Imigrantes têm direitos no Brasil, sobre os quais devem ser informados.
Em francês, o jovem que pede para não ser identificado conta que
ingressou sozinho no Brasil faz pouco tempo, mas que já fez amizade com
outros migrantes. Vindo de Togo, país do tamanho da Paraíba localizado
no Golfo da Guiné, na África, ele pede para que seu nome não seja
publicado por temer problemas com as autoridades.
Enquanto caminha junto a centenas de pessoas na 7ª Marcha dos
Imigrantes, em São Paulo, ele defende que, em geral, os imigrantes são
bem acolhidos no Brasil, mas diz que as dificuldades em relação à
documentação têm sido problema para muitos.
Há dois meses, ele espera a análise de seu pedido de regularização
migratória. Quer ficar no país, obter residência e permissão de
trabalho, mas os processos são demorados e sente-se vulnerável sem os
documentos. Antoni é uma das milhares de pessoas, entre brasileiros e
estrangeiros, que defendem que migração é um direito humano, e deveria
ser tratada como tal.
Hoje, os direitos e deveres dos imigrantes no Brasil são
regulamentados pela lei nº 6.815 de 1980, o assim chamado Estatuto de
Estrangeiro, documento redigido durante a ditadura militar sob uma ótica
de segurança nacional. Tal legislação tem sido criticada por diferentes
movimentos e organizações por restringir os direitos de imigrantes
principalmente em termos de participação política e sindical. A
mobilização por mudanças tem ganhado força, e culminou na realização, na
capital paulista, de dois grandes eventos neste mês.
Além da tradicional Marcha dos Imigrantes, que na sua sétima edição
teve como tema a luta por uma “nova lei de migração justa e humana para o
fim da discriminação” e reuniu cerca de mil pessoas de diferentes
nacionalidades de acordo com as instituições organizadoras, este ano
também foi realizada a 1ª Conferência Municipal de Políticas para
Imigrantes, evento de caráter consultivo convocado pela Coordenação de
Políticas para Migrantes da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e
Cidadania que reuniu em torno de 300 participantes de 35 nacionalidades.
Em ambos os encontros foram discutidos problemas da comunidade e
propostas para criação de políticas públicas específicas.
Os resultados da conferência serão apresentados por delegados eleitos
pelos participantes na Conferência Nacional de Migrações e Refúgio em
Brasília em 2014, conforme previsto na Portaria Nº 1.947 da Defensoria
Pública da União. Entre as deliberações, a principal é de que as
migrações não devem ser criminalizadas. Diferentes organizações defendem
que a questão não fique mais a cargo da Polícia Federal, mas sim de um
novo órgão diferente criado para em um contexto de respeito a direitos e
políticas públicas, conforme manifesto conjunto divulgado pelos grupos
que compõem o Fórum Social pelos Direitos Humanos e Integração dos
Migrantes.
Neste sentido, as organizações manifestam repúdio a nova Lei do
Estrangeiro, prevista no Projeto de Lei 5655 apresentado em 2009 pelo
então ministro da Justiça Tarso Genro. No manifesto divulgado como
resultado da 7ª Marcha, a proposta que hoje tramita no Câmara dos
Deputados é criticada por ser “ainda mais dura e xenofóbica e
discriminante, expondo os imigrantes a tratamentos mais desumanos e
degradantes e a um risco maior de exclusão social, preconceito e
violência.” Nelson Bison, coordenador do Centro de Apoio ao Migrante
(CAMI) diz que os movimentos esperam que a nova legislação considere que
“a pessoa humana em qualquer lugar que esteja no mundo tenha os mesmos
direitos”.
Grupos de imigrantes
De acordo com relatório da Organização das Nações Unidas, no mundo
inteiro cerca de 232 milhões de pessoas que deixaram seus países de
origem e partiram para novos destinos por razões muito diversas. O
Brasil, construído pelos mais diversos fluxos migratórios, tanto
involuntários como voluntários, tornou-se um pais com emigração
relevante nos anos oitenta, para ser marcado pelas migrações de retorno a
partir de 2000. Hoje o país têm recebido imigrantes de diferentes
partes.
Levantamento feito com base em dados da Polícia Federal por
pesquisadores ligados à Universidade Federal do Rio de Janeiro indica
que atualmente vivem no Brasil cerca de 940 mil imigrantes permanentes.
Os dados são referentes a 2012 e foram apresentados no contexto do
projeto O Estrangeiro. Trata-se de uma estimativa que não inclui os
imigrantes sem documentação no país. Confira no infográfico abaixo os
países de origem de tais migrantes (recarregue a página se não conseguir
visualizar os dados).
Discriminação e exploração
A iniciativa de se abrir espaço para participação e diálogo entre o
governo e imigrantes foi elogiada pelas organizações presentes e
considerada um primeiro passo para mudanças. Para Oriana Jara Maculet,
presidente da ONG Presença da América Latina, isso permite que estes
saiam da invisibilidade e sejam ouvidos. Mesmo assim, ela adverte que é
impossível representar todos como um só grupo e ressalta que existem
diferentes condições e histórias de migração. Nas manifestações em si,
tal pluralidade esteve presente. Mulheres migrantes, por exemplo,
apresentaram durante a 7ª Marcha um manifesto falando de seus problemas
específicos.
Na conferência deste ano, aliás, um dos desafios foi organizar a
comunicação e a tradução para diferentes linguagens devido à
participação de imigrantes africanos de diferentes países. Os interesses
e preocupações comuns, porém, favoreceram articulações conjuntas. A
busca por oportunidades e regularização no país é um dos temas que
aproximam diferentes grupos.
“Migração é isso, as pessoas vão procurando uma vida melhor e isso é
mediante o trabalho, por isso temos que garantir o trabalho decente”,
resume Marina Novaes, coordenadora do Núcleo de Trabalho Decente na
Secretaria Municipal de Direitos Humanos de São Paulo, órgão que também
participou da conferência.
O combate ao preconceito é outra questão que mobiliza representantes
de variadas comunidades. Não são poucos os que reclamam de perseguições
no país. Criss Romero, uma das delegadas eleitas para a Conferência
Nacional de Imigração, aponta que os paraguaios ainda sofrem muito
preconceito no Brasil.
Fundadora do grupo de dança “Aquarela Paraguaia” e integrante da
organização Japayke, ela defende que a comunidade paraguaia deve lutar
pelo direito ao trabalho decente, ao voto e a viver uma vida sem
discriminação. “O paraguaio sempre é apresentado de maneira ruim, como
alguém que não presta, que é corrupto, não trabalha. Queremos mostrar
que a nossa cultura é mais do que isso”. Ela defende que a dança é uma
forma de se expressar que ajuda migrantes a ganharem confiança, mas
deixa claro que a mobilização também deve ser política. “Não estamos
aqui só para dançar, o imigrante é quem deixou a sua terra, sua família,
seus vizinhos e amigos. Estamos trabalhando duro aqui em busca de uma
vida melhor”, ressalta.
Outros também manifestam a preocupação de que as culturas
latino-americanas sejam vistas como meramente folclóricas, o que pode
atrapalhar no processo de luta por direitos. ”As festas não são todo
dia. No meio, é o trabalho que sustenta e move as pessoas”, diz Johnny
Oriehuela, do grupo Socializando Resultados. A mesma opinião é
compartilhada por Juan Casicanki, ator que participou da peça Caminos
Invisibles, sobre trajetórias de trabalhadores migrantes bolivianos.
Ambos apontam a formação de cooperativas de costura como um dos
possíveis caminhos para melhorar as condições de trabalho e vida dos
trabalhadores neste setor, e destacam que muitos dos que começam na
costura têm interesse em aprender outras profissões. Eles lembram que
falta informações para os recém-chegados ao país, justamente os que mais
precisam de orientações sobre direitos laborais e oportunidades de
trabalho.
Fronteiras nas leis e nas cabeças
A migração no mundo atual não é livre, mas bem regulamentada e
governada por fronteiras tanto físicas como legais e sociais. Começando
pelo marco legal no Brasil vê-se que as formas de estadia e obtenções de
vistos são diferenciadas por países de origem e forma de regularização
e, em geral, são marcadas por processos complicados e burocráticos.
Multas altas por descumprimento e taxas para o registro dificultam ainda
mais processos regulatórios. Tais empecilhos colocam imigrantes
irregulares em situação de vulnerabilidade, o que em muitos casos
favorece sua exploração. A falta de informações e o receio de ser
notificado a deixar o país, faz com que muitos evitem procurar as
autoridades mesmo em caso de violência, o que beneficia os agressores.
Imigrantes têm direitos no Brasil, sobre os quais devem ser
informados. Em São Paulo diferentes organizações como Casa do Migrante,
CAMI e Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC)
oferecem orientações e procuram ajudar neste sentido. Recentemente, esta
última junto com a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a
Confederação Geral Italiana do Trabalho (INCA/CGIL, da sigla em
italiano), e a Confederação Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras
das Américas (CSA), lançaram uma cartilha com orientações sobre o tema.
Os vistos e formas para se obter direito de permanência no Brasil
variam conforme país de origem. Todo imigrante proveniente de países do
Mercosul, pode solicitar permanência no Brasil com garantia de todos os
direitos civis, incluindo o direito de trabalhar, independente da
condição migratória em que entrou no país. É o que prevê o decreto nº
6964, de 29 de setembro de 2009. Em outras palavras, mesmo se estiver
trabalhando sem autorização, o imigrante pode solicitar a sua
regularização com isenção de multas e de sanções administrativas.
Anistia, refugiados e vistos humanitários
Nas últimas décadas, imigrantes conseguiram regularizar a situação no
país por meio de diferentes formas. A abertura de processos de anistia
para estrangeiros em situação irregular é uma delas. Ela foi concedida
pelo Governo Federal em quatro ocasiões diferentes (1980, 1988, 1998 e
de 2009 a 2011), sendo a última marcada por reclamações de imigrantes de
entraves criados pela Polícia Federal. Outra modalidade é a concessão
de refúgio, regulada pela lei número 9.474, de 1997. De acordo com dados
do Ministério de Justiça, até março de 2013 eram 4.262 os refugiados
reconhecidos como tal.
Também existem no Brasil vistos humanitários e de programas
específicos. Entre os primeiros estão pessoas afetadas por crises
humanitárias de países como Congo, Costa do Marfim, Haiti, Mali e Síria.
Só de haitianos, até tal data foram beneficiados cerca de 9.000
pessoas, segundo as estimativas oficiais – inicialmente, a previsão era
da concessão de 1.200 vistos por ano, mas o Conselho Nacional de
Migração reagiu a criticas a este modelo e ampliou a quantidade de
emissões. Entre os beneficiados de programas específicos estão os
profissionais contratados pelo “Mais Médicos”, programa federal
planejado para estimular a imigração de 13 mil profissionais ao Brasil
até 2014. Até 28 de novembro, este número era de 5.857, segundo dados do
Ministério da Saúde.
Pela reinvenção de políticas públicas
Além da crítica à repressão, a mobilização também é por direitos
ligados à cidadania no Brasil. Diferentes ações têm sido tomadas neste
sentido. É o caso da campanha “Aqui vivo aqui voto”, que tem como base a
ideia de que, como os imigrantes contribuem de forma fundamental para o
desenvolvimento do país, seja participando da economia, da vida social e
cultural, seja pagando impostos, deveriam ter direito a participação na
escolha de seus representantes políticos. Nelson Bison, do CAMI,
ressalta que o acesso às políticas públicas é mais difícil para
migrantes. Alugar um apartamento sem documento, procurar serviços de
saúde sem falar a língua, ver que os filhos sofrem discriminação na
escola são só exemplos de problemas no dia a dia. Nelson diz que existem
até casos de famílias que pagam taxas ou pedágios para que as crianças
sejam bem aceitas nas escolas.
De acordo com as organizações, a demanda por políticas públicas
envolve duas etapas: primeiro, que todas as pessoas sejam reconhecidas
como iguais perante a lei; depois, que as necessidades e prioridades de
imigrantes sejam identificadas, assim como mecanismos que impedem que
eles exerçam seus direitos. Tal abordagem não é uma via única, mas, por
compreender a universalidade de direitos, beneficia também os
brasileiros. Diferentes aspectos foram considerados durante os debates.
Em palestra de abertura da conferência, Zilda Márcia Grícoli Iokoi do
Diversitas, coordenadora do Núcleo de Estudos das Diversidades,
Intolerâncias e Conflitos da Universidade de São Paulo (USP), defendeu
que, na educação, é preciso pensar a partir da interculturalidade que
enriquece, em vez da discriminação que tem raízes no desconhecimento e
na xenofobia.
Na área de saúde, Jiobana Moya, integrante da organização Warmis
Mulheres, lembra que é importante ter atenção com a maneira como os
imigrantes são recebidos e atendidos nos Centros de Saúde, em especial
para mulheres. Ela destaca que para muitas, como as que trabalham em
oficinas de costura, é difícil conseguir licença de sair do trabalho
para atendimento médico. “Se a enfermeira trata mal já de saída, ela se
sente humilhada e nunca mais vai procurar um serviço de saúde”, afirma.
Ela defende o reconhecimento das necessidades específicas de mulheres
migrantes no sistema de saúde, e luta pela criação de uma casa de parto
humanizado para mulheres imigrantes que não concordam com o parto via
cesariana comum no Brasil. A Warmis defende que a gravidez e o parto são
momentos delicados na vida das mulheres e requerem atendimento
especial, que observe e seja sensível a aspectos culturais.
Em São Paulo, imigrantes dos países membros e associados do Mercosul
podem abrir conta bancária, graças a acordo celebrado em outubro de 2013
entre a Caixa Econômica Federal e a Prefeitura. A medida, iniciativa do
recém-criado grupo de Políticas para Migrantes, na Secretaria Municipal
de Direitos Humanos de São Paulo, tem como objetivo garantir maior
segurança aos bolivianos em São Paulo. Até então sem alternativas,
muitos dos que estão em situação irregular no Brasil guardavam dinheiro
em casa, o que fez da comunidade alvo de criminosos.
O caso mais famoso foi o assassinato do garoto boliviano Brayan
Yanarico Capcha, de 5 anos, morto em um assalto em 28 de junho. Não foi,
porém, o único. Durante a 7ª Marcha, seu nome foi lembrado junto com o
de outros cinco imigrantes mortos violentamente em 2013, todos reunidos
em um cartaz com o título “Basta de violência contra os imigrantes”. O
nome de cada um foi lido durante a marcha, e, para cada lembrança, os
manifestantes gritavam “presente”.
Outra novidade na capital paulista, é que a partir deste ano
migrantes tem direito a voto e a ser votado nos conselhos consultivos da
cidade. A coordenadoria para tratar de migrações está cargo de Paulo
Illes, que foi diretor do CDHIC.
Lisa Carstensen