A mexicana Dessiree Hernández durante um
piloto de gravação em um estúdio na Cidade do México, em 26 de abril de
2023 - AFP
O advento da
inteligência artificial generativa, capaz de criar vozes sintéticas que
se diferem muito pouco das humanas, ameaça os empregos de locutores,
dubladores e narradores de audiolivros que, ironicamente, alimentam dia a
dia essa tecnologia que poderia acabar com o seu sustento.
“Estamos lutando contra um monstro muito grande”, diz o ator de
dublagem e locutor Mario Filio, cuja criatividade ficou imortalizada na
trilha sonora do filme de animação “Madagascar”, com seu refrão pegajoso
em espanhol: “¡Quiero mover el bote! ¡Quiero mover el bote!” (“Eu me
remexo muito!”, na versão em português).
O verso original e título da canção era “I like to move it”, em
inglês. Mas Filio, que dublou a voz do festeiro lêmure Rey Julien na
versão em espanhol para a América Latina, e a responsável musical do
filme idealizaram a adaptação, que se transformou em hit.
Este mexicano, que deu voz a Will Smith e a personagens como Obi-Wan
Kenobi (Star Wars), Ursinho Puff e Miss Piggy (Muppets), afirma que
nunca recebeu royalties por aquele sucesso. Mas isso é uma questão menor
diante do desafio que representa a IA generativa, que cria textos,
imagens, vídeos e vozes utilizando conteúdo existente, sem intervenção
humana.
Para enfrentar essa batalha, sob o lema “Não roubem nossas vozes”,
cerca de 20 associações e sindicatos de Europa, Estados Unidos e América
Latina criaram a Organização das Vozes Unidas (OVU), que incentiva
projetos de lei para harmonizar a inteligência artificial (IA) e a
criação humana.
O uso “indiscriminado e não regulamentado” de IA pode extinguir um
“patrimônio artístico de criatividade […] que as máquinas não podem
criar”, adverte a OVU.
– Direito humano –
Os artistas da voz já competiam com a ferramenta Text To Speech
(TTS), que faz a locução de textos, mas com uma dicção robotizada,
utilizada em assistentes como Alexa e Siri.
Mas a IA adicionou o ‘machine learning’ (aprendizagem de máquina),
com o qual um software pode comparar uma amostra de voz com milhões
existentes, identificando padrões que geram um clone.
“Ela se alimenta com vozes que estivemos gravando por anos”, explica
Dessiree Hernández, presidente da Associação Mexicana de Locutores
Comerciais.
“Falamos do direito humano de usar a voz e a interpretação sem o seu consentimento”, acrescenta.
Plataformas como o revoicer.com oferecem uma ampla gama por
mensalidades de 27 dólares (cerca de R$ 129), uma fração do que
cobrariam os profissionais. Em seu site, esclarece que “não pretende
substituir as vozes humanas”, mas oferecer uma alternativa vantajosa.
Embora as empresas tecnológicas continuem contratando intérpretes,
estes suspeitam que isso seja apenas para alimentar seus arquivos, e
buscam ferramentas para rastrear suas vozes diante de uma pirataria cada
vez mais sofisticada.
Eles defendem a criação de leis que impeçam que seus registros de voz
sejam usados para treinar a IA sem o seu aval e imponham “cotas de
trabalho humano”, detalha o locutor colombiano Daniel Söler de la Prada,
que liderou o lobby da OVU nas Nações Unidas e na Organização Mundial
de Propriedade Intelectual.
No México, meca da dublagem na América Latina, também foi apresentado um projeto de lei para regulamentar essa tecnologia.
Além disso, na Argentina já existe uma lei que limita a locução a
pessoas com diploma. E uma máquina não tem, observa Fernando Costa, que
luta contra o slogan “Não utilize mais locutores, não gaste”, junto ao
Sindicato Argentino de Locutores e Comunicadores.
– Sem limites –
Mas a IA abre infinitas possibilidades. No futuro, por exemplo, a voz
real de Will Smith poderia ser ouvida em diversos idiomas, mas com a
entonação de um dublador, aponta Filio, após conversas com executivos do
setor.
Não seria ruim se gerasse emprego e o público ganhasse com isso, “mas
precisamos receber de forma justa”, assinala Filio, denunciando a
“falta de proteção” de uma associação que trabalha de forma
independente.
A AFP fez contato com seis empresas de serviços de voz sintética, mas elas não responderam aos pedidos de comentário.
No entanto, observou uma cláusula contratual que indicava que a
cessão de direitos inclui “meios e métodos que não existam ou não sejam
conhecidos […] e possam surgir no futuro”, o que os intérpretes
consideram “abusivo”.
Maclovia González, locutora mexicana para marcas renomadas, negocia
com uma companhia de IA cujo nome foi preservado. Ela tem feito muitos
questionamentos para não colocar em risco, caso assine o contrato, o seu
ganha-pão, mas não obteve informações completas, a não ser uma promessa
de royalties.
Desde que a contataram há cinco meses, outros locutores foram
contratados. “Quero ser parte desta revolução, mas não a qualquer
preço”.
– ‘Não tem alma’ –
O alarme também soou em Art Dubbing, onde são feitas dublagens de
conteúdos cristãos, depois que quatro clientes solicitaram orçamentos
para utilizar vozes sintéticas.
Seu fundador, o mexicano Anuar López de la Peña, agora está diante de
um dilema: “Ou me adapto ou vou desaparecer”, embora não esteja
disposto a sacrificar o talento humano.
Filio deixou de gravar para muitos clientes por se negar a ceder
“tudo”. “É hora de apoiar meus colegas”, afirma, com a certeza de que a
IA “não poderá” substituir as pessoas porque simplesmente “não tem
alma”.