Um caso exemplar de contrabando de madeira amazônica para os Estados Unidos – e o papel de Ricardo Salles
Colado na porta de um dos
escritórios da loja localizada no bairro do Bronx, no norte da ilha de
Manhattan, em Nova York, o adesivo anuncia: “I love wood”. Ali, todos
parecem gostar de madeira. A loja vende o material a preço de ouro e tem
preferência pela Tabebuia serratifolia, nome científico do ipê amarelo,
estrela do mercado por sua dureza, sua resistência e pelo traço suave
de seus veios. Na tarde de 12 de novembro passado, nos fundos da loja,
empilhados em prateleiras, havia enormes deckings de ipê, como é chamado
o corte que resulta em pranchas alongadas e grossas. Da loja, depois de
trabalhado nas marcenarias ao gosto do freguês, o ipê, ou “iron wood”,
reaparecerá nos terraços do Upper East Side, nas coberturas do Soho, nas
varandas do Brooklyn. “É uma madeira de luxo, exótica, muito cobiçada
no mercado norte-americano”, diz o porta-voz para o tema de florestas do
Greenpeace, Daniel Brinds.
Entre os funcionários da loja do Bronx, nenhum sabia informar com
precisão sobre a origem daquele ipê, cujo metro cúbico é vendido ali por
6 mil dólares. “Sei que a madeira é importada do Brasil, mas não sei
dizer diretamente de onde vem”, disse uma funcionária, mal disfarçando a
impaciência. Ninguém sabia, ou dizia não saber, que os deckings de “ipe
wood” ou “tropical hardwood” nos fundos da loja escondem uma história
exemplar de crime ambiental, saga descoberta pela piauí que começou no
sul do Pará em fevereiro de 2019 e que o Ibama chegou a apurar em sigilo
até a investigação ser enterrada, sem qualquer punição aos criminosos,
por uma decisão do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ele
próprio sob investigação por suspeita de colaborar com um esquema de
contrabando internacional de madeira da Amazônia.
Em parceria com o consórcio internacional de jornalismo investigativo
Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) e o Center for
Climate Crime Analysis (CCCA), a piauí identificou um lote de ipê
extraído ilegalmente no Pará e conseguiu reconstituir todo o trajeto da
madeira clandestina até a loja em Nova York. O lote é constituído por 53
metros cúbicos de ipê amarelo, o equivalente à derrubada de 14 árvores,
suficiente para carregar dois caminhões. Da floresta no Pará, essa
quantidade de madeira saiu custando em torno de 21 mil reais. Quando
chegou às lojas de Nova York, depois de percorrer 5,6 mil quilômetros
por terra e mar durante três meses, seu preço já estava em 1,8 milhão de
reais. No percurso, entre fevereiro e abril de 2019, valorizou 89
vezes, cinco vezes mais do que a cocaína – não à toa, atraiu o interesse
da maior facção criminosa do país, o PCC (Primeiro Comando da Capital).
Os detalhes da reconstituição da trilha do ipê amarelo, espécie
campeã de exportação pelo Brasil, comprovam a participação de um
importante traficante de cocaína ligado à facção e a colaboração com o
crime por parte de setores do poder público, cuja missão é justamente
combater o contrabando de madeira, além de evidenciar que a saga do ipê
não é um fenômeno aleatório, motivado pela pobreza, mas resultado de um
projeto criminoso organizado. Encorajados pelo governo Bolsonaro,
madeireiros e grileiros avançam com força na destruição da floresta.
Entre agosto de 2020 e julho de 2021, 13,2 mil quilômetros quadrados de
mata foram devastadas no bioma, o maior índice em 15 anos, segundo
levantamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais)
divulgado em novembro. Um terço desse desmatamento ocorreu em terras
públicas. No Pará, estado líder na destruição da Amazônia, 3,3 milhões
de metros cúbicos de madeira (suficiente para encher 37 mil caminhões)
foram extraídos ilegalmente dessas áreas entre 2008 e 2020, de acordo
com estimativa da CCCA baseada em dados do Inpe.
“É fato que uma grande quantidade de madeira de origem ilegal entra
nos mercados europeu e norte-americano atualmente. Prova disso é a
inconsistência substancial entre a quantidade de áreas na Amazônia
autorizadas para extração madeireira e a quantidade de madeira
produzida. Isto indica que uma grande quantidade de madeira é originária
de áreas não autorizadas”, diz Rhavena Madeira, diretora do CCCA no
Brasil.
Quando a noite começa a cair no sul do Pará, dezenas de caminhões
deixam o fundo da mata rumo ao asfalto da BR-163, a rodovia de quase 4,5
mil quilômetros que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará.
Velhos e barulhentos, os veículos movem-se devagar, abarrotados de
pesadas toras de ipê, jatobá e cumaru, todas madeiras de alto valor
comercial e extraídas criminosamente, horas antes, da Floresta Nacional
do Jamanxim, uma das mais desmatadas do país. Os motoristas confiam no
breu noturno para driblar a fiscalização. É um cuidado exagerado,
herdado de outros tempos, pois atualmente a presença de fiscais dos
órgãos ambientes é praticamente nula na região.
Boa parte dos caminhões tem o mesmo destino: o distrito de Isol, no
município de Novo Progresso, um lugarejo poeirento às margens da BR-163,
com uma dúzia de ruas sem asfalto e casas simples. No distrito, onde
estão instaladas cinco grandes serrarias, respira-se madeira,
literalmente. O cheiro das toras cortadas impregna o ar, em meio ao
ronco incessante das serras. Em fevereiro de 2019, no período de apenas
doze dias, Isol recebeu um carregamento de 970 metros cúbicos de ipê
amarelo nas formas de toras, pranchas e deckings. A madeira encheu 25
caminhões.
Examinando as guias florestais, documentos oficiais que registram
todo o percurso da madeira no estado do Pará, descobriu-se que aquela
madeira fora apreendida e doada pelo Ibama à prefeitura de Itaituba,
cidade às margens do rio Tapajós, distante 400 quilômetros de Novo
Progresso. A prefeitura, por sua vez, vendeu o material em leilão, por
335 mil reais, para a JMS Alexandre Serraria. Dentro desse imenso lote
de madeira, estavam os 53 metros cúbicos de ipê cujo percurso a piauí
rastreou. Encerrado o leilão em Itaituba, a madeira, ainda segundo as
guias florestais, foi transportada por quase 500 quilômetros em direção
ao sul, até chegar ao distrito de Isol, onde fica a sede da JMS
Alexandre Serraria. Em seguida, a JMS vendeu o lote de 53 metros cúbicos
de ipê para a Canaã do Norte Madeiras, cuja sede também fica em Isol. A
Canaã do Norte, por sua vez, revendeu para uma terceira empresa, que
levou a madeira até o porto de Barcarena, na região metropolitana de
Belém, de onde o carregamento partiu com destino aos Estados Unidos.
Essa é a história oficial.
A história real começa com uma fraude. A prefeitura de Itaituba
jamais fez um leilão de 970 metros cúbicos de ipê amarelo. “Nunca
vendemos ipê algum e nem venderíamos”, diz o procurador-geral de
Itaituba, Diego Cajado Neves. “Precisamos muito de madeira para
construir pontes e palafitas.” Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo,
ex-presidente do Ibama, o instituto que cuida do meio ambiente no país,
confirma: “Essa venda por parte da prefeitura não faz sentido. Se a
prefeitura tivesse recebido doação de madeira por parte do Ibama, não
poderia ter vendido.” Era a primeira fraude.
A segunda fraude está no transporte da madeira por 500 quilômetros
até o distrito de Isol. As guias florestais informam que o transporte
foi feito por 68 veículos – constam os números das placas nos
documentos. Ao checar as informações, a piauí descobriu que seis dessas
placas não são de caminhões com carrocerias capazes de levar a madeira.
Correspondem a dois carros de passeio – um Fiat Palio e um Gol – e
quatro motocicletas, que jamais conseguiriam levar toda aquela carga por
500 quilômetros. Tudo indica que a história do leilão de madeira pela
prefeitura de Itaituba foi apenas um subterfúgio criado por
contrabandistas de madeira para “esquentar” ipês extraídos ilegalmente
da floresta do Jamanxim.
Segundo a Junta Comercial do Pará, o proprietário da JMS é João
Marcos da Silva Alexandre, um rapaz de 28 anos que, ao menos no papel,
ingressou cedo na atividade madeireira: em 2015, com apenas 22 anos,
abriu sua primeira empresa do ramo, em Novo Progresso, e construiu um
currículo de infrator. Segundo dados do Ibama, a JMS acumula 300 mil
reais de multas por infrações ambientais. Hoje, Alexandre trabalha como
pedreiro em Sinop, no Mato Grosso, com salário aproximado de 1,5 mil
reais – pouco para quem, no papel, é um grande atacadista do setor
madeireiro. Em depoimento a um fiscal do órgão ambiental, o “gerente
geral” da empresa, Douglas Gaspar Barbosa, disse que Alexandre
“emprestou o nome” para a abertura da firma em troca do pagamento das
mensalidades de um curso superior de engenharia civil em Cuiabá, mas não
informou quem seria o real dono da empresa. (Barbosa, que não foi
localizado pela reportagem, é filho de um antigo servidor do Ibama
demitido em 2006 por corrupção e grilagem de terras).
Já a sede da Canaã nem fica no distrito de Isol. Em outubro passado, a
piauí visitou a região e constatou que seu endereço formal não existe.
Embora todos se conheçam no distrito, nenhum dos dez moradores abordados
pela reportagem disse conhecer a serraria nem seu proprietário. Um
deles, que pediu para não ser identificado por medo de retaliação, deu
uma pista: existe no distrito a figura do “vendedor de nota”, dono de
empresas que só existem no papel e que servem para “esquentar” madeira
extraída ilegalmente da Floresta Nacional do Jamanxim.
O dono formal da Canaã do Norte apresenta os mesmos indícios de ser
um testa de ferro no esquema. Com 31 anos, Antonio Carlos Rodrigues de
Oliveira, conhecido por Tonhão, tornou-se um dos maiores grileiros de
áreas públicas no Pará. A exemplo de Alexandre, ele também abriu sua
primeira madeireira muito jovem, aos 20 anos de idade, em 2010. Dois
anos depois, fiscais do Ibama constataram que a empresa era fantasma, o
que lhe rendeu uma ação penal na Justiça por ter inserido dados falsos
no Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais, o
Sisflora, programa que o Pará usa para controlar a circulação de madeira
no estado. A intenção de Tonhão, de acordo com a acusação do Ministério
Público, era “esquentar” 2,1 mil metros cúbicos de madeira ilegal. Ele
também é réu em quatro ações civis na Justiça Federal, acusado de
desmatar ilegalmente 2,8 mil hectares em áreas protegidas no sul do
Pará.
No início da década de 2010, quando já era dono de sua primeira
madeireira, Tonhão trabalhava como tratorista para o pecuarista e
ex-vereador de Novo Progresso Armando Anversa Faccin, que já foi
condenado judicialmente a reparar uma área desmatada por “atividade
madeireira ilegal”. Tonhão também foi funcionário do ex-vice-prefeito de
Novo Progresso, Ricardo Faccin, sobrinho do ex-vereador. Os Faccin
negam ter relações comerciais com Tonhão. “Ninguém da nossa família
nunca trabalhou no setor madeireiro”, garante o ex-vice-prefeito. Hoje,
Tonhão, o grande grileiro, tem uma modesta barraca de lanches no Centro
de Novo Progresso. Ele não quis dar entrevista. “Desculpe, amigo, não
tenho informação sobre esses assuntos”, escreveu no WhatsApp, antes de
bloquear a piauí no aplicativo.
Criada em 2006 pelo então presidente Lula, a Floresta Nacional do
Jamanxim ocupa 1,3 milhão de hectares a poucos quilômetros da margem
oeste da BR-163. Deveria ser uma floresta intocada, mas a proximidade da
estrada, principal via de escoamento da soja de Mato Grosso para os
portos do Pará, vem arrasando com a mata. De acordo com o Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Jamanxim é a terceira floresta
nacional mais desmatada da Amazônia. Quase 15% de sua área foi
substituída por pastos. Imagens de satélite mostram a floresta sendo
rasgada por centenas de quilômetros de estradas de terra, que os locais
chamam de “ramais”. Em 2017, o governo de Michel Temer enviou um projeto
ao Congresso reduzindo em 27% o tamanho da unidade de conservação, mas
recuou após intensas críticas por parte de ambientalistas e de
organizações não-governamentais.
Espremido de um lado por Jamanxim e de outro pelas terras indígenas
Baú e Mekragnotire, do povo caiapó, o perímetro urbano de Novo
Progresso, com seus 25 mil habitantes, fica às margens da BR-163. Os
primeiros moradores, vindos de Mato Grosso e da Região Sul, chegaram
durante a construção da rodovia, em 1973, durante a ditadura militar.
Desde então, a destruição da floresta é a grande atividade econômica do
município, seja para extrair madeira, abrir novos pastos ou desbravar
áreas de garimpo. Na cidade, há dezenas de pontos de venda de máquinas
para o garimpo e lojas de compra e venda de ouro. A estátua de um
garimpeiro, com mais de dois metros de altura, enfeita o cruzamento das
duas principais avenidas. A devastação catapulta a violência: de acordo
com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Novo Progresso
registrou um índice de 100 mortes violentas por 100 mil habitantes em
2020, mais que o dobro do verificado no Pará e no Brasil, no mesmo
período. O crime organizado anda lado a lado com a destruição da
floresta.
Até o prefeito Gelson Luiz Dill, do MDB, tem seu quinhão de terra em
área pública. Sua fazenda Carapuça, às margens do rio de mesmo nome,
ocupa 784 hectares no meio do parque nacional do Jamanxim (a leste da
BR-163), parte ocupado por pasto e boi. Em novembro de 2015, Dill
registrou a área em seu nome no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Criado
pelo governo federal em 2012, o CAR é um sistema autodeclaratório cujo
objetivo é regularizar as áreas de proteção ambiental dentro de cada
propriedade rural – cabe ao dono registrar o polígono do imóvel e
delimitar a reserva de mata nativa a ser preservada. Apesar da
finalidade ambiental, o CAR tem sido utilizado para viabilizar a posse
ilegal de terras públicas, sobretudo na Amazônia.
Na cartilha do grileiro, o primeiro passo é registrar no CAR
determinada área dentro de unidades de conservação ou terras indígenas,
todas públicas, como se fosse particular. Em seguida ele invade a área e
retira a madeira com valor de mercado. Depois vem o fogo e o plantio de
capim, formando o pasto para o boi, que atesta a ocupação da área, à
espera de uma nova lei que atualize a data limite para a regularização
fundiária do local – a norma atualmente em vigor valida a posse de áreas
em terras públicas até 2008.
Apesar de o registro de propriedade ter sido feito em 2015, Dill
garante que a terra já estava em suas mãos antes da criação do parque de
Jamanxim em 2006. “Quem invadiu não foram os produtores rurais, mas o
governo federal, na época do PT. Se tem alguém injustiçado nessa
história é o produtor”, diz. Dill é bolsonarista, assim como a maioria
esmagadora dos habitantes de Novo Progresso, onde 72,7% da população
votaram em Jair Bolsonaro no primeiro turno de 2018. Na entrada da
cidade, um outdoor parcialmente rasgado traz a foto do presidente ao
lado da frase “Por Deus, por nossas famílias e por quem produz”.
A volúpia do desmatamento que há décadas alimenta Novo Progresso
encontra pouca resistência nos órgãos públicos de repressão. Exceto por
equipes do Ibama que vez ou outra ocupam o escritório local do órgão
para operações pontuais, a fiscalização é quase nula na região. Durante o
dia, percorrendo a floresta pelos “ramais”, a sensação é a de que o
percentual de floresta derrubada é muito maior do que apontam os
satélites do Inpe, com áreas imensas reduzidas a tocos de árvores
calcinados em meio ao capim alto que será o alimento do boi. Não é raro
ouvir o barulho das motosserras, operadas por homens contratados
informalmente pelos “gatos”, os intermediadores de mão de obra na
região, sob condições degradantes. “Já vi um homem morrer na minha
frente quando o tronco que a gente serrava caiu pro lado dele”, diz um
desses trabalhadores, de 36 anos, que só se identificou com seu primeiro
nome, Redenilson.
Tonhão, o ex-funcionário da família Faccin e dono da Canaã do Norte,
por onde passou o carregamento de ipê amarelo, tratou de reservar o seu
quinhão na grande farra da grilagem e do desmatamento dentro da
Jamanxim. Em abril de 2016, registrou para si, por meio do CAR, uma área
de 5,7 mil hectares (equivalente ao bairro Barra da Tijuca, no Rio)
dentro da floresta. Batizou sua área como Fazenda Toca da Onça. O passo
seguinte, como convém à cartilha do grileiro, foi desmatar o local.
Atualmente, metade da propriedade é ocupada por pastos, de acordo com
dados do Inpe. Não há acesso à Toca da Onça por terra. Dez quilômetros
antes da fazenda, uma barreira com corrente e cadeado impede a passagem
na única estrada de chão batido, muito mal conservada, que leva à
propriedade. Nas imediações, é possível detectar um ou outro ipê
amarelo, que muito provavelmente só segue intacto na natureza porque não
atingiu o ponto de corte. De 2016 a 2020, o CCCA, parceira da piauí
nesta reportagem, estima que foram extraídos 80 mil metros cúbicos de
madeira da Toca da Onça, dos quais 76,5 mil (95%) em 2019, exatamente o
ano em que a madeireira de Tonhão comprou o lote ilegal de ipê amarelo
que foi parar em Nova York.
Treze dias depois de pagar 50 mil reais pela madeira da JMS, a Canaã
do Norte, de Tonhão, revendeu o carregamento para outra empresa, a
Coexpa Comércio e Exportação de Produtos da Amazônia, com sede em Belém.
Embolsou 437 mil reais, nove vezes mais do que pagara duas semanas
antes, e isso sem fazer qualquer beneficiamento na madeira que
justificasse um lucro tão grande. O procurador Ubiratan Cazetta, do
Ministério Público Federal no Pará, explica os números da operação. “É
comum os contrabandistas de madeira simularem altos lucros na compra e
venda de madeira para justificar a entrada do dinheiro obtido com a
venda final do próprio produto ou de outros crimes, como corrupção e
tráfico de drogas. É um caso típico de lavagem.”
Assim como a JMS e a Canaã do Norte, a Coexpa também tem um histórico
de infrações ambientais: a empresa já foi autuada em 225 mil reais pelo
Ibama, e seu proprietário, Bruno Leão Atayde, é réu em duas ações
penais na Justiça estadual paraense, acusado de delitos contra o meio
ambiente. Consultada sobre o lote ilegal de ipê amarelo, a Coexpa emitiu
uma nota em que afirma ter prestado todas as informações para “o pleno
esclarecimento dos fatos perante os órgãos ambientais competentes”. Na
nota, a Coexpa acrescenta que faz “rigoroso procedimento de análise
interna” de seus produtos e fornecedores, avaliando “requisitos como
licenciamento ambiental, existência de lastro comprobatório de origem de
produtos, antecedentes de autuação ambiental, bem como regularidade nos
sistemas oficiais de controle, tanto em âmbito estadual como federal.”
Não disse nada sobre a falsificação das guias florestais do ipê, que
estão na origem da fraude.
As guias florestais apontam um caminho estranho para o ipê. Depois de
viajar 500 quilômetros em direção ao sul entre os dias 7 e 18 de
fevereiro de 2019, os 53,3 metros cúbicos pegaram o caminho inverso,
viajando 800 quilômetros em direção ao norte, no dia 11 de março de
2019, rumo ao porto de Santarém. Tudo indica que, na verdade, a viagem
foi outra: a madeira foi retirada criminosamente de algum ponto da
região de Novo Progresso (possivelmente da Fazenda Toca da Onça, de
Tonhão, no meio do Jamanxim) e levada em caminhão para o porto de
Santarém, de onde a Coexpa tratou de escoá-la em balsas pelo rio
Amazonas, até o porto de Barcarena, na área metropolitana de Belém, já
com destino certo: a empresa J. Gibson McIlvain, grande atacadista de
madeiras do estado norte-americano de Maryland e importadora frequente
de ipês brasileiros.
Enquanto o ipê viajava pelo Amazonas, a Aimex (Associação da
Indústrias Exportadoras de Madeira do Estado do Pará), da qual a Coexpa
faz parte, pressionava o Ibama para recuar na decisão de inserir o ipê
amarelo na lista de espécies sob risco de extinção, organizada pela
Cites (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da
Flora e da Fauna Silvestres, ligada à ONU). A proposta surgira no fim
de 2018, ainda na gestão de Michel Temer, e, caso fosse implantada,
tornaria mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, com a
exigência de certificado de origem da madeira pelo exportador (o que
inviabilizaria a remessa, para o exterior, do lote dessa espécie vendido
pela Canaã do Norte à Coexpa). “Não se justifica estabelecer
procedimentos que estão indo na contramão das medidas adotadas pelo
governo do presidente Jair Bolsonaro, de desregulamentar procedimentos
de controle desnecessários”, escreveu a presidência da Aimex em ofício
ao Ibama.
A pressão sobre o governo brasileiro também vinha dos importadores,
sobretudo os norte-americanos (segundo o Ibama, 90% do ipê extraído no
Brasil é exportado). Naquele mês de março de 2019, Salles viajou para os
Estados Unidos na comitiva do presidente Bolsonaro. Não consta na
agenda oficial dele reuniões com representantes das importadoras de
madeira norte-americanas, mas, coincidência ou não, exatamente naqueles
dias o governo recuou da intenção de inserir o ipê na lista da Cites. Em
comunicado à Câmara dos Deputados, o ministro Ricardo Salles disse
haver “falta de estudos científicos específicos” e “necessidade de
consultas mais detalhadas” ao Ibama. Desde então, a proposta segue
engavetada.
Naquele fim de março, logo após o ministro voltar ao Brasil, lobistas
da IWPA (International Wood Products Association), entidade que reúne
as maiores importadora de madeira dos Estados Unidos, inclusive a J.
Gibson MacIlvain, comentaram o recuo do governo brasileiro em relação ao
ipê. “Isso confirma o que ouvimos do pessoal da embaixada do Brasil na
sexta-feira”, escreveu Joseph O’Donnell, diretor da IWPA, para uma
lobista da entidade, em e-mail de 26 de março daquele ano obtido pela
piauí. Finalmente, o caminho estava livre para a exportação do ipê. Ao
chegar ao porto de Barcarena, o lote de deckings foi dividido em três
contêineres embarcados no navio cargueiro Balsa em 10 de abril de 2019.
No dia seguinte, a embarcação zarpou do Pará com destino ao porto de
Cristóbal, Panamá. Oito dias depois, o carregamento foi inserido em
outro navio, que rumou para Baltimore, um dos principais dos Estados
Unidos, no estado de Maryland, onde chegou em 14 de maio. Do porto de
Baltimore, a madeira viajou mais 27 km até a sede da J. Gibson McIlvain,
localizada no município de Perry Hall. A J. Gibson McIlvain não vende
diretamente para o consumidor final, apenas para pátios em todos os
Estados Unidos – entre eles, a loja no Bronx, em Nova York.
A J.Gibson McIlvain não possui nenhuma ação por crime ambiental nos
Estados Unidos e, durante as investigações tanto da piauí quanto do
Ibama, não apareceu nenhuma suspeita de que a empresa tivesse
conhecimento prévio da origem ilegal do ipê amarelo que recebeu.
Procurada, a empresa não se manifestou. Em seu site, a McIlvain se diz
orgulhosa do processo rigoroso que utiliza para garantir qualidade e
legalidades da madeira da Amazônia. “O processo começa com a concessão
de terras no Brasil. O governo local tem um excelente programa florestal
e é fácil rastrear o histórico de negócios e as fontes de cada
fábrica”, diz.
No Brasil, comercializar madeira de origem ilegal é crime com pena de
até quatro anos de reclusão, sem multa. Nos Estados Unidos, a punição,
prevista no Lacey Act, é mais dura: vai até cinco anos de prisão, com
multa de 500 mil dólares, o que equivale a quase 3 milhões de reais ao
câmbio atual. O combate ao contrabando de madeira nos EUA melhorou com o
fim da gestão de Donald Trump, na avaliação de Daniel Brindis, do
Greenpeace. Mas poderia ser mais efetivo. Uma das falhas da
fiscalização, diz ele, é o excessivo apego à formalidade documental. “O
governo se apega muito ao que está no papel, mas já está provado que, em
alguns casos, os documentos podem ser fraudados na origem”, diz ele.
“Infelizmente, o governo norte-americano ainda é suscetível ao lobby do
setor madeireiro.” Para Rhavena Madeira, do CCCA, falta efetividade na
aplicação da Lacey Act. “Esses regulamentos têm deficiências de
implementação e limitações de investigação ligados à dificuldade da
rastreabilidade”, afirma. “O mesmo ocorre na Europa. As autoridades
competentes dificilmente conseguem identificar todos os operadores
atuantes na cadeia e em muitos países não há operações de controle e
fiscalização sistemáticas. Faltam procedimentos e interpretações
uniformes.”
Em agosto de 2020, cinco meses após engavetar a proposta de tornar
mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, o então ministro do
Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi além: nomeou André Heleno Silveira,
um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) sem qualquer
experiência na área ambiental, para cuidar da Coordenação de
Inteligência de Fiscalização do Ibama, um setor vital no combate ao
crime organizado por trás da destruição da Amazônia. Semanas depois,
Salles designou o policial militar aposentado Walter Mendes Magalhães
Júnior como superintendente do órgão no Pará. Silveira e Magalhães
Júnior cuidaram de desmontar os núcleos de inteligência, tanto na matriz
em Brasília quanto na filial em Belém, respectivamente (o Ibama possui
pequenos núcleos de inteligência distribuídos pelos 26 estados),
trocando servidores experientes por pessoas sem qualificação.
“Claramente o objetivo era inviabilizar qualquer investigação mais
aprofundada contra os grileiros, madeireiros e garimpeiros”, diz um
funcionário de alto escalão do órgão federal, sob anonimato, para evitar
retaliações.
Meses mais tarde, em maio de 2020, tanto Salles quanto Magalhães
Júnior foram alvos da Operação Akuanduba, da Polícia Federal, que
investiga a participação de ambos em um esquema de facilitação do
contrabando de madeira amazônica de origem ilegal – também são apurados
os crimes de prevaricação, advocacia administrativa e corrupção. Segundo
a PF, após Salles encontrar-se em Brasília com representantes da Aimex,
do Pará, em fevereiro de 2020, Magalhães Júnior, supostamente por ordem
do então ministro, assinou licenças de exportação retroativas para
legalizar 153 mil metros cúbicos de ipê e jatobá extraídos ilicitamente
no Pará e apreendidos no mês anterior nos Estados Unidos. Pouco depois
de a investigação da PF vir à tona, Salles deixou o cargo de ministro.
Examinada em retrospectiva, a extinção do setor de inteligência em
2019 favoreceu as quadrilhas que atuam no contrabando de madeira ilegal
para exterior. Não há notícia de que o sucateamento do setor de
inteligência tenha tido o objetivo específico de impedir a descoberta da
conexão do ipê amarelo exportado para Nova York, mas o fato é que a
decisão do ministro favoreceu os contrabandistas.
Ainda no primeiro semestre de 2019, os fiscais do Ibama suspeitaram
do tal leilão de madeira que teria sido promovido pela prefeitura de
Itaituba. No início de 2019, a prefeitura teria pedido à Secretaria de
Meio Ambiente do Pará que registrasse os créditos de uma imensa
quantidade de madeira em favor da serraria JMS: ao todo, eram 8,6 mil
metros cúbicos, dos quais 2,3 mil de ipê, suspostamente arrematados no
leilão. A inserção dos créditos no Sisflora, o sistema do governo
paraense que controla o transporte de madeira, é uma forma de legalizar o
produto. A secretaria aceitou o suposto pedido da prefeitura sem
contestar.
Os falsos créditos de madeira para a JMS foram incluídos no Sisflora
pelo então gerente do sistema, Victor André Holanda Pessoa, que ocupava o
cargo de chefe de Cadastro, Transporte e Comercialização de Produtos
Florestais da Secretaria do Meio Ambiente do Pará. Holanda Pessoa
chegara ao cargo em janeiro de 2019, pouco antes de fazer a inserção dos
dados. E chegara por cima. Fora indicado por Persifal de Jesus Pontes,
então chefe da Casa Civil do governador do Pará, Hélder Barbalho. A
indicação, no entanto, era mais do que uma temeridade.
Na época, Holanda Pessoa já era um dos principais alvos de uma
operação da Polícia Federal que investigava um grande esquema de tráfico
de cocaína dos portos brasileiros para a Europa protagonizado pelo PCC.
Filho de piloto e ligado à facção paulista, Pessoa tinha uma logística
própria para o transporte aéreo de cocaína: levava grandes cargas da
droga por helicóptero do Paraguai para um hangar em Americana, no
interior paulista, e de lá, em pequenos aviões, para outro galpão no
aeroporto de Tomé-Açu, no interior do Pará. Dali, transportava a cocaína
em carros e caminhões até os portos de Belém e Barcarena, de onde a
droga zarpava, oculta em contêineres, rumo a Europa. Em abril de 2018,
nove meses antes de ser nomeado pelo governo Barbalho, Holanda Pessoa
teve um carregamento de 513 quilos de pasta base de cocaína apreendido
pela PF no interior paulista. O motorista do caminhão que leva a droga
foi preso em flagrante – e Pessoa, meses depois, ganhou a promoção para
gerenciar o Sisflora no governo do Pará.
O narcotraficante do PCC ficou apenas quatro meses no cargo – ele
seria um dos 50 presos no ano seguinte pela Polícia Federal, acusados de
tráfico internacional de drogas, na Operação Além-Mar. Seu padrinho,
Persifal de Jesus Pontes, também caiu, mas por outro motivo: é acusado
de fraudar a compra de respiradores para pacientes infectados com o
coronavírus. Foi no ambiente comandado por esse tipo de figuras que os
contrabandistas legalizaram fraudulentamente a grande carga de madeira
amazônica (incluindo o ipê amarelo que foi parar em Nova York). Com
isso, conseguiram vendê-la para 18 estados brasileiros e para o
exterior, auferindo um lucro total estimado pelos fiscais do Ibama em
26,98 milhões de reais. “A madeira tem pelo menos duas grandes
utilidades para o narcotráfico: serve para lavar o dinheiro da atividade
e também para ocultar a própria droga nos navios rumo à Europa e
Estados Unidos”, diz Aiala Colares de Oliveira Couto, professor da UFPA
(Universidade Federal do Pará) que investiga o crime organizado na
Região Norte.
Antes que Pessoa fosse responsabilizado pelo contrabando da madeira, a
investigação do Ibama foi interrompida com o desmonte do setor de
inteligência do órgão ambiental patrocinado por Ricardo Salles.
“Estávamos perto de puxar esse novelo quando tudo foi por água abaixo”,
afirma um fiscal do órgão sob anonimato, devido ao temor de retaliação.
Com isso, o trabalho dos fiscais foi remetido para a Polícia Federal e o
Ministério Público Federal, que, por sua vez, considerou não haver
crime de âmbito federal e mandou o caso ao Ministério Público do Pará –
que denunciou até agora apenas um personagem da fraude: o dono da
Coexpa, Bruno Atayde Leão, por crime ambiental. Consultado pela piauí,
Pessoa, que atualmente responde em liberdade ação penal em que é acusado
de tráfico de drogas, associação criminosa e lavagem de dinheiro, disse
ter recebido as acusações “com perplexidade” e mandou dizer que está à
“disposição das autoridades competentes para, ao modo e tempo correto,
prestar quaisquer esclarecimentos que porventura se façam necessários”.
(colaborou Eduardo Goulart)
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