Um dos artífices do bloco sul-americano, o ex-embaixador do
Brasil em Londres e Washington admite que mudou de posição e sustenta
que o Brasil está se isolando no comércio mundialPor Eugênio Esber
A
carreira diplomática de Rubens Antonio Barbosa é mais conhecida por sua
atuação como embaixador do Brasil em Londres e em Washington.
Ele ocupou essas posições entre 1994, ano em que o Plano Real alçou
Fernando Henrique Cardoso ao poder, e 2004, no início do primeiro
governo Lula. Há, no entanto, um traço mais saliente na biografia de
Barbosa: sua ligação com uma concepção de estratégia comercial que hoje
ele combate. “Eu mudei de posição, e só não muda quem não acompanha as
coisas”, diz a AMANHÃ, na entrevista a seguir, o homem que coordenou a
seção brasileira do Grupo do Mercosul e ocupou o cargo de representante
permanente do Brasil na Associação Latino-Americana de Integração
(Aladi). “Ninguém defendeu mais o Mercosul do que eu. Mas, no campo da
negociação comercial, o Mercosul está totalmente superado”, admite
Barbosa, hoje na presidência do Conselho de Comércio Exterior da
Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). Autor de livros como
Mercosur Codes (Os Códigos do Mercosul), Barbosa diz como imagina que o
Brasil poderia se livrar da condição de “refém” do bloco que ajudou a
construir.
Por que o senhor defende mudanças na política de comércio exterior do Brasil?A
estratégia de negociação comercial brasileira está superada pelos
acontecimentos que estão se desenrolando no mundo, a partir dos
mega-acordos comerciais na Ásia, da negociação entre Estados Unidos e
União Europeia e, aqui na região, pela formação da Aliança do Pacífico. A
tática que nós seguimos até aqui, de colocar todas as fichas nas
negociações multilaterais, está esgotada. Eu sou muito cético com a
possibilidade de que a reunião ministerial da OMC, em dezembro, permita a
retomada das negociações de Doha e se chegue a uma conclusão que seja
satisfatória para países como o Brasil.
Que países, além do Brasil, ainda apostam suas fichas em negociações multilaterais conduzidas pela OMC? Há
países em desenvolvimento que ainda acreditam nisso. Mas nos últimos
anos os Estados Unidos e também a União Europeia, além da China,
desinteressaram-se por essas negociações multilaterais porque o processo
de decisão é muito complicado. São mais de 190 países, hoje, na OMC. É
muito difícil formar um consenso nessas condições. E a crise também
atrapalhou porque muitos países ficaram mais voltados para a proteção
interna das economias, para a preservação dos empregos, e menos focados
na expansão do comércio internacional. É o caso do Brasil. Estamos meio
paralisados em relação à necessidade de reajustar a nossa estratégia de
comércio exterior.
Países como Chile, que vêm celebrando acordos bilaterais há vários anos, fizeram a opção correta?Fizeram.
Mas eles não são exemplos para o Brasil. Nem mesmo os países da Aliança
do Pacífico – Chile, México, Colômbia e Peru. Com exceção do México,
que está mais voltado para os Estados Unidos, esses outros são países
pequenos. E não têm uma indústria a defender, como o Brasil. Mas vejo um
problema para o Brasil, nos próximos anos, com a participação desses
quatros países em acordos com a Ásia. Empresas da China, da Coreia, vão
se instalar nesses países da Aliança do Pacífico para exportar para o
Brasil. Nenhum deles é membro pleno do Mercosul. São membros associados.
Mas eles podem se tornar membros plenos para se beneficiar da redução
tarifária e se voltar para o Brasil. É o risco que corremos.
Como vê o nível de proteção da indústria brasileira? As alíquotas de importação deveriam ser mantidas ou reduzidas? Essa
questão não pode ser discutida apenas do ponto de vista das alíquotas. O
aspecto mais importante é a perda de competitividade da indústria
brasileira. O Brasil tem hoje tarifas de importação que em alguns
setores são relativamente altas. Mas mesmo assim essas alíquotas não são
eficientes para proteger a indústria nacional. Porque há dois fatores
internos que estão causando um estrago na nossa indústria. Um é a
valorização do real em relação ao dólar ao longo dos últimos dez anos.
Outro é o conjunto formado por carga de impostos, preço da energia,
deficiências de infraestrutura, custo da mão de obra, juros elevados –
tudo isso que costumamos chamar de custo Brasil, que inibe uma ação mais
agressiva por parte da nossa indústria. E que torna difícil, também, as
negociações comerciais.
Por que dificulta as negociações?Porque
as empresas de alguns setores se sentem vulneráveis em face da anulação
das tarifas de importação que é causada pelo câmbio desfavorável e por
esses fatores que levam a uma desvantagem competitiva. O Brasil hoje é
um país muito caro para se produzir. O governo tomou medidas corretas no
curto prazo quando promoveu a desoneração fiscal de setores da
indústria. Mas são medidas insuficientes. A longo prazo, só reformas
fundamentais resolverão o problema.
A parte cambial do
problema se resolve com a decisão norte-americana de mudar a política
monetária que promoveu a desvalorização do dólar nos últimos anos?Já
houve uma desvalorização grande do real este ano – cerca de 10% até
agora, mas ainda é pouco. Do ponto de vista da indústria, o câmbio, para
o Brasil ser competitivo, deveria estar entre R$ 2,30 e R$ 2,50. Há
economistas que acham que deveria chegar a R$ 2,90. Nós estamos hoje em
um patamar de R$ 2,20. Gradualmente, o câmbio vai ter de se ajustar para
que ocorra a recuperação, pelo menos parcial, da competitividade da
indústria brasileira. O câmbio, como está, além de dificultar as
exportações, desguarnece o mercado interno. Hoje, grande parte do
mercado interno é suprido pelas importações.
A indústria brasileira não aproveitou o ciclo do dólar barato para importar tecnologia e se modernizar?Alguns
setores, sim. Mas muitas indústrias deixaram de se modernizar e se
tornaram importadoras. Basta ver o desemprego no setor, que é crescente.
Só no ano passado mais de 60 mil empregos foram perdidos na nossa
indústria de transformação. E esse processo continua. Isso não aparece,
ainda, porque os indicadores de desemprego aqui no Brasil são, de certa,
maneira, distorcidos. E as pessoas que saíram das indústrias foram, em
alguma medida, absorvidas pelo setor de serviços. Outro efeito do
dólar barato e que vai ser muito negativo para o Brasil a curto prazo é
que muitas empresas se endividaram em moeda estrangeira. E agora terão
de pagar em um período em que o dólar estará se valorizando.
Como o senhor observa a movimentação entre União Europeia e Estados Unidos para a criação de uma área de livre comércio?Vejo
com preocupação, embora o governo brasileiro em diversas vezes venha
afirmando que isso não iria afetar a indústria brasileira, que o Brasil
não estava interessado... Eu acho que é um erro de avaliação,
especialmente se as negociações entre eles avançarem em algumas áreas,
particularmente no setor agrícola, que é o que mais me preocupa. Se isso
acontecer, o Brasil vai ter de concorrer com os Estados Unidos no
mercado europeu em desvantagem. Os Estados Unidos são a maior potência
agrícola do mundo. Boa parte das exportações brasileiras para a União
Europeia são de produtos agrícolas, e vamos acabar perdendo alguns
desses mercados pela maior competitividade do produto americano. E
talvez o aspecto mais importante, e para nós preocupante, desse acordo,
seja a harmonização dos standards, dos padrões industriais. E, se eles
chegarem a um acordo sobre isso, nós, no Brasil, vamos ter de passar por
uma grande reforma para nos ajustarmos a esses padrões. Portanto, ao
contrário do que muita gente pensa, esse acordo é algo que devemos
acompanhar e monitorar.
O que significa, na prática, monitorar? Como é possível agir sobre esse acordo?Uma
forma de a gente se aproximar é avançar no acordo do Mercosul com a
União Europeia. Aí a gente põe o pé no estribo. Se a gente não evoluir
com a União Europeia, aí, sim, ficaremos marginalizados de tudo o que
está ocorrendo no mundo. Esse acordo União Europeia-Estados Unidos
representa 35% de todo o comércio e metade da produção global. Quer
dizer, não é algo para ser deixado de lado porque terá grande impacto
sobre a economia brasileira.
O Brasil deve fazer esse monitoramento à revelia do Mercosul?Olha,
ninguém defendeu mais o Mercosul do que eu. E eu reconheço que o bloco
desempenhou um papel importante para o Brasil, e ainda desempenha. Mas
no campo da negociação comercial o Mercosul, hoje, está totalmente
superado. Eu mudei de posição, e só não muda quem não acompanha as
coisas. Acho que, do jeito que está, com a Venezuela, e provavelmente
Bolívia e Equador, o Mercosul se descaracterizou. Hoje, o Brasil está a
reboque do Mercosul nas negociações econômicas e comerciais. Ninguém
vai querer ter o ônus de terminar com o Mercosul. Mas penso que, sob o
guarda-chuva do bloco, o Brasil possa negociar esses acordos de livre
comércio, adotando uma geometria variável em relação à lista de
produtos. Se a Argentina e a Venezuela não quiserem fazer o acordo que o
Brasil quer fazer, que não façam. Mas que o Brasil possa fazer o acordo
isoladamente. Não podemos ficar paralisados na construção de acordos
porque outros parceiros não têm interesse. Não podemos ficar reféns
dessa situação.
A continuar a situação de estagnação das negociações, o que pode acontecer ao Brasil?Nestes
últimos 12 anos, o Brasil e o Mercosul negociaram três acordos
comerciais: com o Egito, com Israel e com a Autoridade Palestina.
Enquanto o Mercosul negociou três acordos, o resto do mundo está
negociando mais de 500 acordos. É uma situação anômala. Acho que o
Brasil está ficando isolado, desatualizado em relação às negociações e
às novas regras de comércio. O Brasil não está participando das cadeias
produtivas globais. A única empresa que está fazendo isso é a Embraer.
Estamos totalmente fora do que está acontecendo no mundo, hoje. CNI,
Fiesp, Iedi estão alertando para isso. Mas a atenção do governo está
posta sobre a economia e sobre a reeleição. É um erro. O governo está
sendo lento no reconhecimento de que a agenda comercial externa está
desatualizada.
O que mudou no comércio mundial desde que o senhor foi embaixador em Londres e em Washington?O
que mudou, no mundo, foi o fator China, o fator Ásia. O principal
parceiro comercial do Brasil deixou de ser os Estados Unidos e passou a
ser a China. Tínhamos naquela época um superávit no comércio com os EUA
de US$ 25 bilhões. Hoje, temos um déficit com eles da ordem de US$ 6
bilhões. E, agora, pela primeira vez em muitos anos, vamos ter um
déficit na balança comercial com a União Europeia, que é outro grande
parceiro comercial do Brasil. Então fica evidente que esta nova ênfase
nos mega-acordos de integração das cadeias produtivas está obrigando os
países a reformular suas estratégias. Só o Brasil que está resistindo
aí, com uma visão tradicional de comércio exterior.
Em que consiste essa visão que o senhor chama de tradicional?Consiste
em você produzir em um país para exportar para outro país... Isso está
superado. Não é mais assim que ocorre no mundo. A integração das cadeias
produtivas pressupõe você investir para produzir no seu país uma parte
de alguma coisa que vai ser produzida em outros países. Você não exporta
mais produtos acabados, e sim componentes de produtos fabricados em
outros países. Agora, para entrar nessas cadeias produtivas globais,
você tem de seguir certas regras que o governo brasileiro entende que
não são de interesse da economia nacional. Eu acho que é um erro e que é
preciso repensar.