Em 1981, o jurista português José Luís da Cruz Vilaça
assumiu o cargo de secretário de Estado para a Integração Europeia. No
entanto, foi cinco anos depois que ele participou do órgão que considera
o mais essencial para a real integração do continente: o Tribunal de
Justiça das Comunidades Europeias — hoje chamado de Tribunal de Justiça
da União Europeia.
Com 28 Estados-membros e mais de 500 milhões de habitantes — falando 24 línguas oficiais —, a União Europeia depende do tribunal para uniformizar a aplicação do Direito. Sua função é garantir "o respeito do Direito na interpretação e aplicação dos tratados”, que são regras fundamentais que estão na base de todas as medidas tomadas pela UE.
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é acionado sempre que uma norma ou um princípio do Direito da União Europeia é invocado perante um tribunal nacional e há dúvidas sobre a sua interpretação ou até sobre a validade da norma”, explica Vilaça, que foi o primeiro presidente da corte. Desde outubro de 2012, ele é juiz do tribunal.
Juiz, professor e árbitro, Vilaça tem doutorado em Economia Internacional e já foi deputado em Coimbra (1983) e Braga (1986). Sua vivência na área jurídica, política e econômica dá a ele uma visão completa sobre a Europa. Para ele, as medidas aprovadas por Portugal para fugir da crise, em 2011, foram muito severas, mas valeram a pena. Para a União Europeia funcionar de forma harmoniosa e estável, “é preciso regras — e respeito a essas regras — de disciplina financeira”, diz.
Membro do conselho consultivo da Academia de Direito Europeu, o juiz veio ao Brasil para dar início a um protocolo preparativo de cooperação entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e o Supremo Tribunal Federal, que pode abrir as portas da academia — que fica na cidade alemã de Trier — para os profissionais brasileiros. Ele veio ao Brasil depois de receber os advogados brasileiros Nelson Wilians e Luiz Roberto Sabbato, junto com o presidente do Tribunal de Justiça da União Europeia, Koen Lenaerts, em almoço na sede do tribunal, em Luxemburgo.
Leia a entrevista:
ConJur — Como é a convivência, hoje, da justiça da União Europeia com as justiças dos Estados-membros?
José Luís da Cruz Vilaça — É pacífica e funciona como uma cooperação. Isso é um suporte indispensável para a estrutura e o funcionamento da ordem jurídica da União Europeia. Essa ordem, sobretudo o sistema jurisdicional da União Europeia, baseia-se na cooperação entre os tribunais de Luxemburgo, em particular o Tribunal de Justiça, e os tribunais dos Estados-membros. Em virtude do efeito direto das normas do Direito da União Europeia e do princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito nacional dos Estados-membros, em caso de contradição, os tribunais dos Estados são os órgãos jurisdicionais comuns de aplicação do Direito da União Europeia.
Nós somos apenas um tribunal especializado, criado pelo tratado para aplicar e promover uniformidade na aplicação do Direito da União em todo o seu território. Mas não somos a primeira linha de aplicação do Direito da União Europeia.
ConJur — Onde o Direito da União Europeia é aplicado primeiro, então?
José Luís da Cruz Vilaça — Os cidadãos podem invocar diretamente o Direito comunitário para fazer valer os direitos que para eles decorrem das normas da União Europeia, perante os tribunais nacionais competentes. Só que isso, obviamente, gera problemas em uma união de 28 Estados e mais de 500 milhões de cidadãos. Como aplicar da mesma forma em Lisboa, na República Checa, na Polônia ou na Ilha de Malta? Se não aplicarmos da mesma maneira, os cidadãos acabam por não ser tratados da mesma maneira. Assim, o Tribunal de Justiça da União Europeia é acionado sempre que uma norma ou um princípio do Direito da União Europeia é invocado perante um tribunal nacional e há dúvidas sobre a sua interpretação ou até sobre a validade da norma. O tribunal vai dar, inclusive, elementos de interpretação do Direito que permitam resolver o problema de forma rápida e eficaz.
ConJur — Os brasileiros têm uma relação privilegiada com Portugal. O Tribunal já analisou se o brasileiro tem alguma prerrogativa na Europa, por conta dessa relação?
José Luís da Cruz Vilaça — O brasileiro é um cidadão de um país de fora da União, um país terceiro. Em princípio, se aplicam as regras que se aplicam aos cidadãos de países terceiros. O Brasil tem uma posição especial, em primeiro lugar, porque há uma ligação não só afetiva e histórica, mas também econômica e jurídica com Portugal. Através dessa relação com Portugal, o brasileiro tem algumas facilidades em penetrar na Europa e no mercado de trabalho europeu. Além disso, a União Europeia tem acordos especiais com o Brasil, seja com o Brasil bilateralmente, seja no quadro do Mercosul, que permite conceder aos brasileiros direitos, eventualmente, obrigações, também, que não são reconhecidos, necessariamente, a cidadãos de outros países, como Afeganistão ou Síria.
ConJur — Quais são os limites de atuação do advogado de um Estado-membro em outro Estado-membro? Ele pode fazer qualquer coisa?
José Luís da Cruz Vilaça — Uma das liberdades fundamentais do tratado é que os profissionais de um Estado têm livre acesso ao mercado do outro. É um mercado interno com liberdade de circulação. E tem livre acesso para exercer uma profissão como trabalhador assalariado ou como trabalhador independente. Para certas profissões, não vai haver grandes problemas, porque os diplomas podem ser facilmente reconhecidos. Em Direito, é diferente. Pela diferença do ensino do Direito em cada país, é preciso fazer algumas exigências suplementares. Para evitar que cada Estado-membro imponha as suas próprias regras, a comunidade europeia, primeiro, e a União Europeia, depois, votaram regras para harmonizar ou mesmo uniformizar as condições de acesso ao mercado da prestação de serviços jurídicos nos vários Estados.
ConJur — O Reino Unido ficou famoso como muito independente e apresentou ressalvas para o seu ingresso na União Europeia. É no ano que vem que vencem aquelas concessões que a União Europeia fez para viabilizar o ingresso do Reino Unido?
José Luís da Cruz Vilaça — O Reino Unido sempre teve uma posição ambígua em relação à comunidade europeia. Eu acho que é a presença do Reino Unido na União Europeia é fundamental, por razões de caráter econômico, relacionadas ao dinamismo da economia britânica e com o dinamismo do seu setor financeiro. Do ponto de vista jurídico, o funcionamento do Tribunal de Justiça beneficiou muito a entrada da Grã Bretanha, em 1972, e devo dizer que os advogados britânicos são dos melhores que vêm apresentar alegações, com um profissionalismo, savoir-faire e know-how fantásticos. Além disso, têm uma grande criatividade na maneira de apresentar os seus argumentos. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, fez uma aposta arriscada, organizar um referendo sobre a participação da União Europeia, a manutenção, a continuação ou não da Grã Bretanha na União Europeia. E o referendo vai ter lugar em 2017, mas para convencer o povo britânico a dizer que sim, porque ele percebe, inteligentemente, que é importante para o Reino Unido e a Grã Bretanha estar dentro da União Europeia e influenciar o que se passa lá dentro.
ConJur — Caso a Irlanda do Norte se qualifique como um Estado autônomo, ele pode vir a requisitar o ingresso na União Europeia?
José Luís da Cruz Vilaça — Não há um problema, neste momento, com a hipotética independência da Irlanda do Norte. Essas coisas estão pacificadas com os acordos que foram feitos ainda no tempo do ministro [Tony] Blair. Há um problema mais imediato com a Escócia, que fez um referendo no qual escoceses e o governo regional da Escócia fizeram campanha a favor da saída do Reino Unido. O resultado foi, “não vamos sair do Reino Unido, queremos continuar”, mas com margem muito pequena. Se houver no futuro sua independência do Reino Unido, ela será reconhecida pela comunidade internacional. Assim, torna-se um país independente, mas que não é membro da União Europeia. Se os escoceses, cidadãos escoceses quiserem continuar a beneficiar do estatuto de cidadãos europeus, a Escócia tem que pedir adesão, negociar a adesão e ser admitida por todos os outros membros, por unanimidade. Isto é aplicável a qualquer região autônoma de um Estado membro que venha, eventualmente, a declarar a independência.
ConJur — A relação privilegiada a advogado e cliente tem sido flexibilizada. Recentemente, alterou-se a questão da confidencialidade. Em alguns países, se o advogado souber que o cliente pratica atividades como lavagem de dinheiro ou atos relacionados a terrorismo, a tráfico ou crimes conexos, deve informar às autoridades. Como está isso, hoje, na Europa?
José Luís da Cruz Vilaça — A Europa tem uma diretiva que se aplica especificamente a essa situação. No início, não abrangia os advogados, nas relações com seus clientes, depois passou a abranger os advogados nas relações com seus clientes, mas salvaguarda os deveres de lealdade e de confidencialidade do advogado nas relações de defesa dos seus clientes. Na defesa dos seus clientes, o advogado tem de beneficiar aquilo que os ingleses chamam de legal privilege. Tudo aquilo que o cliente diga para assegurar a sua defesa está coberto por essa confidencialidade. Mas isto se aplica quando o advogado é chamado a defender um cliente que é acusado de atividades delituosas. Não se aplica quando o advogado é chamado, solicitado por um cliente a colaborar nas suas atividades delituosas e aplica-se, como falamos, na defesa do cliente em juízo ou preparação da defesa do cliente em juízo. Essa garantia não abrange quando o advogado é, por exemplo, solicitado a assessorar o cliente em certas operações financeiras ou caráter imobiliário entre as quais ele possa suspeitar ou ter conhecimento de que há atividades de caráter ilícito, designadamente de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.
A diretiva não resolve tudo, não diz exatamente como é que essa comunicação deve ser feita e a quem. O legislador buscou um equilíbrio, mas deixou de fora dúvidas de interpretação, que, quando houver um pleito num tribunal, o Tribunal de Justiça poderá ser chamado a clarificar e a dar a interpretação conveniente.
ConJur — Já houve algum caso de advogado enquadrado junto com o cliente, pelo crime que o cliente praticou, já que o advogado não comunicou a ninguém?
José Luís da Cruz Vilaça — Sim. Em vários Estados-membros. A própria diretiva resulta da interpretação que o Tribunal de Justiça fez dos deveres profissionais dos advogados que, neste ponto, entram, de certa maneira, em conflito. O conflito da prevenção da criminalidade grave e séria, por um lado, e, por outro, os deveres antológicos dos advogados, de segredo profissional e de colaboração na defesa dos seus clientes.
ConJur — Há poucos anos, para sair de uma crise parecida com a que o Brasil vive hoje, o governo português chegou a reduzir a remuneração dos servidores públicos, assim como cortou pensões e aposentadorias, o que foi convalidado pela Corte Constitucional Portuguesa. O sacrifício valeu a pena?
José Luís da Cruz Vilaça — Eu digo não como juiz, mas como cidadão português, afirmo que valeu a pena. De fato, estávamos numa situação muito delicada, muito difícil, ainda em 2011, com nível de endividamento interno e externo do Estado brutal. Com déficit orçamental enorme, que ultrapassava os limites fixados no quadro da criação da União Econômica e Monetária da introdução do euro. Para uma zona destas funcionar de forma harmoniosa e estável, é preciso regras — e respeito a essas regras — de disciplina financeira. E foi preciso, portanto, reequilibrar, reestruturar e fazer resgates. A Alemanha tem sido um exemplo, a meu ver, de equilíbrio, às vezes parece mesmo um pouco demasiado rígida, mas a solidariedade que a Alemanha tem praticado também tem de andar lado a lado com a responsabilidade. Portugal aceitou suas responsabilidades de maneira rigorosa, custosa para o cidadão, sobretudo para aqueles que têm mais dificuldades e ganham menos, mas o cidadão aceitou essa aposta e deu provas de grande sentido de responsabilidade cívica. E, em Portugal, funcionou também porque os sindicatos, em geral, deram provas da mesmo sentido de responsabilidade cívica, não houve desacatos.
ConJur — Nem greve geral?
José Luís da Cruz Vilaça — Não houve greve geral, motins populares ou violência, e ultrapassamos o mais difícil da crise. Estamos, agora, em uma reta ascendente, em Portugal. Essa reta ascendente faz com que, nos últimos tempos, tenhamos crescido economicamente, as exportações estão aumentando, temos uma moeda estável e, portanto, grande esperança para o futuro. Eu desejo, como português, que saia uma solução de governo estável, responsável, respeitadora das disciplinas orçamentárias e da União Europeia. E que continuemos uma política de crescimento da economia, de apoio aos mais necessitados, dentro dos limites dos recursos de que dispomos. Nós não somos um país rico e não podemos ignorar isso.
ConJur — O Tribunal de Justiça tutela as chamadas cinco liberdades fundamentais. Como é isso?
José Luís da Cruz Vilaça — São os pilares do funcionamento do mercado interno, que se chamava mercado comum. As cinco liberdades fundamentais são: liberdade de circulação de mercadorias; de pessoas; de capitais; de estabelecimento; e de prestação de serviços. No princípio, quando a comunidade europeia era, sobretudo, uma comunidade de natureza econômica e comercial, era livre circulação de trabalhadores, as pessoas enquanto trabalhadores. Hoje em dia, essa noção foi se ampliando, sobretudo após a introdução da cidadania europeia. Portanto, o grande princípio é livre circulação de pessoas que estejam em situação regular.
ConJur — Que tipo de cooperação pode haver entre a União Europeia e o Brasil, em matéria jurídica e judicial?
José Luís da Cruz Vilaça — Há um campo largo para relações de cooperação entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e o sistema judicial da União Europeia e o Judiciário brasileiro. Em primeiro lugar, há o interesse dos dois lados de conhecer a experiência do outro. O Brasil é um grande Estado Federal, com uma dimensão continental. A União Europeia não é um Estado Federal, mas é uma União com elementos de tipo federal, hoje em dia com 28 Estados-membros. É muito importante que possamos intercambiar informações, experiências, para podermos buscar soluções para problemas que também são semelhantes.
ConJur — Existe a possibilidade de brasileiros advogados, juízes ou promotores fazerem curso na Academia Europeia de Direito de Trier?
José Luís da Cruz Vilaça — Sim. A Academia de Trier não está vinculada ao Tribunal de Justiça. É apoiada pelo governo da República Federal da Alemanha, mas é uma instituição de Direito privado. Há outras em vários Estados membros, mas essa tem uma vantagem por ficar muito próxima do Tribunal de Justiça e, portanto, há um intercâmbio natural entre a Academia de Direito Europeu de Trier e o Tribunal de Justiça. Ela presta apoio e cooperação na generalidade dos países da União Europeia e, sobretudo, para a formação de juristas, advogados e juízes. Todos são chamados a aplicar o Direito da União Europeia.
Com 28 Estados-membros e mais de 500 milhões de habitantes — falando 24 línguas oficiais —, a União Europeia depende do tribunal para uniformizar a aplicação do Direito. Sua função é garantir "o respeito do Direito na interpretação e aplicação dos tratados”, que são regras fundamentais que estão na base de todas as medidas tomadas pela UE.
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é acionado sempre que uma norma ou um princípio do Direito da União Europeia é invocado perante um tribunal nacional e há dúvidas sobre a sua interpretação ou até sobre a validade da norma”, explica Vilaça, que foi o primeiro presidente da corte. Desde outubro de 2012, ele é juiz do tribunal.
Juiz, professor e árbitro, Vilaça tem doutorado em Economia Internacional e já foi deputado em Coimbra (1983) e Braga (1986). Sua vivência na área jurídica, política e econômica dá a ele uma visão completa sobre a Europa. Para ele, as medidas aprovadas por Portugal para fugir da crise, em 2011, foram muito severas, mas valeram a pena. Para a União Europeia funcionar de forma harmoniosa e estável, “é preciso regras — e respeito a essas regras — de disciplina financeira”, diz.
Membro do conselho consultivo da Academia de Direito Europeu, o juiz veio ao Brasil para dar início a um protocolo preparativo de cooperação entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e o Supremo Tribunal Federal, que pode abrir as portas da academia — que fica na cidade alemã de Trier — para os profissionais brasileiros. Ele veio ao Brasil depois de receber os advogados brasileiros Nelson Wilians e Luiz Roberto Sabbato, junto com o presidente do Tribunal de Justiça da União Europeia, Koen Lenaerts, em almoço na sede do tribunal, em Luxemburgo.
Leia a entrevista:
ConJur — Como é a convivência, hoje, da justiça da União Europeia com as justiças dos Estados-membros?
José Luís da Cruz Vilaça — É pacífica e funciona como uma cooperação. Isso é um suporte indispensável para a estrutura e o funcionamento da ordem jurídica da União Europeia. Essa ordem, sobretudo o sistema jurisdicional da União Europeia, baseia-se na cooperação entre os tribunais de Luxemburgo, em particular o Tribunal de Justiça, e os tribunais dos Estados-membros. Em virtude do efeito direto das normas do Direito da União Europeia e do princípio do primado do Direito da União Europeia sobre o Direito nacional dos Estados-membros, em caso de contradição, os tribunais dos Estados são os órgãos jurisdicionais comuns de aplicação do Direito da União Europeia.
Nós somos apenas um tribunal especializado, criado pelo tratado para aplicar e promover uniformidade na aplicação do Direito da União em todo o seu território. Mas não somos a primeira linha de aplicação do Direito da União Europeia.
ConJur — Onde o Direito da União Europeia é aplicado primeiro, então?
José Luís da Cruz Vilaça — Os cidadãos podem invocar diretamente o Direito comunitário para fazer valer os direitos que para eles decorrem das normas da União Europeia, perante os tribunais nacionais competentes. Só que isso, obviamente, gera problemas em uma união de 28 Estados e mais de 500 milhões de cidadãos. Como aplicar da mesma forma em Lisboa, na República Checa, na Polônia ou na Ilha de Malta? Se não aplicarmos da mesma maneira, os cidadãos acabam por não ser tratados da mesma maneira. Assim, o Tribunal de Justiça da União Europeia é acionado sempre que uma norma ou um princípio do Direito da União Europeia é invocado perante um tribunal nacional e há dúvidas sobre a sua interpretação ou até sobre a validade da norma. O tribunal vai dar, inclusive, elementos de interpretação do Direito que permitam resolver o problema de forma rápida e eficaz.
ConJur — Os brasileiros têm uma relação privilegiada com Portugal. O Tribunal já analisou se o brasileiro tem alguma prerrogativa na Europa, por conta dessa relação?
José Luís da Cruz Vilaça — O brasileiro é um cidadão de um país de fora da União, um país terceiro. Em princípio, se aplicam as regras que se aplicam aos cidadãos de países terceiros. O Brasil tem uma posição especial, em primeiro lugar, porque há uma ligação não só afetiva e histórica, mas também econômica e jurídica com Portugal. Através dessa relação com Portugal, o brasileiro tem algumas facilidades em penetrar na Europa e no mercado de trabalho europeu. Além disso, a União Europeia tem acordos especiais com o Brasil, seja com o Brasil bilateralmente, seja no quadro do Mercosul, que permite conceder aos brasileiros direitos, eventualmente, obrigações, também, que não são reconhecidos, necessariamente, a cidadãos de outros países, como Afeganistão ou Síria.
ConJur — Quais são os limites de atuação do advogado de um Estado-membro em outro Estado-membro? Ele pode fazer qualquer coisa?
José Luís da Cruz Vilaça — Uma das liberdades fundamentais do tratado é que os profissionais de um Estado têm livre acesso ao mercado do outro. É um mercado interno com liberdade de circulação. E tem livre acesso para exercer uma profissão como trabalhador assalariado ou como trabalhador independente. Para certas profissões, não vai haver grandes problemas, porque os diplomas podem ser facilmente reconhecidos. Em Direito, é diferente. Pela diferença do ensino do Direito em cada país, é preciso fazer algumas exigências suplementares. Para evitar que cada Estado-membro imponha as suas próprias regras, a comunidade europeia, primeiro, e a União Europeia, depois, votaram regras para harmonizar ou mesmo uniformizar as condições de acesso ao mercado da prestação de serviços jurídicos nos vários Estados.
ConJur — O Reino Unido ficou famoso como muito independente e apresentou ressalvas para o seu ingresso na União Europeia. É no ano que vem que vencem aquelas concessões que a União Europeia fez para viabilizar o ingresso do Reino Unido?
José Luís da Cruz Vilaça — O Reino Unido sempre teve uma posição ambígua em relação à comunidade europeia. Eu acho que é a presença do Reino Unido na União Europeia é fundamental, por razões de caráter econômico, relacionadas ao dinamismo da economia britânica e com o dinamismo do seu setor financeiro. Do ponto de vista jurídico, o funcionamento do Tribunal de Justiça beneficiou muito a entrada da Grã Bretanha, em 1972, e devo dizer que os advogados britânicos são dos melhores que vêm apresentar alegações, com um profissionalismo, savoir-faire e know-how fantásticos. Além disso, têm uma grande criatividade na maneira de apresentar os seus argumentos. O primeiro-ministro britânico, David Cameron, fez uma aposta arriscada, organizar um referendo sobre a participação da União Europeia, a manutenção, a continuação ou não da Grã Bretanha na União Europeia. E o referendo vai ter lugar em 2017, mas para convencer o povo britânico a dizer que sim, porque ele percebe, inteligentemente, que é importante para o Reino Unido e a Grã Bretanha estar dentro da União Europeia e influenciar o que se passa lá dentro.
ConJur — Caso a Irlanda do Norte se qualifique como um Estado autônomo, ele pode vir a requisitar o ingresso na União Europeia?
José Luís da Cruz Vilaça — Não há um problema, neste momento, com a hipotética independência da Irlanda do Norte. Essas coisas estão pacificadas com os acordos que foram feitos ainda no tempo do ministro [Tony] Blair. Há um problema mais imediato com a Escócia, que fez um referendo no qual escoceses e o governo regional da Escócia fizeram campanha a favor da saída do Reino Unido. O resultado foi, “não vamos sair do Reino Unido, queremos continuar”, mas com margem muito pequena. Se houver no futuro sua independência do Reino Unido, ela será reconhecida pela comunidade internacional. Assim, torna-se um país independente, mas que não é membro da União Europeia. Se os escoceses, cidadãos escoceses quiserem continuar a beneficiar do estatuto de cidadãos europeus, a Escócia tem que pedir adesão, negociar a adesão e ser admitida por todos os outros membros, por unanimidade. Isto é aplicável a qualquer região autônoma de um Estado membro que venha, eventualmente, a declarar a independência.
ConJur — A relação privilegiada a advogado e cliente tem sido flexibilizada. Recentemente, alterou-se a questão da confidencialidade. Em alguns países, se o advogado souber que o cliente pratica atividades como lavagem de dinheiro ou atos relacionados a terrorismo, a tráfico ou crimes conexos, deve informar às autoridades. Como está isso, hoje, na Europa?
José Luís da Cruz Vilaça — A Europa tem uma diretiva que se aplica especificamente a essa situação. No início, não abrangia os advogados, nas relações com seus clientes, depois passou a abranger os advogados nas relações com seus clientes, mas salvaguarda os deveres de lealdade e de confidencialidade do advogado nas relações de defesa dos seus clientes. Na defesa dos seus clientes, o advogado tem de beneficiar aquilo que os ingleses chamam de legal privilege. Tudo aquilo que o cliente diga para assegurar a sua defesa está coberto por essa confidencialidade. Mas isto se aplica quando o advogado é chamado a defender um cliente que é acusado de atividades delituosas. Não se aplica quando o advogado é chamado, solicitado por um cliente a colaborar nas suas atividades delituosas e aplica-se, como falamos, na defesa do cliente em juízo ou preparação da defesa do cliente em juízo. Essa garantia não abrange quando o advogado é, por exemplo, solicitado a assessorar o cliente em certas operações financeiras ou caráter imobiliário entre as quais ele possa suspeitar ou ter conhecimento de que há atividades de caráter ilícito, designadamente de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo.
A diretiva não resolve tudo, não diz exatamente como é que essa comunicação deve ser feita e a quem. O legislador buscou um equilíbrio, mas deixou de fora dúvidas de interpretação, que, quando houver um pleito num tribunal, o Tribunal de Justiça poderá ser chamado a clarificar e a dar a interpretação conveniente.
ConJur — Já houve algum caso de advogado enquadrado junto com o cliente, pelo crime que o cliente praticou, já que o advogado não comunicou a ninguém?
José Luís da Cruz Vilaça — Sim. Em vários Estados-membros. A própria diretiva resulta da interpretação que o Tribunal de Justiça fez dos deveres profissionais dos advogados que, neste ponto, entram, de certa maneira, em conflito. O conflito da prevenção da criminalidade grave e séria, por um lado, e, por outro, os deveres antológicos dos advogados, de segredo profissional e de colaboração na defesa dos seus clientes.
ConJur — Há poucos anos, para sair de uma crise parecida com a que o Brasil vive hoje, o governo português chegou a reduzir a remuneração dos servidores públicos, assim como cortou pensões e aposentadorias, o que foi convalidado pela Corte Constitucional Portuguesa. O sacrifício valeu a pena?
José Luís da Cruz Vilaça — Eu digo não como juiz, mas como cidadão português, afirmo que valeu a pena. De fato, estávamos numa situação muito delicada, muito difícil, ainda em 2011, com nível de endividamento interno e externo do Estado brutal. Com déficit orçamental enorme, que ultrapassava os limites fixados no quadro da criação da União Econômica e Monetária da introdução do euro. Para uma zona destas funcionar de forma harmoniosa e estável, é preciso regras — e respeito a essas regras — de disciplina financeira. E foi preciso, portanto, reequilibrar, reestruturar e fazer resgates. A Alemanha tem sido um exemplo, a meu ver, de equilíbrio, às vezes parece mesmo um pouco demasiado rígida, mas a solidariedade que a Alemanha tem praticado também tem de andar lado a lado com a responsabilidade. Portugal aceitou suas responsabilidades de maneira rigorosa, custosa para o cidadão, sobretudo para aqueles que têm mais dificuldades e ganham menos, mas o cidadão aceitou essa aposta e deu provas de grande sentido de responsabilidade cívica. E, em Portugal, funcionou também porque os sindicatos, em geral, deram provas da mesmo sentido de responsabilidade cívica, não houve desacatos.
ConJur — Nem greve geral?
José Luís da Cruz Vilaça — Não houve greve geral, motins populares ou violência, e ultrapassamos o mais difícil da crise. Estamos, agora, em uma reta ascendente, em Portugal. Essa reta ascendente faz com que, nos últimos tempos, tenhamos crescido economicamente, as exportações estão aumentando, temos uma moeda estável e, portanto, grande esperança para o futuro. Eu desejo, como português, que saia uma solução de governo estável, responsável, respeitadora das disciplinas orçamentárias e da União Europeia. E que continuemos uma política de crescimento da economia, de apoio aos mais necessitados, dentro dos limites dos recursos de que dispomos. Nós não somos um país rico e não podemos ignorar isso.
ConJur — O Tribunal de Justiça tutela as chamadas cinco liberdades fundamentais. Como é isso?
José Luís da Cruz Vilaça — São os pilares do funcionamento do mercado interno, que se chamava mercado comum. As cinco liberdades fundamentais são: liberdade de circulação de mercadorias; de pessoas; de capitais; de estabelecimento; e de prestação de serviços. No princípio, quando a comunidade europeia era, sobretudo, uma comunidade de natureza econômica e comercial, era livre circulação de trabalhadores, as pessoas enquanto trabalhadores. Hoje em dia, essa noção foi se ampliando, sobretudo após a introdução da cidadania europeia. Portanto, o grande princípio é livre circulação de pessoas que estejam em situação regular.
ConJur — Que tipo de cooperação pode haver entre a União Europeia e o Brasil, em matéria jurídica e judicial?
José Luís da Cruz Vilaça — Há um campo largo para relações de cooperação entre o Tribunal de Justiça da União Europeia e o sistema judicial da União Europeia e o Judiciário brasileiro. Em primeiro lugar, há o interesse dos dois lados de conhecer a experiência do outro. O Brasil é um grande Estado Federal, com uma dimensão continental. A União Europeia não é um Estado Federal, mas é uma União com elementos de tipo federal, hoje em dia com 28 Estados-membros. É muito importante que possamos intercambiar informações, experiências, para podermos buscar soluções para problemas que também são semelhantes.
ConJur — Existe a possibilidade de brasileiros advogados, juízes ou promotores fazerem curso na Academia Europeia de Direito de Trier?
José Luís da Cruz Vilaça — Sim. A Academia de Trier não está vinculada ao Tribunal de Justiça. É apoiada pelo governo da República Federal da Alemanha, mas é uma instituição de Direito privado. Há outras em vários Estados membros, mas essa tem uma vantagem por ficar muito próxima do Tribunal de Justiça e, portanto, há um intercâmbio natural entre a Academia de Direito Europeu de Trier e o Tribunal de Justiça. Ela presta apoio e cooperação na generalidade dos países da União Europeia e, sobretudo, para a formação de juristas, advogados e juízes. Todos são chamados a aplicar o Direito da União Europeia.