Para
Silvio Meira, um dos maiores especialistas em inovação e tecnologia do
país, as empresas precisam olhar para a IA não como uma ferramenta, mas
como uma nova dimensão da realidade, onde poderão tomar melhores
decisões
Em entrevista exclusiva a Época NEGÓCIOS,
ele falou sobre o impacto da IA generativa nas empresas, mudanças no
mercado de trabalho, regulamentação da tecnologia e as possibilidades de
o Brasil se tornar competitivo nessa área -- o que vai demandar
investimentos de longo prazo em pesquisa e desenvolvimento tecnológico e
científico.
Confira os principais trechos da conversa a seguir.
Época
NEGÓCIOS - O ano de 2023 foi marcado por investimentos robustos em
inteligência artificial (IA), tanto de grandes empresas quanto de
negócios menores. Startups de IA se destacaram no mercado, por exemplo.
Você acredita que, em 2024, esses investimentos vão continuar?
Silvio Meira -
O que eu vejo é uma falta de estratégia nos investimentos, não em todas
as empresas, mas em boa parte delas. Muitos dos investimentos que vêm
sendo feitos carecem de reflexão. Há um certo frenesi sobre
inteligência artificial, um sentimento muito grande de que 'se eu não
entrar nessa, vou perder esse bonde'. Três em cada quatro CTOs ou
líderes de tecnologia dizem que, no próximo ano, vão colocar IA em
muitas facetas do negócio, se não em todas. Isso tem consequências não
triviais. Por exemplo, de onde apareceu tanta gente especialista em IA?
Não apareceu. Essas pessoas não existem. As empresas terão que trabalhar
em redes, isto é, descobrir parcerias que entendam o que fazer e por
que fazer. O como fazer é muito mais fácil. Agora, ter uma estratégia de
valor da IA no negócio é muito mais complicado, e aqui há uma quebra de
entendimento. A IA não é uma ferramenta, é uma nova dimensão da
realidade. E como dimensão da realidade, você tem que tratar isso como
um vetor que habilita um novo espaço. Existe a inteligência individual e
a inteligência coletiva dentro das organizações. É preciso haver uma
imersão da IA que se articule com a inteligência coletiva e pessoal,
isso é o mais precioso.
A IA é muito mais do que uma ferramenta para gerar textos ou imagens,
ela habilita uma nova classe de tomada de decisões instrumentadas por
dados e interatividade, se a gente souber usá-la para tal. Agora, isso
requer um entendimento razoavelmente profundo de estratégias para lidar
com IA nas organizações. E é nisso que estamos pecando mais, no momento.
Há pouca reflexão, pensamento, competência. As empresas correm o risco
de se perder de maneira estrutural, jogando IA dentro dos negócios para
fazer um monte de coisas sem pensar no impacto, efeitos, mudanças e na
competitividade da organização. O que está em jogo não é colocar IA na
operação e ponto final, é redesenhar o negócio.
Você
mencionou a falta de preparo dos profissionais para lidar com IA. Qual o
impacto dessa tecnologia no futuro do mercado de trabalho? Há risco
real de aumento do desemprego?
Sempre existe risco real de aumento de desemprego quando você introduz
uma nova dimensão nos mercados - na transição de carroças para motores a
combustão, por exemplo. Nenhuma fábrica de carroças conseguiu com
sucesso montar um automóvel, porque o motor não apenas substituiu o
cavalo, ele redesenhou completamente o mercado. Saímos da terra para as
rodovias asfaltadas, criamos os postos de gasolina... Toda uma nova
arquitetura foi desenhada, inclusive boa parte do aquecimento global que
vivemos hoje foi criada pelo motor a combustão. É uma mudança de
estrutura.
Voltando aos grandes modelos linguísticos, os GPTs. GPT significa
"generative pre-trained transformer", mas a sigla GPT tem outro
significado em economia: "general purpose technologies", isto é,
tecnologias de propósito geral. São aquelas cujos usos não estão
limitados ao propósito específico da tecnologia no mercado. Elas se
expandem, porque novas aplicações começam a ser desenhadas sobre elas
para todo o mundo que tenha capacidade de usá-las.
Por exemplo, um profissional de atendimento. Quando você treina esse
profissional, você não dá para ele uma enciclopédia do produto, serviço,
da empresa. Você o treina em perguntas e respostas. Quando você treina
um grande modelo de linguagem, você insere nele uma enciclopédia de
dados. Isso vai ser adicionado a todo treinamento que ele tem sobre
informações abertas, e ele será capaz de responder literalmente qualquer
pergunta sobre qualquer coisa. Então, tarefas cognitivas, mas que são
repetitivas, estão imediatamente obsoletas, e isso inclui o trabalho de
advogados, jornalistas, designers, ilustradores, impacta o campo das
engenharias, dos programadores.
Os
grandes modelos de linguagem também são capazes de criar letras de
músicas, vídeos, desenhos, livros, roteiros de filmes. A criatividade
humana está ameaçada?
Tenho uma frase para isso. Penso que os grandes modelos linguísticos
representam a obsolescência iminente do profissional criativo mediano e
todo mundo abaixo dele. E a razão é a seguinte: a criatividade é um
algoritmo. Se você resolve criar uma xícara de café, para ser criativo
fazendo isso, primeiro você tem que saber a história do café, a história
das xícaras, depois o design de xícaras associados a mesas, culturais
locais, isto é, um painel de tudo o que já foi feito sobre xícaras de
café e que ninguém fez ainda. Isso para que alguém olhe e diga: que
coisa bela, ou linda, ou funcional. Descrevi o que é um algoritmo de
fazer uma xícara. O que isso significa? Que o profissional criativo de
música, roupa, sapato, móveis também executa um algoritmo. Se ele
executa um algoritmo, a gente pode colocar uma máquina para executar da
mesma forma. O profissional que reproduz sem criar em cima do algoritmo
está obsoleto, não agora exatamente, mas em pouco tempo. Os acima de
medianos são os profissionais que vão redefinir o algoritmo da
criatividade, porque estes redefinidores são aqueles que repensam e
refazem o "como fazer, como criar, por que criar". Estes redefinidores
estão fora do alcance dos modelos linguísticos. Agora, os copiadores
estão ameaçados. Se você foi treinado na universidade para desenhar
joias de uma certa forma e vai seguir 'by the book', você está obsoleto.
Isso vale para qualquer profissão criativa.
Hoje
o Brasil é um mercado muito mais consumidor de IA do que produtor da
tecnologia, cujo desenvolvimento está concentrado nos Estados Unidos e
na China. Como o Brasil pode se tornar competitivo em relação à adoção
de IA?
Primeiro, tendo uma estratégia de ciência e tecnologia de IA
propriamente dita e do uso de IA nas outras áreas de ciência e
tecnologia. Por exemplo, grandes modelos linguísticos afetam a maneira
como você faz pesquisa. Você pode analisar dados de um experimento de
forma muito mais eficaz e eficiente, mas não apenas isso, pode desenhar o
experimento todo usando IA. Existe, sim, uma interferência muito grande
de grandes modelos linguísticos em todas as áreas da ciência humana.
Agora, o que está envolvido nisso: você não forma um especialista em IA
da noite para o dia. Formar um PhD em IA, um mestre em IA capaz de
entender as fundações por trás de grandes modelos linguísticos leva
anos. Dá para o Brasil entrar nisso de forma competitiva? Sim. Da forma
como está sendo feito agora? Não. Depende de investimento de grande
porte a longo prazo. O Brasil tem investimento em IA, mas é ridículo, de
R$ 10 milhões, R$ 15 milhões, com poucas dezenas de pessoas envolvidas.
Precisa de muito mais gente envolvida, e de muito mais dinheiro, porque
R$ 10 milhões não mexe o ponteiro da comunidade científica. Vai ter
mais paper publicado? Vai, mas isso não se traduz em ganho de competitividade.
Qual
sua opinião sobre regulamentação da IA? Há iniciativas na Europa e nos
Estados Unidos, no Brasil temos o PL 759/23. Que tipo de diretrizes
regulatórias essa tecnologia demanda?
Veja, quando a gente tem que regular alguma coisa? Quando a gente
entende o que é, para que serve, como funciona e quais são os riscos que
isso representa para os mercados, para a economia e para as pessoas. A
gente não sabe o suficiente sobre IA para fazer isso. E, no Brasil, há
uma tendência em criar impossibilidades, isto é: não pode fazer isso,
não pode fazer aquilo. Tanto a interpretação europeia quanto a americana
é de descobrir riscos enquanto se usa IA para tratar problemas reais.
Nos Estados Unidos, a regra básica da pré-regulação existente é a
seguinte: se você está fazendo uma IA que afeta muita gente e sabe quais
são os riscos envolvidos ao usar essa IA, ou dos riscos que outras
pessoas que não usam a IA também correm, vá conversar com o regulador
para que ele entenda os riscos. No caso da Europa, é: se sua IA é usada
por mais de 10 mil negócios, você representa risco para a sociedade
porque sua IA pode ter impactos sociais e econômicos muito grandes,
então vamos entender os riscos. No Brasil, não. A gente está quase
emitindo regulação sem ter entendimento do que é, para que serve, como
funciona. Além disso, sem ter uma política e uma estratégia de ambiente
de financiamento à pesquisa e desenvolvimento para a inovação.
No documento "24 anotações para 2024",
você fala que um dos grandes desafios que as lideranças enfrentam,
hoje, são aspirações ambiciosas, mas alcançáveis, que necessitam de uma
estratégia robusta para sua realização. Como as empresas podem se tornar
mais competitivas neste momento em que há grandes transformações em
curso, inclusive estas geradas pela IA?
Essa é a pergunta que define os mercados. No Brasil, a gente é muito
básico ao tratar dos negócios. O nível de ingenuidade corporativa no
Brasil é muito grande, mesmo em grandes empresas. O que mais falta é
gente pensando de forma abstrata, pensando na teoria do negócio. E
executar uma teoria quer dizer o seguinte: dentro do negócio, você tem
uma série de normas, regras, KPIs para fazer com que o negócio funcione.
Quando há uma mudança para introduzir um novo produto, você tem de
mexer em fundações, em processos, e no Brasil normalmente fazemos isso
de forma muito simplória. Você chama alguém para dar a consultoria de
mercado, alguém para a consultoria do produto, chama a agência de
marketing. Estamos na economia de conhecimento. Então, quando você chama
um bocado de gente de fora para fazer coisas, significa que sua
capacidade de conhecimento está baixa. A gente precisa elevar o nível do
pensamento estratégico nas empresas, no sentido de que empresas são
coisas difíceis de fazer, executar e sustentar.
Se você olhar globalmente, é quase como se as empresas fossem feitas
não para sobreviver, mas para morrer. Quantas empresas você conhece
cujos produtos usa diretamente que têm mais de 100 anos? As empresas
desaparecem porque são ruins, porque não entendem estratégia e não sabem
reinterpretar o mercado, entender as mudanças e entrar em novos
mercados quando o mundo exige. Adiantaria hoje eu ter uma empresa de fax
e melhorar meu serviço de fax? Não, porque o mercado de fax acabou, não
importa que eu melhore meu serviço. Isso que é necessário desenvolver
dentro de uma empresa para ela ser sustentável: capacidade de aplicar
conhecimento estratégico nessas mudanças drásticas. Quem define a
empresa não é o mercado, é o entendimento de mundo que ela tem.
A inteligência artificial se tornará consciente um dia? Há algum risco para a humanidade, se isso acontecer?
Imagine que a gente construísse uma rede neural com 100 bilhões de
elementos e ela fosse feita de forma biológica. Construiríamos essa rede
de tal forma que cada um desses 100 bilhões de neurônios conseguissem
se conectar entre eles de forma natural, com um algoritmo tão simples
que esses neurônios conseguiriam escolher, singularmente e em grupos,
com quais outros neurônios se conectar, por meio de estímulos externos,
como luz, som, tato. A gente já tem todos os sensores. O que a gente não
tem em escala, mas temos em laboratório, em pesquisas, é esse mecanismo
de criar uma rede de centenas de bilhões de neurônios biológicos. O que
eu acabei de descrever foi um cérebro. Qual a diferença deste cérebro
que eu acabei de descrever para o meu e para o seu? Nenhuma.
Então, temos as ferramentas para criar cérebros em escala? Sim. A gente
vai querer fazer isso? É um mega dilema ético. Mas esse negócio está
num horizonte distante. Não acho que teremos isso nessa década. Nada
impede que uma empresa tente fazer isso, associado a grandes modelos
linguísticos, que entendam de mercado, de sociedade, do que for, e com
capacidades muito acima de seres humanos. É um cenário distópico? Não. E
nem utópico. É um cenário que tem probabilidade real de acontecer,
dentro de certo prazo que não é agora.
Mas vamos voltar para a realidade. A vasta maioria do trabalho humano é
mediana, e digo isso de todos nós, eu, você. Em um mês de trabalho, em
quantos dias você fala: 'Nossa, hoje fiz algo extraordinário'? No dia a
dia, somos medianos, vez por outra fazemos algo incrível. Entenda: estou
falando do trabalho. Todos os humanos são especiais, mas a vasta
maioria do trabalho humano é muito básica, inclusive em tarefas
cognitivas. O problema não é você substituir um advogado, o problema é
que, com a IA, 50% das funções realizadas por um advogado mediano podem
ser substituídas, e aí teremos uma crise social de proporções épicas. Um
escritório que tinha 50 advogados vai precisar só de 20. O que os
outros vão fazer? Existe uma demanda social e humana imediata e um
processo de up-skilling de elevar o nível de competências e habilidades das pessoas para lugares que a gente nunca pensou anteriormente.
Então, a gente não precisa se preocupar hoje com inteligências
artificiais gerais nem com inteligências censcientes, que dominam
espaços de autonomia e socialização humanas. Deixa isso lá pra frente. O
problema de agora é muito maior do que isso.
https://epocanegocios.globo.com/inteligencia-artificial/noticia/2023/12/o-admiravel-mundo-novo-de-silvio-meira-os-desafios-que-a-ia-impoe-a-profissionais-empresas-e-sociedade.ghtml?ref=SaibaMaisMidArticle_Epoca_Negocios