Sergio Moro – juiz federal da 13ª Vara Federal de Curitiba e
um dos responsáveis pela Operação
Lava-Jato – escreveu este artigo
especialmente para EXAME.
"Passados mais de dois anos do inÍcio da fase ostensiva da assim denominada
Operação Lava-Jato,
o momento é propício para algumas reflexões baseadas nos casos já
julgados. Tais reflexões não se aplicam necessariamente aos casos ainda
pendentes de julgamento, já que, no processo penal, há situações
particulares, e a responsabilidade criminal é sempre dependente de
provas específicas.
Tratando dos casos já julgados, foram, até o momento, cerca de dez
sentenças tendo por objeto específico crimes de corrupção em contratos
da
Petrobras.
Em sete delas, foram condenados dirigentes de várias das principais
empreiteiras do país como corruptores, diretores da Petrobras como
beneficiários de vantagens indevidas e intermediários entre esses dois
polos.
Mas o esquema criminoso que contaminou a Petrobras vai além da corrupção
de agentes da empresa. Em pelo menos dois casos houve a condenação de
ex-parlamentares federais que haviam sido beneficiados pelas propinas
acertadas com funcionários da Petrobras e, em um terceiro caso, foi
provado que o dinheiro da propina tinha sido direcionado ao
financiamento ilícito de partido político.
Em um contexto mais amplo, a progressiva revelação dos fatos teve
consequências fora do processo penal. A Petrobras, de uma postura de
negação geral no primeiro semestre de 2014, quando não reconhecia nenhum
problema de governança, passou paulatinamente a admitir os crimes,
culminando no reconhecimento oficial, em seu balanço de 2015, de perdas
com a corrupção de cerca de 6 bilhões de reais.
Algumas das empreiteiras envolvidas nos crimes passaram, louvadamente, a
reconhecer sua responsabilidade. Duas grandes empreiteiras celebraram
acordos de leniência com o
Ministério Público Federal,
comprometendo-se a revelar os ilícitos, abandonar práticas criminosas,
implementar sistemas eficientes de compliance e indenizar os cofres
públicos em mais de 1 bilhão de reais.
O relato geral do ocorrido não faz jus à dramaticidade dos eventos. O
mais perturbardor, nesse quadro, foi a constatação de que práticas
corruptas haviam se ‘naturalizado’ no âmbito dos contratos públicos. O
indicativo principal é o fato de as propinas serem negociadas com base
em taxas previamente estabelecidas, em percentual fixo calculado em cima
dos contratos, ou seja, a regra do ‘x por cento’.
Como regra, o pagamento de 1% a 2% de propinas incidentes sobre os
contratos. De forma semelhante, pré-existentes regras de divisão da
propina entre intermediários, funcionários da Petrobras e políticos ou
partidos. Para ilustrar, extrai-se o seguinte trecho do interrogatório
de um dos envolvidos no esquema criminoso:
‘Ministério Público — Quando eu questionei sobre o pagamento de propina,
essa expressão ‘regra do jogo’ que o senhor usou, exatamente como
acontecia?
Depoente — A regra do jogo a que me referi é que não havia contrato na
Petrobras se não houvesse um acordo de pagamento desses valores para a
diretoria de abastecimento e para a diretoria de engenharia e serviços.
Ministério Público — Isso já era uma regra conhecida, já era uma prática conhecida?
Depoente — Uma regra de mercado’.
Outro indicativo consiste na falta de respostas mais concretas acerca do
motivo das propinas. Mesmo empresários que confessaram o pagamento
tiveram dificuldade em esclarecer por que agiam desse modo, assim como
agentes da Petrobras confessos negaram que teriam propiciado benefícios
mais concretos aos corruptores.
Ainda a ilustrar a magnitude das práticas corruptas, um gerente da
Petrobras, após acordo de colaboração, devolveu, ele sozinho, cerca de
97 milhões de dólares em propinas que mantinha em contas secretas no
exterior. Mais um fato desalentador foi a constatação de que alguns
personagens tinham um histórico de envolvimento em outros esquemas
criminosos.
Ilustrativamente, ficou provado que um ex-parlamentar federal, que havia sido condenado na conhecida
Ação Penal 470
pelo Supremo Tribunal Federal, também recebeu propinas no esquema
criminoso da Petrobras, tendo alguns dos recebimentos ocorrido mesmo
enquanto a Suprema Corte debatia, em julgamento público, a
responsabilidade do mesmo indivíduo no crime anterior.
Todos esses fatos perturbadores permitem concluir que foi descoberto um
quadro de corrupção sistêmica. A corrupção, como crime isolado, existe
em qualquer lugar do mundo, mas a corrupção sistêmica, o pagamento de
propina como regra do jogo, não é assim tão comum, representando uma
severa degeneração dos costumes públicos e privados.
O custo da corrupção sistêmica é gigantesco não só para os cofres
públicos como também para a economia e a sociedade em geral. O mais
óbvio é o custo da propina, que pode reduzir a margem de lucro das
entidades privadas ou, como é mais comum, ser transferido ao contrato
público, gerando consequentes impactos no orçamento público.
Investidores afugentados
Mais do que isso, a necessidade de gerar recursos para pagamento da propina em esquemas de
corrupção sistêmica pode afetar decisões de investimento, gerando prejuízos ainda maiores.
Talvez alguns maus investimentos feitos pela Petrobras no período de
corrupção sistêmica possam ser explicados não como produto de uma
escolha ruim mas bem motivada, e sim pelo fato de a prioridade dos
agentes envolvidos consistir em gerar propina, e não em tomar a melhor
decisão do ponto de vista econômico para a companhia.
Elevações extraordinárias de custos de obras, como o da Refinaria Abreu e
Lima, de cerca de 2 bilhões para 18 bilhões de dólares, talvez possam
ser compreendidas nesse contexto. Esquemas de corrupção sistêmica
afastam investidores internos e externos. Se o mercado não é limpo, se é
possível trapacear com propinas, investidores potenciais que não
desejam se envolver em práticas criminosas serão afastados.
Mais do que tudo, esquemas de corrupção sistêmica são danosos porque
impactam a confiança na regra da lei e na democracia. Se a lei não vale
para todos, há uma progressiva erosão da confiança na democracia, com
efeitos colaterais preocupantes. Diante da revelação da corrupção
sistêmica, o que fazer? O sistema de Justiça criminal deve funcionar.
Crimes descobertos e provados devem, respeitado o devido processo, ser
punidos. A Justiça funciona quando o inocente vai para casa e o culpado
para a prisão. O resultado não deve depender das condições econômicas ou
políticas do acusado.
Ainda há muito a avançar nesse aspecto, mas a Operação Lava-Jato, assim
como outras recentes, revela que muito pode ser feito, mesmo no sistema
atual, desde que o problema seja tratado com seriedade. A Justiça não
pode ser um faz de conta, com processos que não terminam e culpados que
não são punidos.
O adequado funcionamento do sistema de Justiça criminal é condição
necessária, mas não suficiente, para eliminar a corrupção sistêmica. É
preciso que as outras instituições públicas, Executivo e Legislativo,
adotem políticas públicas de prevenção e combate à corrupção. A
corrupção sistêmica não é unicamente um problema da Justiça.
O governo é o principal responsável por criar um ambiente político e
econômico livre da corrupção sistêmica. Ele, com maior visibilidade e
poder, ensina pelo exemplo. Agentes corrompidos devem ser expulsos da
vida pública.
Leis melhores podem ser aprovadas tanto para aprimorar o sistema de
Justiça
criminal como para incrementar a transparência e a previsibilidade das
relações entre o público e o privado, assim diminuindo incentivos e
oportunidades para práticas corruptas. Liberdade de imprensa e acesso à
informação são essenciais.
O controle dos governantes pelos governados exige cidadãos bem
informados sobre a gestão da vida pública. A iniciativa privada tem um
papel relevante. A corrupção envolve quem paga e quem recebe.
Ambos são
culpados.
Pontualmente, empresas podem ser vítimas de extorsão, mas não raramente o
pagamento de propina em contratos públicos envolve a obtenção de um
benefício indevido pelo agente privado — por exemplo, a limitação da
concorrência leal em uma licitação. Empresas devem fazer sua lição de
casa.
Dizer não ao pagamento de propina, implantar mecanismos eficientes de
controle interno para prevenir corrupção pública e privada e denunciar
solicitações ou exigências de pagamento de propina. É também importante
agir coletivamente para que empresas envolvidas em práticas corruptas
sejam isoladas do mercado em vez de assumir uma posição de proeminência.
Muito pode ser feito pela iniciativa privada, independentemente do
governo. Dois exemplos de fora. A famosa Operação Mãos Limpas, irmã
italiana e mais velha da Operação Lava-Jato, iniciou-se com a denúncia
de um empresário de que um diretor de um instituto filantrópico de Milão
solicitara o pagamento de propina em um contrato público.
Foi a coragem de um empresário que deu o pontapé inicial à mais
abrangente e profunda ação judicial conhecida contra um esquema de
corrupção sistêmica.
Outro exemplo do mesmo país. Na Sicília, onde negócios sofrem extorsão
cotidiana da Cosa Nostra, empresários, pequenos ou grandes,
associaram-se em organizações como o AddioPizzo (‘adeus, propina’) e
recusam-se coletiva e publicamente a pagar propina. Muito pode ser feito
e é preciso ter presente que a corrupção sistêmica é produto de uma
fraqueza institucional e cultural.
Nenhum país está fadado a conviver com ela, pois não se trata de algo
natural. Descobri-la, ainda que gere impactos no curto prazo, faz parte
não do problema, mas do processo de cura. Uma vez descoberta, devem ser
adotadas as políticas públicas necessárias para superá-la. Não se
resolve o problema varrendo-o para debaixo do tapete.
A Operação Lava-Jato, talvez mais do que qualquer outra no passado, pela
dimensão dos fatos que foram revelados, propicia ao Brasil a
oportunidade para que sejam tomadas as providências necessárias para
superar essa vergonhosa prática.
Para tanto, é imprescindível a ação das instituições públicas e
privadas. Agindo juntas, é possível que a corrupção sistêmica se torne
uma triste lembrança de um passado sombrio e não mais represente o
futuro do país.”