É muito comum encontrar imóveis e construções abandonados em
várias cidades, especialmente em grandes centros. Basta um passeio
pelos centros urbanos de vários municípios para identificar inúmeros
espaços sem utilização ou prédios desocupados, servindo de local
propício para criminalidade e uso de drogas, além de, muitas vezes,
servir para fins egoísticos especulativos de seus proprietários.
Se por um lado existem inúmeras reclamações dos munícipes a cobrar da
administração pública municipal a tomada de providências concretas para
os problemas advindos dos terrenos baldios e imóveis abandonados, por
outro lado há o valioso direito fundamental à propriedade, que possui
respaldo constitucional.
Encontra-se dentro da atribuição municipal a função de fiscalização
ambiental e urbanística, por meio das quais os municípios brasileiros
devem enfrentar o problema de imóveis que ameaçam a segurança e
salubridade da sociedade. E a regulamentação e definição de imóveis
subutilizados nas legislações municipais se mostram de grande
importância para fins de adoção de medidas coercitivas no campo
urbanístico.
A cautela em se trabalhar com este assunto se justifica pelo fato de
estar em jogo o direito constitucional à propriedade. Mesmo assim,
deve-se ter em mente que o conceito de propriedade deve ser dinâmico.
Portanto “deve-se reconhecer, nesse passo, que a garantia constitucional
da propriedade está submetida a um intenso processo de relativização,
sendo interpretada, fundamentalmente, de acordo com parâmetros fixados
pela legislação ordinária” (GONÇALVES, 2017, pg. 45).
Se outrora a propriedade de bens imóveis tinha uma perspectiva
egoística de seus proprietários, como bem de seu interesse exclusivo,
não da coletividade, a interpretação contemporânea condiciona o
exercício da propriedade à sua função social. Tanto é assim que, ao
tratar da política urbana, o artigo 182, § 4º da Constituição,
estabeleceu, como uma de suas bases, os casos de solo urbano não
edificado, subutilizado e não utilizado, conceitos discriminados no
artigo 5º da Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade).
Essas mudanças advêm da releitura socializada dos institutos
jurídicos, ou seja, o Estado assumiu um papel dirigista mediante uma
atuação de fomentador de políticas sociais. Estas mudanças de concepções
foram essencialmente influenciadas por teorias econômicas, onde John
Keynes foi um importante economista que teceu severas críticas à teoria
do laissez-faire, laissez-passer, até então dominante, que
defendia que a economia deveria se guiar autonomamente, sem a
intervenção do Estado. Este economista defendeu um papel atuante do
poder público, com a utilização de políticas fiscais para o alcance do
pleno emprego e, via de consequência, o equilíbrio da economia nacional.
Os fatos históricos demonstraram que a tese da “mão invisível”,
defendida por Adam Smith, foi insuficiente para frear os impulsos
egoísticos dos agentes econômicos, bem como incapaz de garantir o
bem-estar social, razão pela qual a prosperidade de um país dependerá
necessariamente de medidas estatais de incentivo (GRAU, 2007, p.45).
Com isso, é possível entender que o estado social vem a ser um modo
de correção do individualismo liberal em prol da proteção dos direitos
sociais e a concretização da justiça social.
A administração pública representa uma função prestacional,
abandonando aquela visão transcendental do sujeito. Se na primeira fase
do Estado de direito houve uma proteção aos direitos tidos como de
primeira geração (liberdade e propriedade), na segunda
fase identifica-se uma superação desta visão individualista mediante a
elevação da dignidade da pessoa humana e outros direitos sociais como os
objetivos fundamentais do Estado.
Em consonância com a Constituição de 1988, o atual Código Civil prevê
no seu artigo 1.228, § 1º que o “direito de propriedade deve ser
exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e
de modo que sejam preserva- dos, de conformidade com o estabelecido em
lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio
ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a
poluição do ar e das águas”. Em outras palavras, a legislação civil
estabeleceu pressupostos para o exercício do direito de propriedade,
condicionando à observância da sua função social. Neste sentido, defende
Gustavo Tepedino que o direito de propriedade passa a se “constituir
não só pelos poderes de usar, gozar e dispor, mas também pelos deveres
indispensáveis à realização do aspecto funcional do domínio,
identificados na concreta relação jurídica” (TEPEDINO, 2021, p. 171).
Neste sentido, o imóvel cumpre com a sua função social quando,
respeitando-se as normas existentes, a atuação do proprietário
convergisse com o interesse social, o que deve estar alinhado com o
plano diretor do ente municipal. Para o cumprimento desta função social
dos imóveis urbanos, o município deve estabelecer uma adequada
legislação, com o objetivo de evitar a subutilização ou não utilização
destes, tais como o parcelamento, edificação e utilização compulsórios,
bem como o IPTU progressivo no tempo, além da possibilidade de
desapropriação, em último caso.
Além destas medidas, é possível notar que existem imóveis
praticamente abandonados na área urbana, demonstrando total desinteresse
do seu proprietário, o que pode surgir a possibilidade de arrecadação
de tais imóveis ao ente municipal sem pagamento de qualquer indenização e
a posterior destinação para fins de interesse social.
Desde o Código Civil de 1916, a competência legal para arrecadação de
imóveis abandonados estava determinada em favor dos estados, mas nunca
houve uma implementação. Com o Código Civil de 2002, o poder-dever de
arrecadar bens imóveis abandonados foi transferido para os municípios,
em consonância com a sua atribuição de “promover, no que couber,
adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do
uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano”, previsto no artigo
30, VIII da Constituição.
Assim, estabelece o artigo 1276 do Código Civil:
Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário
abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e
que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem
vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do
Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições.
§1 O imóvel situado na zona rural, abandonado nas
mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar,
três anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
§2 Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se
refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o
proprietário de satisfazer os ônus fiscais.
Além da possibilidade de arrecadação destes imóveis pelo ente
municipal, o tempo para caracterização do abandono foi reduzido para
três anos, além de definir como presunção absoluta da intenção de
abandonar o bem imóvel na hipótese de o proprietário deixar de
satisfazer os ônus fiscais.
A Lei Federal nº 13.465/2017 institui no território nacional normas
gerais e procedimentos aplicáveis à Regularização Fundiária Urbana
(Reurb), a qual abrange medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e
sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao
ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes. Esta
legislação, além de garantir maior celeridade para reconhecimento de
titularização de áreas ocupadas, também estabelece regras para atuação
do poder público, visando a garantir investimentos no sistema viários,
saneamento básico, energia elétrica, entre outras, além do correto
tratamento ambiental.
Dentre várias medidas elencadas por esta legislação, destaca-se a arrecadação de imóveis abandonados como política urbanística:
Art. 15. Poderão ser empregados, no âmbito da Reurb,
sem prejuízo de outros que se apresentem adequados, os seguintes
institutos jurídicos:
…
IV – a arrecadação de bem vago, nos termos do art. 1.276 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) ;
E, ainda, a Lei 13.465/2017 detalhou o procedimento administrativo a
ser adotado pelos municípios para realizar a arrecadação de imóveis
abandonados, nos seguintes termos:
Art. 64. Os imóveis urbanos privados
abandonados cujos proprietários não possuam a intenção de conservá-los
em seu patrimônio ficam sujeitos à arrecadação pelo Município ou pelo
Distrito Federal na condição de bem vago.
§1º A intenção referida no caput deste artigo será
presumida quando o proprietário, cessados os atos de posse sobre o
imóvel, não adimplir os ônus fiscais instituídos sobre a propriedade
predial e territorial urbana, por cinco anos.
§2º O procedimento de arrecadação de imóveis urbanos
abandonados obedecerá ao disposto em ato do Poder Executivo municipal ou
distrital e observará, no mínimo:
I – abertura de processo administrativo para tratar da arrecadação;
II – comprovação do tempo de abandono e de inadimplência fiscal;
III – notificação ao titular do domínio para, querendo,
apresentar impugnação no prazo de trinta dias, contado da data de
recebimento da notificação.
§3º A ausência de manifestação do titular do domínio será interpretada como concordância com a arrecadação.
§4º Respeitado o procedimento de arrecadação, o
Município poderá realizar, diretamente ou por meio de terceiros, os
investimentos necessários para que o imóvel urbano arrecadado atinja
prontamente os objetivos sociais a que se destina.
Em linhas gerais, a Lei 13.465/2017 estabeleceu o procedimento que os
municípios devem adotar na sua legislação própria para implementar a
arrecadação destes imóveis, como: abertura de processo administrativo
para tratar da arrecadação; comprovação do tempo de abandono e de
inadimplência fiscal sobre a propriedade predial e territorial urbana
por cinco anos; e notificação ao titular do domínio para, querendo,
apresentar impugnação no prazo de trinta dias, contado da data de
recebimento da notificação.
Note-se que a presunção absoluta de abandono do imóvel teve o marco
temporal definido como cinco anos de inadimplência fiscal, além de ser
estabelecida a necessidade de instauração de processo administrativo,
com a notificação do titular.
Cabe notar que o artigo 65 da referida lei definiu que os imóveis
arrecadados pelos Municípios ou pelo Distrito Federal poderão ser
destinados aos programas habitacionais, à prestação de serviços
públicos, ao fomento da Reurb ou serão objeto de concessão de direito
real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins
filantrópicos, assistenciais, educativos, esportivos ou outros.
É uma oportunidade para que os municípios promovam a adequada
reordenação urbana de seu território. E a arrecadação de imóveis
abandonados aparece como um instrumento de política urbana importante
para que seja assegurada a qualidade de vida e sustentabilidade das
cidades.
Vários municípios já regulamentaram esta política urbanística, a
exemplo de São Paulo (Lei Municipal nº 16.050/2014), Vitória (ES) (Lei
Municipal nº 9.271/2018) e Porto Alegre (RS) (Decreto 19.622/2016).
A regulamentação da matéria na legislação municipal se mostra
importante para garantir um protocolo específico para a identificação do
abandono de propriedade. Não basta comprovar a não utilização do
imóvel, sendo necessário comprovar que o proprietário não possui mais a
intenção de conservar o bem em seu patrimônio. Tanto é assim que o
Enunciado nº 243 do CJF/STJ, da “III Jornada de Direito Civil”, definiu
uma linha de interpretação no sentido de que: “a presunção de que
trata o § 2º do art. 1.276 não pode ser interpretada de modo a
contrariar a norma — princípio do art. 150, inc. IV, da Constituição da
República”. Em outras palavras, será necessário que a ocorrência do
abandono seja definitivamente comprovada, através de fatos que
demonstrem o desinteresse do proprietário em continuar com imóvel, por
não atender a função social da propriedade.
Não há dúvidas que a arrecadação de imóveis abandonados poderá ser um
importante instrumento de política urbanística, possibilitando que a
ação estatal seja direcionada com eficiência no combate ao
descumprimento da função social das propriedades urbanas. Sob esta
perspectiva, o instituto da arrecadação de bens abandonados é um
mecanismo atraente sobretudo naqueles municípios que possuem um centro
com grandes números de imóveis sem destinação, abandonados ou em ruínas.
Uma vez incorporados ao patrimônio público, poderiam facilmente ser
direcionados para destinação social de interesse público.
Ademais, a simples existência de uma legislação local prevendo
arrecadação de imóveis, tendo como prova presumida o inadimplemento do
IPTU, poderia estabelecer um fim pedagógico para que os contribuintes
procurem diminuir a inadimplência quando desejarem não perder a
propriedade.
Desta forma, em linhas gerais, a implementação do instrumento da
arrecadação de imóveis abandonados é uma medida de eficiência
administrativa, cumprindo a exigência constitucional de atendimento à
função social da propriedade urbana.
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