Economista
lança livro sobre as desigualdades extremas do país e como todos perdem
nesse cenário. Em tom otimista, ele vê parte da burocracia e da classe
política buscando formas para enfrentar o problema.”Temos toda a riqueza
e toda a pobreza no mundo no Brasil. Esse é o tamanho de nossa
desigualdade”. Essa frase está no livro Extremos – Um Mapa para Entender
as Desigualdades no Brasil, que o economista Pedro Fernando Nery lançou
nesta terça-feira (16/04). De cunho ensaístico, a obra apresenta
diversas facetas extremamente desiguais do país, como o lugar mais
desenvolvido (o bairro de Pinheiros, em São Paulo) e o menos
desenvolvido (o município de Ipixuna, no Amazonas), e as rendas altas do
Distrito Federal em contraposição à pobreza do Maranhão.
Servidor
federal que atualmente ocupa o posto de diretor de assuntos econômicos e
sociais da Vice-Presidência da República, Nery também é professor no
Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e já
foi consultor legislativo do Senado. A proximidade com as altas esferas
do poder faz dele um analista privilegiado. “Acho que dá para trazer uma
mensagem de otimismo: vejo muita gente comprometida com a questão da
desigualdade, não apenas dentro da burocracia estatal, mas na própria
classe política”, diz.
No
livro, ele defende a necessidade de amplas reformas para atenuar o
problema das desigualdades, elencando como prioritárias a tributária, a
administrativa e a previdenciária. “O Brasil tributa muito mal, mas
gasta mal também”, avalia o economista.
“Desigualdade significa
desperdício”, afirma Nery. “A ideia de que a desigualdade se manifesta
de diferentes formas já é bem conhecida, mas uma mensagem importante que
quero trazer com meu livro é que a desigualdade prejudica também quem
está em cima, também quem não é pobre. Porque ela prejudica o
crescimento econômico.”
Leia abaixo trechos de sua entrevista à DW:
DW:
Ao apresentar um panorama das desigualdades brasileiras, você advoga
pela necessidade de reformas. Pensando nas três principais delas, como
uma reforma tributária precisaria ser feita para diminuir as
desigualdades?
Pedro
Fernando Nery: Não existe nenhuma justificativa razoável para que os
mais ricos paguem menos impostos do que o restante da população. O que a
gente está falando não é nem necessariamente uma situação em que os
mais ricos paguem mais do que os outros, mas pelo menos que paguem igual
[aos outros] ou mais do que pagam hoje. Nossa Constituição, ao
determinar que todo mundo é igual perante a lei, exige que o imposto de
renda seja progressivo, quer dizer, que se cobre mais de quem ganha
mais. Na verdade estamos distantes disso. Reformar a tributação de renda
se trata somente de fazer cumprir a Constituição. E isso não é um tema
novo: o imposto de renda é um tema do século 19. Isso não deveria ser
polêmico. O próprio ministro [da Economia no governo de Jair Bolsonaro]
Paulo Guedes, no governo anterior, chegou a sintetizar que o Brasil é um
país desigual porque a gente tributa errado. Quer dizer: não é possível
nem ver em qualquer ponto do espectro político uma defesa aberta do
sistema atual.
E a reforma administrativa, como melhorar esse cenário?
O
Brasil tributa muito mal, mas gasta mal também. A evidência é que o
Estado até desconcentra a desigualdade de renda, mas desconcentra pouco
quando a gente olha a comparação com outros países ou o nosso nível de
carga tributária. No gasto público, a gente mobiliza uma quantidade
enorme de recursos, via tributação, sem que haja uma distribuição
efetiva de renda. Então, uma reforma administrativa deve ser pensada
nesse sentido, tanto a fim de melhorar os serviços públicos que são
essenciais para os mais pobres, como educação e saúde, quanto também de
desconcentrar a renda, por exemplo combatendo supersalários e outros
excessos.
Por fim, e a reforma da Previdência?
A reforma que
já foi feita em 2019 atendeu em parte à situação da desigualdade em
relação a esse tema, à medida que não se gasta mais tanto com a parte
mais rica do país e há espaço para gastar mais com partes mais pobres. A
reforma afeta mais áreas prósperas, como partes do Rio Grande do sul,
enquanto o gasto assistencial, como Bolsa Família, chega melhor em
partes mais pobres, no Rio Grande do Norte, por exemplo. Esses são dois
extremos no que diz respeito à apropriação do gasto público. E é
plausível que esse tema continue com a gente por um bom tempo, por um
bom motivo: a elevação da expectativa de vida dos idosos. No mundo todo
há uma preocupação com esse processo, porque ele pode absorver uma
quantidade crescente de recursos públicos que poderiam estar indo para
famílias mais pobres, como as famílias com crianças que têm inserção
mínima no mercado de trabalho. A Previdência, em um país como o Brasil, é
um tipo de benefício mais voltado para famílias com inserção melhor no
mercado de trabalho, menos vulneráveis, tipicamente mais brancas e mais
bem posicionadas na distribuição de renda.
Você atua próximo à
cúpula do poder no Brasil. Como tem percebido a recepção a essas ideias
pelas autoridades que “têm a caneta na mão” para fazer alguma coisa?
Tenho
experiência como servidor federal e acho que dá para trazer uma
mensagem de otimismo: vejo muita gente comprometida com a questão da
desigualdade, não apenas dentro da burocracia estatal, mas na própria
classe política. Acho que muito do que não funciona bem no Brasil vem da
letargia, de algum erro, de incompetências do passado, e não
necessariamente de lobby e forças ocultas agindo para manter o status
quo. Existe muita vontade de acertar. É claro que o processo decisório é
muito congestionado e existem muitas demandas e exigências, mas reitero
que a vontade de acertar existe. Existe espaço para ação e o
engajamento não é só dentro do Estado, mas fora dele. Muita coisa
melhora no Brasil com gente bem-intencionada.
Nos primeiros
governos de Lula e nos de Dilma houve críticas por eles não terem atuado
de forma decisiva na redução da desigualdade por meio de reformas
tributárias, apesar de sua orientação à esquerda. Isso mudou no atual
governo?
É verdade, embora seja também verdade que não havia
[naquele período] tanta clareza sobre o problema da concentração de
renda no topo, porque ainda havia naquele período muita opacidade em
relação aos dados do imposto de renda. Seja como for, vejo que neste
século a gente observou uma queda da desigualdade muito importante,
tanto no consumo quanto no acesso a serviços como educação e saúde.
Agora, incluir o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda é um
compromisso claro do presidente Lula no novo governo.
E como estão os ânimos do Congresso quanto a esse tema?
Alguns
analistas têm dúvidas de que a atual composição do Parlamento permita
isso [avançar em reformas]. Mas a tributação da renda já foi discutida
no governo Bolsonaro, ainda que de forma insatisfatória, e esse
Congresso já aprovou mudanças neste novo governo, nos fundos fechados,
nas offshores, na questão dos juros sobre o capital próprio. São medidas
que incluem o rico no imposto de renda. Claro que fica faltando uma
reforma mais ampla, incluindo lucros e dividendos, mas o próprio
Congresso já aprovou a determinação para que o governo envie uma
proposta de tributação da renda… Então acho que existe espaço para
buscar uma construção, sim, e a mobilização da sociedade importa. Espero
que, com meu livro, eu consiga trazer uma mensagem não só de
inconformismo para uma realidade tão dura, mas também de otimismo diante
das possibilidades de mudança.
É corrente o discurso de que a
desigualdade é o maior problema do país. De que forma essa questão,
histórica e estrutural, acaba impactando em todas as áreas?
Desigualdade
significa desperdício. A ideia de que a desigualdade se manifesta de
diferentes formas já é bem conhecida, mas uma mensagem importante que
quero trazer com meu livro é que a desigualdade prejudica também quem
está em cima, também quem não é pobre. Porque ela prejudica o
crescimento econômico. Quando os recursos da sociedade estão
desorganizados, como no Brasil, todo mundo perde.
A gente pode
imaginar uma menina inteligente, que tem vocação para ser uma pessoa
determinada, aguerrida, mas que nasce em uma família pobre. Ela vai ter
uma primeira infância exposta a violência, a estresse, a doenças, a
desnutrição, sem desenvolver todo o potencial do seu cérebro. Vai ter
dificuldades para estudar, seja porque o sistema educacional não é o
ideal, seja porque o transporte público é ruim, ou porque ela mora em
uma habitação precária. Se ela tivesse nascido em uma família rica ou de
classe média, poderia se tornar, por exemplo, uma grande médica. Por
conta de todas as dificuldades que a vida lhe impôs ela não conseguiu
chegar nem perto disso. E todos perdem. Todos poderiam ser pacientes de
uma grande profissional. E a gente poderia fazer o mesmo exercício para
uma cientista, uma inventora, uma programadora, uma artista. Se a gente
aplica esse raciocínio a milhões de crianças, fica claro como nós
perdemos. Essas pessoas que não se desenvolvem como deveriam poderiam
estar nos ajudando em diversos problemas. Isso é a desigualdade afetando
o PIB.