Ataques
a pequenas embarcações venezuelanas, sob pretexto de combater
narcotráfico, são execuções extrajudiciais proibidas pelo direito
internacional, apontam especialistas ouvidos pela DW.O presidente Donald
Trump afirmou na terça-feira (16/09) que as forças enviadas pelos
Estados Unidos ao mar do Caribe para reprimir o transporte de drogas a
partir da América do Sul destruíram três embarcações, e não duas, como
vinha sendo informado até agora. Segundo o governo americano, o primeiro
ataque, ocorrido em 2 de setembro, deixou 11 mortos. O segundo, no dia
15, outros três.
“Nós destruímos três barcos, na verdade, não
dois. Mas vocês viram dois”, afirmou Trump a jornalistas, sem dar mais
detalhes. Em seguida, ele mandou uma mensagem ao líder venezuelano
Nicolás Maduro. “Bem, eu diria o seguinte: parem imediatamente de enviar
o [cartel] Tren de Aragua para os Estados Unidos. Parem de enviar
drogas para os Estados Unidos.”
Washington defende que o uso de
mísseis contra pequenas embarcações tem como objetivo frear o fluxo de
drogas que inunda o país. Para analistas ouvidos pela DW, essas
operações militares servem como um sinal para pressionar a Venezuela e
outros países da região.
Efeitos colaterais em Caracas
“Isso
demonstra que o primeiro ataque não foi um caso isolado, mas que se
está buscando padronizar essa prática como um novo método de combate ao
narcotráfico”, afirmou à DW Tiziano Breda, analista sênior para América
Latina e Caribe na organização sem fins lucrativos Armed Conflict
Location and Event Data (Acled). Embora a estratégia possa reprimir a
saída de pequenas embarcações, a maior parte da droga é transportada
dentro de contêineres em grandes navios, destaca o especialista.
Em
sua opinião, a presença militar dos Estados Unidos na região pode ter
um outro impacto na economia venezuelana – dificultar o transporte de
petróleo em navios de “frotas fantasmas” que buscam contornar as sanções
impostas ao país. Também “tende a aumentar o nervosismo que se vive em
Miraflores, quanto à possibilidade de que esses ataques sejam apenas o
prelúdio para uma intervenção mais ampla, cujos efeitos são difíceis de
prever”.
Questão jurídica complexa
“É necessário fazer uma
distinção que muitas vezes se perde no debate público”, adverte Simón
Gómez Guaimara, especialista venezuelano em direito internacional, à DW.
Ele se refere à diferença entre a legalidade da operação desencadeada
pelos Estados Unidos e a legalidade dos meios utilizados. “Digamos que,
em conjunto, uma operação desse tipo não viola, ou não violou até agora,
a proibição do uso da força entre os Estados”, afirma o especialista.
Mas
há um porém: “Vimos o uso de mísseis contra embarcações suspeitas, o
que, sem dúvida, é uma violação flagrante dos direitos humanos. Isso
viola especificamente o direito à vida. São execuções extrajudiciais que
o direito internacional proíbe”, observa Gómez.
“A força letal só
pode ser usada como último recurso diante de uma ameaça iminente à vida
das pessoas. Uma embarcação que transporta drogas, por mais ilegal que
seja essa carga, não representa uma ameaça iminente à vida”, afirma.
As
duas operações reconhecidas oficialmente pelos Estados Unidos deixaram
14 mortos. Investigações da mídia venezuelana indicaram que o primeiro
ataque, que deixou 11 mortos, afetou pessoas pobres do norte da
Venezuela.
Isso confirmaria que a estratégia de Washington “se
concentra mais nos elos fracos, que são completamente substituíveis
dentro da cadeia” dos grupos de narcotraficantes, observa o advogado.
“Acho
que a ação teria mais sentido se atacasse o ponto nevrálgico dessa
cadeia”, acrescenta. E ressalta que se trata de uma estratégia de grande
apelo midiático “que não resolve o problema na raiz”, pois não aborda,
por exemplo, a demanda dos países consumidores e as condições econômicas
que impulsionam a oferta.
Sem presunção de inocência ou devido processo legal
Breda
observa que não houve uma oposição coordenada aos ataques em nível
regional, nem por parte dos aliados europeus dos EUA. Da mesma forma,
embora tenha havido um debate público no país, “não me parece que tenha
havido uma oposição legal muito forte, o que foi interpretado pela
administração Trump como um sinal verde” para a realização de novos
ataques.
“A falta de reação tem várias respostas”, observa Gómez.
“Essas narrativas da guerra contra as drogas desestabilizaram a opinião
pública e também muitos governos, a ponto de normalizar a ideia de que
certos inimigos não merecem as garantias da lei”.
O especialista
em direito internacional destaca, no entanto, que “os suspeitos devem
ser detidos e apresentados à Justiça, o que nos leva a dois princípios
inalienáveis do Estado de Direito: a presunção de inocência e o devido
processo legal”.
Quando se bombardeia uma lancha, evidentemente
esses processos não são respeitados. “Disparar um míssil anula esses
direitos de forma irreversível. Não há julgamento, não há defesa, há
apenas uma execução sumária e, além disso, baseada em uma suspeita”,
explica Gómez.
Ele adverte que “o direito internacional não
contempla licenças para matar” e que “a tendência de fundir a luta
contra o narcotráfico com a luta antiterrorista é estrategicamente
conveniente para justificar ações militares desproporcionais como as que
temos visto, mas é juridicamente inaceitável e eticamente muito
perigosa”.