Bunge, Cargill, Cofco, Amaggi, ADM do Brasil, Viterra e General Mills adquiriram soja e milho em área em que “lavagem de grãos” é admitida por produtores e servidores públicos
Um esquema ilegal de escoamento de grãos em Mato Grosso, admitido
publicamente por fazendeiros e reconhecido por funcionários públicos,
pode ter levado soja e milho plantados sem licenciamento em terras
indígenas no estado – e dentro de áreas embargadas pelo Ibama – até
armazéns de algumas das maiores empresas globais de commodities.
Uma investigação conjunta da Repórter Brasil e O
Joio e O Trigo revela relações comerciais entre sete gigantes do
agronegócio (Bunge, Cargill, Cofco, Amaggi, ADM do Brasil, Viterra e
General Mills) e fazendeiros autuados pelo Ibama por cultivarem
irregularmente dentro das terras indígenas (TIs) Pareci, Utiariti e Rio
Formoso, do povo Paresí.
As negociações de soja e milho ocorreram em 2018 e 2019, período em que havia embargo sobre as áreas.
Contudo, as notas fiscais de venda dos grãos acessadas pela
reportagem não identificam as fazendas dentro das TIs como a local da
produção – isso inviabilizaria os negócios, já que é ilegal plantar e
também comprar produção de terras embargadas. Os documentos indicam
outras propriedades agrícolas como a origem dos grãos, mas todas são
vizinhas (em alguns casos, coladas) à TI e pertencentes aos mesmos
produtores multados pelo Ibama por levarem adiante lavouras irregulares.
É o caso de Eleonor Ogliari, que em maio de 2018 tomou uma multa de
quase R$ 9 milhões por manter atividade agrícola na terra indígena
Pareci e por impedir a regeneração da mata nativa em 1,6 mil hectares do
território. A mesma área foi embargada pelo Ibama semanas depois, em
junho de 2018, por estar semeada com milho transgênico – a legislação
brasileira veda o cultivo de organismos geneticamente modificados em
terras indígenas.
As coordenadas geográficas das autuações do Ibama incidem sobre uma
lavoura dentro da TI que é limítrofe à Fazenda Chapada do Sol –
propriedade registrada em nome de Eleonor Ogliari e separada do
território dos Paresí apenas pela estrada que o margeia. Foi dessa
propriedade que Bunge, Cargill e Cofco compraram milho e soja em 2018 e
2019.
Ao todo, a reportagem identificou cinco produtores multados pelo Ibama em 2018 por produzirem dentro das terras indígenas e que fizeram vendas durante a vigência dos embargos nas áreas para grandes tradings internacionais de grãos.
Essa proximidade entre as fazendas que constam nas notas fiscais como
a origem da produção e as terras indígenas abre espaço para a chamada “lavagem de grãos”,
quando um produtor mistura produção feita em unidades de conservação,
áreas griladas ou embargadas com soja e milho plantados e colhidos
legalmente, mascarando a procedência da parte irregular da lavoura.
Porém, no caso dos indígenas Paresí, a lavagem de grãos foi admitida publicamente por produtores e funcionários públicos que trabalham na região, em uma série de reportagens do programa Globo Rural, veiculada em março de 2019 – quando já havia embargo sobre a área.
Em um dos vídeos, um fazendeiro “parceiro” dos indígenas nas lavouras
de soja dá entrevista: “o trabalho é feito por eles e eu forneço
equipamentos e insumos. O resultado é dividido entre nós, meio a meio”, explicou Sérgio Stefanello ao repórter.
Ele também dá a entender que os grãos eram declarados como sendo
produzidos em suas propriedades fora da TI: “a soja vai sair em meu nome
[porque] o tempo da burocracia não é o mesmo tempo da planta, não dá
para esperar”, justificou.
Ao Joio e O Trigo, Stefanello confirmou que declarava como sua a
produção feita em território tradicional: “Foi uma questão de urgência, a
agricultura não espera. Era errado, mas justificável”, acredita.
Em outra reportagem da série,
um diálogo entre Carlos Márcio Vieira Barros, da Coordenação Regional
da Funai em Cuiabá, e o repórter confirma o esquema para escoar a soja
plantada sem licença. O servidor público admite que a manobra “não é
legal”. Agora, em entrevista aos autores deste texto, Barros disse não
saber avaliar se o esquema era ilegal, mas o descreveu com detalhes: “As
tradings como Bunge, Cargill, ADM e Amaggi podem sofrer
punições econômicas internacionais se comprarem soja dos índios, então
elas não compram [diretamente]. Normalmente, os índios vendem para uma
empresa local que dilui, mistura com a [soja] dos fazendeiros, digamos
assim, e vai como dos fazendeiros. Os índios são invisíveis na soja”,
explica. A íntegra das entrevistas pode ser lida aqui.
Consultadas pela reportagem, a maioria das empresas garante manter um
“rígido controle” sobre a situação socioambiental de seus fornecedores.
A General Mills, proprietária de marcas famosas como Yoki, Kitano e
Häagen-Dazs, informou que Edson Fermino Bacchi não é mais fornecedor nem
“um parceiro de negócios fixo”, “tendo apenas fornecido pontualmente
ingredientes para a companhia no passado”.
A Bunge não comentou sua relação com os produtores citados, mas assegurou que seu monitoramento “é capaz de identificar mudanças no uso da terra e no plantio de soja em cada uma das fazendas de onde origina” e que calcula se o volume de soja entregue está de acordo com a capacidade produtiva de uma propriedade, o que reduz o risco de triangulação. Já a Amaggi afirmou usar “imagens de satélites e informações geoespaciais” para fazer a rastreabilidade da origem da soja, mas tampouco comentou sobre os contratos investigados nesta reportagem.
ADM e Viterra não responderam nossas tentativas de contato. Após a
publicação desta reportagem, a Abiove – Associação Brasileira das
Indústrias de Óleos Vegetais – informou que sua manifestação
representava, também, o posicionamento das duas companhias. Cargill e
Cofco haviam indicado, anteriormente, que a entidade seria sua
porta-voz.
Em sua nota, a Abiove garantiu que a soja produzida “em áreas
embargadas por órgãos de fiscalização ambiental e sobrepostas com Terras
Indígenas [entre outros] não entra na cadeia produtiva do setor”. Mas,
embora faça referência “ao potencial risco de triangulação” dos casos
apontados por esta reportagem, não se pronunciou especificamente a seu
respeito, limitando-se a listar medidas que “são utilizadas
rotineiramente” por suas associadas para reduzir o problema. A íntegra
de todas as manifestações pode ser lida aqui.
Apesar das tecnologias aplicadas pelas empresas e esforços de
associações setoriais para reduzir o risco de triangulação, ainda não há
uma solução que efetivamente impeça esse procedimento, já que as
técnicas de verificação levam em conta a origem declarada da soja pelo
produtor.
Também procuramos os fazendeiros mencionados nesta reportagem para
ouvir suas considerações. Os advogados de Eleonor Ogliari e José Carlos
Acco informaram que seus clientes não comentariam os fatos apurados.
Além disso, fizemos inúmeras tentativas de falar com Jacs Tadeu Ventura,
Rogério Acco e Edson Fermino Bachi através de telefones e e-mails que
constam em cadastros públicos e advogados ligados a eles, mas não foi
possível localizá-los. O espaço permanece aberto para suas
manifestações.
Duas décadas de produção
Os indígenas Paresí arrendam terras para plantio de grãos em larga
escala desde pelo menos 2004, mas nunca conseguiram licenciar suas
lavouras – que apesar disso, seguiram produzindo. Um acordo com o
governo federal chegou a ser assinado em 2013, prevendo a retirada dos
fazendeiros não indígenas do território, para que os indígenas pudessem
assumir a produção, mas a área de lavoura precisava ser reduzida. Só
que, ao contrário do previsto pelo pacto, a área plantada subiu de 16,1
mil para 16,6 mil hectares – e os não indígenas não arredaram o pé de
dentro das TIs.
Em meados de 2018, no governo Michel Temer (MDB), o Ibama multou
produtores rurais e associações indígenas por desmatamento, produção de
grãos sem licenciamento ambiental e plantio de transgênicos. A lista
traz nomes que coincidem com os de signatários do pacto feito em 2013.
Em 2019, com a chegada de Jair Bolsonaro (na época, PSL, hoje, PL) ao
poder, tudo mudou. Logo nos primeiros meses da gestão, os então
ministros do Meio Ambiente, Ricardo Salles (hoje deputado federal pelo
PL-SP), e da Agricultura, Tereza Cristina (atual senadora pelo PP-MS),
participaram da festa da colheita nas terras indígenas – que já estavam
embargadas na época – conforme mostrou reportagem de O Joio e O Trigo.
Além deles, o governador Mauro Mendes (União Brasil), também aliado de
Jair Bolsonaro, esteve no encontro. A superintendência do Ibama em Mato
Grosso alertou a direção do órgão em Brasília que a área não poderia
receber plantios, mas isso foi ignorado pelas autoridades que
compareceram ao evento.
Em setembro de 2019, o então presidente do Ibama Eduardo Fortunato
Bim, desembargou as fazendas e cancelou as multas aplicadas, em uma
medida vista por servidores como canetada para acomodar interesses de
Jair Bolsonaro, que estava à frente da Presidência da República na época
e apresentava os Paresí como exemplo de sua política de “integração” dos povos indígenas.
Depois disso, o Ministério Público Federal capitaneou a assinatura de
Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), abrindo espaço para a
legalização da produção agrícola nas terras indígenas Rio Formoso,
Pareci, Utiariti, e também nos territórios Tirecatinga e Irantxe, na
mesma região – com algumas condições: que os fazendeiros não indígenas
se retirassem da área e que houvesse licenciamento ambiental pelo Ibama –
o que ainda não aconteceu.
“A gente ainda não pode comercializar esse produto de maneira legal,
ainda existe uma restrição muito grande”, admite Arnaldo Zunizakae,
líder dos indígenas sojicultores entrevistado em agosto de 2022 pelo O
Joio e O Trigo.
Zunizakae disse que a falta de licenciamento impede exportações, mas
não veta vendas domésticas. “Nossa soja é comercializada aqui [no
Brasil]. Essas empresas não podem exportar, se embarcar em um navio, a
Bunge vai ter problema, a Amaggi vai ter problema, a Cargill vai ter
problema. Eles sabem que eles vão ser punidos severamente por estar
comprando soja de terra indígena. É mais uma política trabalhada para
impedir que o indígena possa desenvolver agricultura nas suas terras.
Infelizmente”, critica.
Já Ronaldo Zokezomaiake, um ex-presidente da cooperativa Copihanama,
criada em 2018 e responsável pelo plantio de soja dentro dos
territórios, diz que mesmo as vendas internacionais estão acontecendo –
apesar da falta de licenciamento do Ibama. “Por enquanto, nós ainda
estamos usando algumas empresas para fazer essa ponte [comercial]. O que
nós produzimos aqui, entregamos para as empresas que nos financiam e
daí elas dão continuidade, mandam para fora, para exportação. Agora,
quando tivermos esse licenciamento, nós mesmos podemos fazer diretamente
essa comercialização”, explica.
Por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem perguntou ao
Ibama se foi feita fiscalização na área após o embargo, incluindo o
monitoramento do destino da produção, mas a autoridade ambiental
informou que nada constava em sua base de dados. Tampouco houve sucesso
nas tentativas de contato com a assessoria de imprensa. O espaço
permanece aberto.
Atualização: Esta reportagem foi atualizada em 29/05/2023, às 14:30, para incluir a informação, enviada pela Abiove após a publicação, de que sua manifestação representava, também, o posicionamento de ADM e Viterra.
https://reporterbrasil.org.br/2023/05/gigantes-do-agro-compram-soja-de-fazendeiros-multados-por-plantio-em-terra-indigena-embargada-em-mt/