma Rousseff. A "lava jato", a seu ver, tenderá a ser vista na história brasileira como um período de exceção.
"É
como se a gente tivesse derrubado o sistema sem derrubar formalmente.
Com a diferença de que, hoje em dia, não dá mais para derrubar de
verdade como antigamente, com tanques na ruas e colocando abaixo a
Constituição."
Para o professor, o Supremo
Tribunal Federal é o órgão mais importante do Brasil hoje. A corte
assumiu o papel de defesa da democracia. Tanto que, a partir do próximo
presidente, diz Lynch, o Judiciário deverá ser incorporado ao modelo de
governabilidade.
Com a derrocada da "lava jato", começou a recuperar força em estratos da classe média e do meio jurídico a ideia de que Direito não é fazer justiça com as próprias mãos.
"Os
fins não justificam os meios, porque, no fim das contas, a luta pela
liberdade republicana no Brasil colocou o poder nas mãos de um sujeito
que vive ameaçando acabar com as liberdades democráticas do país. E aí
passa a haver um processo de revalorização da política, especialmente do
Legislativo", avalia Christian Lynch.
Leia a entrevista:
ConJur — O que é a revolução judiciarista?
Christian Lynch — Eu chamo de revolução judiciarista o
movimento que começa na década de 1990. Há um movimento dentro do
Direito, das faculdades de Direito, das pós-graduações em Direito, um
movimento muito forte da virada do regime militar, da abertura para a
Nova República, de reabilitação do Direito Constitucional como
disciplina, de revalorização da disciplina. Há juristas como Paulo
Bonavides, Luís Roberto Barroso, como Clèmerson Clève, Marcelo
Cerqueira… Todos de alguma forma inspirados pelo Raymundo Faoro, autor
de Os donos do poder, de que o Brasil tem uma história de
desrespeito ao Estado Democrático de Direito e que os atores jurídicos
têm um papel central nessa história de desrespeito, de inefetividade da
Constituição e dos valores republicanos, democráticos e liberais.
No
começo da Nova República, há uma organização em torno da nova
Constituição para romper com esse cenário. A disciplina de Direito
Constitucional tinha muito pouco prestígio na época, porque o regime
militar se baseava nos atos institucionais, ignorando a Constituição.
Nas faculdades de Direito, no primeiro dia de aula já se dizia: “Bom,
temos um problema, porque o Direito Constitucional não existe no Brasil,
então eu vou dar Direito Constitucional em tese, Teoria da
Constituição”. E há tem uma reação forte a isso quando se tem a nova
Constituição. Esse esforço para tentar impedir o retorno do
autoritarismo aparece na Constituição. Há a introdução do controle
concentrado de constitucionalidade, amplo acesso à Justiça, valorização
enorme do Ministério Público e do Judiciário. Isso dá início a um
movimento que começa na academia e isso vai mudando a mentalidade dos
operadores jurídicos através dessa doutrina que passou a ser conhecida
como a “doutrina da efetividade”. Ela valoriza o papel da jurisdição
constitucional que a gente chama de neoconstitucionalismo ou de
pós-positivismo, que empodera os juízes e promotores. Ou seja, empodera
os operadores jurídicos responsáveis pela guarda da Constituição, dos
valores constitucionais. Porque eles são responsáveis pela implementação
dos valores constitucionais, dos princípios constitucionais. Assim, é
preciso acabar com a distinção entre princípios e regras, é preciso
acabar com a ideia de que existem regras que não são aplicáveis na
Constituição. Passa-se a dizer que tudo é autoaplicável.
O inimigo
dessa mentalidade é o político. Por dois motivos: porque o político é
associado ao tipo de atividade descomprometida com os princípios da
Constituição e sujeito a ser corrupto. E pelo seu “baixo nível”
intelectual.
Com a ampliação do acesso à Justiça, o aumento de
concursos, a valorização das carreiras públicas, vai sendo criada a
ideia de que existe uma nova classe política no Judiciário e no
Ministério Público. E isso era bem-visto, porque era progressista. E
havia essa crítica em relação ao mundo da política. Porque as pessoas
que saem da academia e se tornam professores de Direito, se tornam
procuradores, promotores, juízes se consideram superiores
intelectualmente aos políticos. Eles se veem como uma espécie de classe
média alta esclarecida, que chegou ao poder pelo seu mérito próprio. Daí
a centralidade dessa ideia do concurso.
Ao mesmo tempo, também no
governo Fernando Henrique Cardoso, houve a difusão dos programas de
pós-graduação. Teve uma reforma na Capes que gerou uma multiplicação de
faculdades de Direito. Aí começou a se ter essa ideia também, que no
Direito é muito forte: fazer mestrado, doutorado, é quase que uma
insígnia que se coloca, uma comenda: “Fulano é doutor em Direito”. Aí
também houve a ampliação dos quadros de Direito das universidades. Surge
essa ideia do judiciarismo, de que cabe ao Judiciário salvaguardar os
valores de democracia, liberdade e república. Só que o Judiciário nunca
conseguiu efetivar isso pelo conjunto de diversos fatores entre a década
de 1990 e a década de 2000.
ConJur — O que ocorreu com a classe política nesse período?
Lynch — Primeiro ocorre o desaparecimento do Exército como uma
espécie de moderador concorrente. Ao mesmo tempo, há a democratização e
massificação da política no Brasil. Assim, o perfil do deputado médio
vai se tornando cada vez mais parecido com o do eleitorado. Então,
aquele perfil do político de elite, da UDN, grande orador, grande
jurista vai desaparecer. E vão entrando os evangélicos, os comerciantes…
Vão aparecer os políticos profissionais mesmo, que vivem só daquilo,
que têm interesses paroquiais. Parece que existe em determinado momento
uma disparidade entre essas duas classes.
E, ao mesmo tempo, se
tem a ideia de que os partidos políticos estão entrando em crise. Isso é
uma crise de representação. Com essa crise de representação, a
participação suplementar do Judiciário e do Ministério Público é
bem-vista por todo mundo na época. No Ministério Público, em particular,
há a visão de que o órgão atua em nome da sociedade civil, o que lhe dá
legitimidade política. Já os juízes têm legitimidade política para
cumprir os valores da Constituição.
O sistema político era o
presidencialismo de coalizão. Só que ele foi se esgarçando com o tempo.
Ocorreu o episódio do mensalão. Mas a crise de legitimidade desse modelo
foi adiada por causa do boom de commodities e por causa da habilidade
política do presidente Lula. Mas quando o Lula deixou o poder, já havia
uma sensação de que o Congresso estava cooptado, já havia essa história
de centrão, de pemedebismo, esse negócio de que o sistema não
representava ninguém, de que quem era eleito, era eleito através de um
esquema que deixava o deputado ou senador cooptado ao interesse do
governo.
ConJur — Com essa crise política, o que aconteceu com o Judiciário?
Lynch — Aí aconteceu uma coisa curiosa, porque o Judiciário
nunca teve tanta força como nessa época, mas, ao mesmo tempo, ele não
fazia parte do modelo de governabilidade. Na verdade, ele nunca fez.
Nunca precisou fazer, porque o Judiciário não tinha importância. O
Judiciária ia a reboque dos golpes, do Exército, do presidente da
República, da área governista. Ele não tinha autonomia. É bom lembrar
que o Judiciário era composto de parentes ou afilhados de políticos. O
Judiciário e o Ministério Público foram sendo empoderados cada vez mais,
sem que se procurasse incorporá-los ao regime de governabilidade. Tem
até aspectos positivos nisso, porque, por exemplo, os ministros de
tribunais superiores foram indicados sem muita preocupação partidária.
Aí
nasceu uma espécie de ideologia judiciarista, que é
liberal/republicana. Liberal, no sentido de liberal democrática, em
defesa da liberdade civil, da liberdade de mercado. Que se opõe tanto ao
conservadorismo clássico quanto ao socialismo, representado pelo PT. Há
cada vez mais um afastamento em relação ao sistema político.
O
Brasil tem, por muito tempo, um de governo de esquerda. Já havia a
experiência do mensalão e a sensação de apodrecimento do sistema
político do começo da década de 2010. E aí, em 2013, ocorre um
detonador, que é uma certa crise generalizada de representação. O efeito
colateral é a ideia de que todo mundo que foi à rua, quaisquer que
fossem as suas razões e seus motivos, tinham uma insatisfação com
relação à política e ao caráter supostamente não representativo da
política. É como se os representantes políticos estivessem descolados da
vontade dos representados. E aí há uma crise de legitimidade do sistema
político. Quer dizer: o modelo de governabilidade começa a ser
percebido de forma difusa como disfuncional. E aí todo mundo vai para a
rua dizendo que fulano de tal não me representa, esse país não me
representa.
E o que acontece? Há uma desmoralização do Poder
Legislativo, que passa a ser visto como sinônimo de classe política,
gente corrupta, vendida. Outro problema era o esgotamento do ciclo de
esquerda e das ideologias que chamam de socialistas, mas que são
social-democratas. Isso por várias razões. Uma delas foi a ressaca da
globalização, que desfavoreceu ideologias liberais e cosmopolitas e
impulsionou o retorno de ideologias nacionalistas autoritárias. Nesse
momento, reaparece no Brasil o conservadorismo, que tinha desaparecido
em 1985. Inclusive uma modalidade americana, massificada, radicalizada e
que flerta com o fascismo.
Surge uma aliança dos conservadores
com os liberais contra uma classe política que está identificada com o
período da esquerda no poder. Que é PMDB, PT. Dilma Rousseff é reeleita
em 2014, por muito pouco. E ela se deslegitimizou muito rapidamente
quando não admitiu que mentiu quando disse que não tinha crise
econômica. No dia que ganhou, ela disse que tinha mentido e que ia
chamar o Joaquim Levy para ser ministro da Fazenda e que ela ia fazer
uma política econômica completamente contrária a tudo que ela tinha dito
durante a campanha. Ao mesmo tempo, a "lava jato" já tinha começado a
funcionar. É bom lembrar que a “lava jato” começou lá em 2013, 2014.
Isso vai formando uma tempestade perfeita, que vai levar ao colapso da
legitimidade também do Poder Executivo e vai deixar o Poder Judiciário
sozinho em cena, como o único Poder legítimo do Brasil. E aí a “lava
jato” se torna um catalisador dessas esperanças difusas dos
liberais/republicanos de um lado e dos conservadores do outro, que
querem se livrar do governo do PT. E é claro que ainda tem o pessoal do
establishment, comandado pelo PMDB, que se vira contra a presidente
Dilma para tirá-la do poder e tentar depois resistir à "lava jato". Mas
então, de 2013 para frente, há um estouro dessa revolução judicialista.
ConJur — Quais era os objetivos da revolução judiciarista?
Lynch — Há um grande alinhamento no Judiciário e no Ministério
Público para varrer a corrupção da política brasileira. Isso não
necessariamente era algo conservador, mas certamente era
anti-socialista. Era algo liberal, liberal tipo o ministro Barroso, da
vanguarda iluminista. Mas que entendia que cabia ao Judiciário combater o
patrimonialismo. O discurso judiciarista (que é mais amplo do que o
lavajatista, que é um tipo de judiciarismo) retoma as ideias de Os donos
do poder. Ou seja, de que o Brasil é um país patrimonialista,
autoritário, um país de corrupção, que o problema é a colonização
ibérica, que era colônia. Já que os políticos não conseguem se
regenerar, cabe ao Judiciário servir de aríete para promover essa
limpeza e criar uma república de verdade. Isso é a revolução
judiciarista.
Houve uma coalização entre juízes e promotores que
eram liberais/republicanos e conservadores, que o tom foi desse discurso
liberal/republicano. Os dois, naturalmente, antipetistas. Mas não só
antipetistas, porque também foram atrás de outras pessoas do PMDB, do
PSDB. Era uma espécie de derrocada do establishment. Aquilo que foi
feito no passado com o AI-5 precisava ser feito de novo, de outro jeito.
ConJur — Os magistrados e integrantes do MPF que atuavam na operação "lava jato" planejaram a derrubada do establishment?
Lynch — Eu nem sei até que ponto a força-tarefa de Curitiba, aí
incluindo o ex-juiz Sergio Moro, tinha noção do que estava fazendo. Na
verdade, eles foram o instrumento de um movimento político muito maior,
voltado para derrubar o establishment PT-PMDB do poder.
ConJur
— Nas mensagens entre obtidas por hackers, os integrantes da "lava
jato" discutem alguns objetivos políticos. No julgamento da suspeição de
Sergio Moro para julgar o ex-presidente Lula, o ministro do Supremo
Tribunal Federal Gilmar Mendes falou que as mensagens demonstravam
claramente que os operadores da "lava jato" tinham um projeto de poder.
Lynch — Isso é certo. Agora, eles achavam que estavam usando os
outros, mas, na verdade, eles estavam mais é sendo usados. O projeto de
poder deles não era articulado. O projeto de poder deles era uma coisa
heroica sebastianista, messiânica. Eles achavam que iam salvar o Brasil.
É uma coisa inclusive meio tola, ingênua, de quem não entende muito a
política. Por isso que eu chamei isso de tenentismo togado. Só que em
vez de fazer aquilo com baionetas ou tiros, iam fazer com sentenças.
Para isso, eles tinham de colocar abaixo o establishment político. Eles
usaram a operação Mãos Limpas como modelo. É engraçado que as pessoas
pegam como modelo coisas que dão errado no final para elas. Isso é coisa
de quem não entende de política.
Outro aspecto é que, no meio
jurídico, há uma certa promiscuidade na relação entre operadores. É uma
coisa de corporação, todos são meio aparentados, meio amigos ou fizeram
faculdade juntos. E como eles sabiam que estavam mexendo em coisa
grossa, que estavam enfrentando poderes muito fortes, eles fazem essa
coisa da Mãos Limpas, de contar com a ajuda da imprensa. Ora, a grande
imprensa no Brasil é toda liberal. Então, ela estava super interessada
em apoiar e dar visibilidade à “lava jato”. E os conservadores que
apareceram depois também. E na cabeça dos membros da “lava jato”, eles
tinham, para sobreviverem, que derrubar sucessivamente todos os
obstáculos com a ajuda da imprensa, tinham que derrubar todos os
obstáculos dos grandes poderes, que eram os responsáveis por essa
corrupção da República. Que eram Eduardo Cunha, ministros, senadores,
deputados, vice-presidente da República e presidente da República. Sendo
que o último, óbvio, era Lula.
ConJur — Qual foi o papel do STF na revolução judiciarista?
Lynch — Tudo isso foi endossado pelo Supremo Tribunal Federal. O
Supremo começou a mudar sua jurisprudência para permitir a "lava
jato" mais ou menos na época do julgamento do mensalão (que começou em
2012). Agora há a sensação de que o Supremo está voltando ao normal.
Essa mudança ocorreu porque houve uma convicção generalizada dos
ministros e de boa parte da magistratura brasileira de que o “sistema”
não permitia o combate eficiente à corrupção. Então era preciso alterar a
jurisprudência, mudar a doutrina, endurecer. Ter a prisão em segunda
instância. Porque existe uma percepção de que, no Brasil, o Código Penal
só existe para o pobre, não para o rico.
Quando o ministro
Barroso defende a prisão depois do julgamento em segunda instância, não é
porque ele é punitivista. O argumento dele é que, depois da segunda
instância, nenhum pobre consegue subir, são só os ricos. O argumento é
antipatrimonial, é republicano. Tem essa ideia de indignação com a
corrupção. O perfil dos magistrados, com valores de classe média, é
muito sensível ao assunto de corrupção. E era preciso mudar a
jurisprudência, a forma de julgar os casos para se conseguir fazer
justiça.
Esse movimento começou no mensalão e se difundiu depois
com a “lava jato”. Porque esse movimento vem de cima para baixo e de
baixo para cima ao mesmo tempo. Então, o Moro começa a julgar de uma
outra maneira, começa a ter a importação de outras teorias, que
dispensam atos de ofício para comprovar a corrupção. Há a decisão
monocrática de impedir o Lula de virar ministro da Casa Civil, de
impedir a filha do Roberto Jefferson de virar ministra do Trabalho.
Começa a haver uma interferência constante do Judiciário no
funcionamento dos outros Poderes, que estavam muito enfraquecidos. Ao
mesmo tempo, há uma exacerbação da atuação do Poder Judiciário, que se
sentiu empoderado o suficiente para regenerar o sistema político.
ConJur — Quando começa o refluxo da revolução judiciarista?Lynch —
Havia uma coalizão díspar que apoiava esse movimento. Quando certos
setores já se sentem contemplados com resultados parciais da “lava
jato”, começam as deserções. Quando tiram o PT do poder, com o impeachment
da Dilma, parte do pessoal deixa de apoiar a “lava jato”. Porque, para
eles, ela já cumpriu o seu papel. Estou falando dos liberais
conservadores, que apoiavam o governo Temer, a Ponte para o Futuro.
Gilmar Mendes desembarca ali. Ele impediu Lula de virar ministro com uma canetada. Mas depois ele diz “outro impeachment,
outra derrubada? Aí não”. Aí ele vai presidir o julgamento do Tribunal
Superior Eleitora que absolve a chapa Dilma-Temer por “excesso de
provas”. Ele desembarca porque a finalidade política já tinha sido
atendida.
E Temer não respeita a lista tríplice para a
Procuradoria-Geral da República, ele não nomeia o primeiro colocado e
escolhe Raquel Dodge. Era preciso mudar o procurador-geral da República,
arrumar aliados dentro do Supremo Tribunal Federal, como Gilmar Mendes.
Ao mesmo tempo, há o ministro Ricardo Lewandowski, sempre ligado à
esquerda. Os dois formam essa coalizão, que se diz garantista e começa a
acusar a “lava jato” de ser punitivista. Tem um grande interesse também
de advogados criminalistas por causa das mudanças que vêm sendo
implementadas. O fato é que Temer consegue ir desmontando a “lava jato”.
E
aí o então procurador-geral da República Rodrigo Janot tira a última
carta, que é a delação da JBS. Temer diz que não vai renunciar, e o
mandato de Janot acaba. Aí começa o declínio da revolução judiciarista.
Na mesma época, o ministro Marco Aurélio manda afastar Renan Calheiros
da Presidência do Senado. E o Senado se nega a cumprir a decisão. Aí o
Plenário do Supremo volta atrás e cassa a liminar de Marco Aurélio. A
sensação é que acabou ali.
ConJur — Por que começam a aumentar as críticas ao Judiciário?Lynch —
Existe tem uma desmoralização grande do Poder Judiciário causado por
essas brigas internas, bate-bocas entre Barroso e Gilmar Mendes... Os
conservadores redivivos estavam satisfeitos também quando caiu a Dilma,
quando caiu o PT. E grande parte deles era antijudiciarista por razões
morais. Eles acusavam o Supremo por ter avançado uma pauta contrária aos
costumes do povo brasileiro. O jurista que mais personifica essa visão é
o Ives Gandra da Silva Martins. Esse pessoal dizia que tinha que
trancar o Supremo, porque o Supremo ia ficar como uma corte progressista
em um mundo conservador.
Quando chega 2018, o sistema está tão
deteriorado, tão desgastado, tão esgarçado, que se criam as condições de
possibilidade para que um candidato autocrata, populista apareça com
chances de ser eleito presidente. O populismo sempre aparece em momentos
de crise aguda do sistema representativo. E surge uma retórica
anti-sistema, de que tem que demolir tudo. Aí o sujeito tem que ser
visto como se fosse um outsider. Isso já estava dado em 2017. Eu só não
sabia quem ia ser: se ia ser Ciro Gomes, Joaquim Barbosa ou Bolsonaro.
Eu achava que era alguém com o discurso de autoridade, de "isso aqui já
foi longe demais".
É bom lembrar que os generais da reserva do Exército já estavam soltando manifestos antijudiciaristas.
ConJur — O tweet
do general Eduardo Villas Bôas às vésperas do julgamento do HC que
determinaria se Lula seria preso foi uma manifestação nesse sentido?
Lynch — Foi. Com o retorno desse conservadorismo mais
reacionário, mais radical, há o retorno do militarismo. Assim como o
judiciarismo no Brasil é filhote do liberalismo, o militarismo é filhote
do conservadorismo. Do conservadorismo não liberal. O militarismo diz
que a instituição central responsável pela salvaguarda dos interesses
nacionais da República do Brasil são as Forças Armadas, e não o
Judiciário. Foi a prevalência desse militarismo do século 20 que impediu
o judiciarismo de se firmar na década de 50, por exemplo. Desde o
começo da República, sempre em momentos de crises há a ideia de que a
classe política e os partidos não funcionam mais. E alguém tem que
assumir a direção do país. Assim como o Judiciário assumiu a direção do
país na revolução judiciarista, o Exército tinha assumido em outros
momentos. Ambos reivindicaram a herança do poder moderador do Império.
Há essa ideia de que, em tempos excepcionais, é preciso apostar em
alguma dessas duas instituições. Nesse sentido elas são concorrentes. É
por isso que se tem um antijudiciarismo muito forte nos militares.
Para
os conservadores, o problema do Brasil é a falta de respeito às
hierarquias. E elas são mantidas pelo Estado, pelo Exército, pelas
famílias, pela igreja. Então há esse renascimento do militarismo, que
com essa interpretação escalafobética do artigo 142 da Constituição.
Só
que agora tem uma coisa meio doida, porque eles tentaram alicerçar a
ideia de que o poder moderador é o presidente da República, porque ele é
o comandante em chefe das Forças Armadas. Isso é inédito. Porque essa
doutrina militarista era invocada para o Exército derrubar o presidente.
Era o contrário.
ConJur — Que outros impactos teve o antijudiciarismo?
Lynch — Então, o antijudiciarismo passa a crescer. Ao mesmo
tempo, os setores conservadores já são antijudiciaristas. Sejam os
militares, sejam os culturalistas, sejam os evangélicos, sejam os
conservadores de costumes. A esquerda, por causa da queda do PT, também
tem o discurso antijudiciarista, “garantista”. Os próprios juristas que
eram progressistas, que apostavam no ativismo, começam a recuar e a
sustentar a necessidade de autocontenção do Poder Judiciário. Nesse
contexto que o Supremo começa a recuar. E vai usar maneiras de
sobreviver e tentar defender a democracia. Uma das medidas é evitar
decisões monocráticas sobre temas muito polêmicos ou tratar de
confirmá-las quase imediatamente no Plenário, e quase sempre por
unanimidade.
Julga-se que é possível controlar o Congresso, mas
não o Supremo Tribunal Federal. Aí tem esses movimentos que pedem o
fechamento da Corte, tem o inquérito dos atos antidemocráticos. O
Supremo está se segurando, ganhando tempo, esperando que Bolsonaro
enrole a corda em volta do próprio pescoço e se enforque. O fato é que,
hoje, o Supremo está enfrentando uma tentativa de revolução
antijudiciarista.
ConJur — O que diferencia a “lava jato” e o lavajatismo do judiciarismo?
Lynch — O lavajatismo foi uma expressão contemporânea do
judiciarismo. O judiciarismo foi uma doutrina própria do liberalismo
brasileiro, segundo a qual, no ambiente tradicionalmente oligárquico ou
autoritário, é preciso apostar no Poder Judiciário como uma terceira
força imparcial, defensora da Constituição e dos valores da
Constituição, que são liberdade, república e democracia, para romper o
domínio oligárquico ou autoritário. O principal inventor desse discurso é
o Rui Barbosa. Então, ele usou o Judiciário contra a ditadura do
marechal Floriano Peixoto, depois, contra as veleidades autocráticas do
presidente Hermes da Fonseca. E aí se cria uma escola. Por exemplo, a
banda de música da UDN era toda judiciarista. Quando Café Filho é
impedido de voltar à Presidência da República pelo Exército, o
judiciarismo vai impetrar um mandado de segurança no Supremo Tribunal
Federal. O Ulysses Guimarães era um avatar do Rui Barbosa. Sobral Pinto,
embora fosse de direita, era um avatar do Rui Barbosa. Sempre que há um
jurista falando em liberdade, erguendo a Constituição contra o
arbítrio, ele está seguindo a tradição do Rui Barbosa.
O
lavajatismo foi uma expressão contemporânea dessa linha, só que em
contexto diferente. O Brasil já se democratizou. Naquele tempo,
realmente tinha ameaças oligárquicas e autoritárias, do Exército, a toda
hora. Agora, o que a “lava jato” fez foi relançar esse discurso em um
contexto que já era democrático, embora existisse crise no sistema
representativo. Na crise do sistema representativo, tem gente que fala
em populismo judiciário. Então o populismo judiciário aparece e depois
se sucede o populismo reacionário do Bolsonaro.
A “lava jato” é
uma manifestação contemporânea desse discurso mais amplo do
judiciarismo, que faz parte do liberalismo brasileiro. É aquela coisa de
classe média contra a corrupção, que o Judiciário vai transformar o
país em uma república de verdade. Só que, como sabemos, tudo isso deu
com os burros n’água. Esse pessoal fez uma jornada de otários. Eles
esquentaram a cama para os reacionários deitarem. Acabaram ficando sem
nada e criaram uma situação de extremo perigo para a república e a
democracia brasileiras.
O Supremo percebeu que tinha que recuar,
que tinha que começar a normalizar de novo as suas relações com o
Congresso depois da eleição do Bolsonaro, até para poder enfrentar as
veleidades autocráticas do Executivo. Mas como se faz isso? O próprio
Bolsonaro tenta explorar esse sentimento antilavajatista depois da queda
de Moro, ele está assegurando impunidade para todos. O lema do
autoritarismo é impunidade. E de alguma maneira o Supremo é obrigado
também a negociar. Não digo negociar impunidades, mas a Corte precisa
fazer negociações com políticos porque eles podem ser aliados na
preservação da democracia. Essa é uma operação muito delicada. Eles têm
que recuar do lavajatismo.
E qual é a maneira de se reduzir a
pressão antilavajatista e ao mesmo tempo tentar minar Bolsonaro e
renormalizar a política brasileira? É anulando as ações que tiraram Lula
do jogo político. Porque a retirada do Lula do jogo político foi feita
para evitar o retorno dos “corruptos”. Quando se olha para tudo o que
aconteceu de 2013 a 2018, fica a impressão de que foi um grande período
de exceção, que eu chamo de revolucionário por causa disso. Porque
revolução não é necessariamente marxista ou boa. É um período de caos, é
um período de transição para outro regime, em que as coisas saíram do
lugar. Então, a eleição parece ilegítima porque retirou o candidato que
estava em primeiro lugar nas pesquisas. E agora está sendo feito um
movimento de tentar fechar esse ciclo e restabelecer o equilíbrio
político natural do país, que não pode ser restabelecido se o Lula não
voltar ao tabuleiro.
Os ministros atuais do Supremo são muito inteligentes. Eles são a nata da elite da república.
ConJur
— A "lava jato" surgiu com a proposta de supostamente combater a
corrupção. Mas, nesse suposto combate à corrupção, praticaram diversas
ilegalidades. Como avalia isso?
Lynch — Houve uma coisa de que os fins justificam os meios.
Eles achavam que valia a pena passar por cima das leis. Na verdade, eles
não acreditavam no sistema penal brasileiro. Eles achavam que havia uma
espécie de descolamento entre o ideal de fazer justiça e o ideal de
aplicar a lei. Então, para se conseguir justiça, era preciso torcer a
lei ou a jurisprudência ou mudar a doutrina. Era preciso fazer algumas
traquinagens. Mas tudo isso era sempre compensado com a necessidade de
você atingir fins maiores.
Eu não acho que, no começo da "lava
jato", eles achavam que iam ter que prender Lula ou coisa do gênero. Mas
conforme a coisa foi andando, foram vendo que tinham que ir piorando a
situação porque o inimigo é mais poderoso, então foram cometendo
ilegalidades que achavam que eram menores ou que podiam ser vendidas
como legais, porque no Judiciário é assim. É tudo uma questão de forma.
Então eles foram forçando a barra diversas vezes para você atingir fins
maiores. E nem importa se no fim das contas Lula é condenado sem provas,
porque se sabe que no fundo ele é culpado. Eles não precisam de provas
para saber se ele é culpado. E Lula é uma força que pode desfazer tudo
que a “lava jato” fez e eventualmente colocar Moro e Dallagnol na
cadeia. Então é preciso eliminá-lo.
E repito que eles eram
ingênuos. Moro embarcou no governo Bolsonaro, que veio para aparelhar
todas as instituições do Brasil. Ele leva mais de um ano para perceber
que o programa do Bolsonaro é liquidar com o mundo que tornou Moro
possível, que é o mundo da autonomia da Polícia Federal, da autonomia do
Judiciário, da autonomia do Ministério Público, do discurso
liberal/republicano. Isso mostra que Moro é um sujeito muito pouco
traquejado em política. E há outras coisas. Na “vaza jato”, mostra que
Dallagnol tinha bolado um monumento para a “lava jato”. Tipo o monumento
aos heróis do Forte de Copacabana, que tem na Avenida Atlântica. Isso é
um grau muito alto de ingenuidade, de tolice, de falta total de
compreensão do seu lugar político.
Teve uma mistura de
voluntarismo, de ingenuidade, de tolice, de falta de cálculo, de falta
de conhecimento político. Por isso que chamo esse movimento de
tenentismo togado. Porque os tenentes também eram assim, achavam que iam
se levantar, dar uns tiros, bombardear o palácio do governo e regenerar
o país. Aí teve a Revolução de 1930 e três, quatro anos depois os
tenentes acabaram. Uns ficaram a favor do Getúlio, outros ficaram
contra, mas acabou o movimento tenentista. E o que venceu foi o Estado
Novo.
ConJur — Jair Bolsonaro foi eleito em 2018 com uma
grande ajuda da “lava jato”. Sergio Moro foi para o governo e, quase um
ano e meio depois, saiu completamente em descrédito com os
bolsonaristas. Qual foi o impacto da ida de Sergio Moro para o governo
para o lavajatismo?
Lynch — Foi um golpe mortal. Ali os liberais desembarcaram. Os
“liberais republicanos”, “liberais democratas”, que não são os
neoliberais. Esses da imprensa, como Pedro Dória, Miriam Leitão. Esse
pessoal que representa um pouco esse ideal de liberal democrata
republicano de classe média, classe média alta, leitor de jornal, da Veja, da Exame. Esse pessoal todo desembarcou quando Sergio Moro foi para o governo Bolsonaro. E Moro virou ídolo dos reacionários.
Moro
queria ser ministro do Supremo, ele se dava bem com alguns ministros.
Pessoalmente, acho que Moro não tem nenhum interesse em ser presidente.
Nunca teve. Ele é dessa geração judiciarista, que sabe muito bem que um
ministro do Supremo tem uma vida muito mais mansa, muito mais rica e
muito mais poderosa do que qualquer presidente da República. Mas no meio
do caminho teve a “vaza jato”. Aí o problema começou a ser como que o
Supremo ia lidar com isso, como ia conseguir desfazer o que fez sem
parecer que estava desfazendo. Porque ficou parecendo que o judiciarismo
e o lavajatismo eram para desembocar no Bolsonaro. E Bolsonaro
capitalizou o sentimento de uma classe média que não era reacionária
quando ele levou Moro para o governo. Isso ajudou a vitória dele também,
porque a vitória dele é a desse esse conservadorismo junto com o
neoliberalismo do mercado de um lado e o lavajatismo da classe média
antipetista do outro. E Moro vai ficando isolado.
ConJur — Sergio Moro era mais popular do que Bolsonaro em 2018, certo?
Lynch — Sim. Só que ele foi sendo usado pelo Bolsonaro e se
desgastando. E foi jogado fora. Moro deixou alguns viúvos, com essa
coisa doida de que não há nada mais importante na política do que a
ausência de corrupção. Como se fosse uma coisa religiosa, o primeiro
pecado do mundo. E como se o combate à corrupção fosse mais importante
do que igualdade social, liberdade, democracia.
https://www.conjur.com.br/2021-jun-27/entrevista-christian-edward-cyrill-lynch-professor-uerj2