Com os debates da Rodada Doha suspensos desde 2008 e as grandes
negociações praticamente ausentes, o sistema multilateral de comércio
regulado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) enfrenta um momento
crítico, correndo o risco de perder sua legitimidade e até relevância se
não se modernizar.
Esta é a avaliação do diplomata Roberto Azevêdo, representante permanente do Brasil junto à OMC e candidato a substituir o francês Pascal Lamy na direção-geral do órgão que é a principal instância na administração do sistema comercial internacional.
Em uma campanha frenética que já o levou a mais de 50 países, Azevêdo aposta que pragmatismo e criatividade podem ajudar a colocar o sistema "no bom caminho".
"Temos que enfrentar as coisas com realismo, com pragmatismo e tentar conseguir os resultados que são possíveis, não necessariamente os ideais", disse o embaixador em entrevista concedida por telefone, de sua casa em Genebra, na Suíça.
Com 55 anos de idade e quase três décadas de diplomacia, Azevêdo nasceu em Salvador e é formado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Brasília.
Junto com outros quatro candidatos, ele acaba de passar para a segunda fase da disputa pela direção da OMC, em uma corrida que só deve terminar no final de maio.
Caso seja eleito, Azevêdo será o primeiro brasileiro a liderar aquele que é, junto com ONU, FMI e Banco Mundial, um dos principais organismos da política internacional.
Leia abaixo a entrevista concedida por Azêvedo à BBC Brasil.
A campanha
BBC Brasil - Caso o senhor vença a disputa, será o primeiro brasileiro a ocupar um cargo de linha de frente em uma grande organização multilateral. Em sua avaliação, qual seria o significado disso para o Brasil?
Roberto Azevêdo - Acho que seria um reconhecimento da atuação cada vez mais importante do Brasil no cenário internacional. O Brasil é um país que na área multilateral sempre foi muito ativo, sempre teve quadros muito bons defendendo nossas posições e isso significa que eventualmente chegaríamos a esse ponto. É um reconhecimento dos outros parceiros, dos outros países, de que nós temos funcionários, diplomatas, temos representantes bons, de alta qualidade, que são capazes de ajudar no funcionamento dos sistemas.
O Brasil é um país hoje de grande relevância, está no centro de quase todas as grandes decisões de governança mundial, seja na área política seja na área econômica. É um passo natural, eu acho que é um reconhecimento do trabalho e da dedicação do Brasil nos vários foros internacionais e multilaterais.
BBC Brasil - Como o senhor espera que seja a transição de chefe da missão brasileira a diretor-geral da OMC, caso o senhor seja eleito. Será uma transição difícil?
Azevêdo - São funções sempre muito difíceis, ambas. Você ser representante permanente de um país como o Brasil, que está no centro das negociações em uma organização como a OMC, é uma tarefa muito difícil, pelos desafios que se impõe, pela necessidade de acomodar interesses das nossas variadas constituencies (grupos de interesse) brasileiras, tanto no setor privado como no setor público.
E, na OMC, mais ainda, porque, afinal de contas, é essencialmente esse mesmo tipo de portfólio multiplicado por 159 países. São duas funções muito difíceis, todas as duas com desafios enormes, mas muito gratificantes.
BBC Brasil - Como está a campanha neste momento? O senhor viajou para diversos países para se encontrar com autoridades, foi uma agenda cansativa?
Azevêdo - Foi uma agenda muito cansativa, sobretudo nesse período de viagens. Foram quase 50 países em menos de dois meses, para conseguir cobrir uma parte importante dos membros mais ativos, mais relevantes, mais atuantes.
Mas agora eu estou mais em Genebra, o que não significa que a campanha esteja menos intensa. Só não tenho que viajar. Desde que acordo até a hora de dormir fazendo ligações, falando com pessoas, lendo material, escrevendo coisas, enfim, muito intenso, muito trabalhoso, mas está valendo a pena.
BBC Brasil - Até agora, quais os países que manifestaram apoio a sua candidatura?
Azevêdo - Ah, isso eu não posso falar...
BBC Brasil - Mas tem algum emergente?
Azevêdo - Tem em todas as áreas. Essa é uma coisa muito boa da candidatura, porque ela tem recebido apoios em todas as regiões geográficas e também entre os países de todos os níveis de desenvolvimento.
Desafios
BBC Brasil - Quais serão suas prioridades caso seja eleito diretor-geral da OMC?
Roberto Azevêdo - Acho que o sistema multilateral de comércio está em uma encruzilhada, em um momento muito crítico em que ou ele se atualiza, se moderniza e responde aos anseios do mundo dos negócios atual, ou ele vai perdendo progressivamente legitimidade e até relevância nas suas atuações, embora não vá deixar de ser um dos grandes pilares da governança econômica mundial.
A prioridade, portanto, é recolocar o sistema multilateral no bom caminho, no caminho da relevância, onde os membros encontrem nele um foro negociador, que é a única maneira de você fazer com que as regras da OMC se atualizem, é negociando.
Há uma certa evolução em termos de jurisprudência, porque esses contenciosos que acontecem na OMC vão esclarecendo as regras, e isso em si já é uma evolução do sistema. Mas os grandes saltos qualitativos estão nas negociações, e as negociações não acontecem há mais de 20 anos na OMC, é preciso mudar isso. Essa é a minha maior prioridade.
BBC Brasil - Há algumas limitações ao cargo de diretor-geral quanto às definições de políticas e agendas da instituição. Como o senhor pretende agir para alcançar esses objetivos?
Azevêdo - Os conflitos de agenda dos diversos países são coisas naturais, é a vida cotidiana do sistema multilateral. Nós não podemos, como eu costumo apontar, esperar que exista ou aconteça uma situação ideal, o ambiente ideal (para retomar as negociações).
Por exemplo, no momento em que a economia cresce, no momento em que nós estamos todos em uma expansão econômica global, o argumento é de que nós não conseguimos avançar (nas negociações) porque não há estímulo para isso, não precisamos de uma ajuda do sistema multilateral. Quando há crise, aí (dizem), "ah, fica mais difícil de negociar, fica mais difícil de abrir e liberalizar os nossos mercados".
Eu acho que nós não podemos esperar o momento ideal, nós temos que trabalhar com a agenda diversificada que existe mesmo.
Os países sempre estarão em ciclos econômicos diferentes, estarão sempre em ciclos políticos diferentes e a economia mundial também, de uma maneira geral.
Temos que enfrentar as coisas com realismo, com pragmatismo e tentar conseguir os resultados que são possíveis, não necessariamente os ideais, mas os que são possíveis. E isto é um exercício que não foi feito ainda e é uma coisa que eu gostaria de explorar com os membros se chegar a ser eleito.
BBC Brasil - Tentar retomar a Rodada Doha de liberalização do comércio está entre as prioridades? É possível fazê-lo?
Azevêdo - Eu acho que é possível e deveria ser uma das prioridades. Chegamos a um impasse há mais de quatro anos e passamos um bom tempo tentando trabalhar com o que estava sobre a mesa, e isso não foi possível.
Acho que está na hora de nós sermos um pouco mais criativos, sermos um pouco mais flexíveis em nossa abordagem. Isso não é impossível, tenho absoluta certeza disso. Tenho também certeza de que todos os membros querem que o sistema multilateral continue operante, sabem que encontrar uma solução para a Rodada é uma necessidade para desbloquear o sistema como um todo.
Hoje, as circunstâncias são diferentes, eu acho que a crise econômica já é uma crise mais bem quantificada, já não é aquele animal estranho que nós percebíamos em 2008 e 2009. Nós já temos uma certa expectativa de recuperação, ainda que progressiva, lenta, gradual, mas já há um certo caminho que se imagina que nós possamos trilhar em termos de economia mundial e, do ponto de vista de negociação, ninguém mais espera que o outro mude de ideia.
Então, estamos prontos para tratar dos obstáculos e dos empecilhos como eles são e, como eu disse, de uma maneira pragmática e realista.
Reforma
BBC Brasil - A estrutura de negociação da OMC é alvo de críticas, principalmente em relação a instituições como o single undertaking (compromisso único, regra pela qual todos os itens de uma negociação são parte de um todo, negociados em bloco, não podem ser acordados separadamente). O senhor vislumbra a possibilidade de uma reforma mais ampla para destravar as negociações, possibilitando, por exemplo, a negociação de acordos sobre temas específicos?
Roberto Azevêdo - Não acho que o single undertaking seja um problema. O single undertaking, na verdade, ajuda os membros a negociar sem ter que parar as negociações toda vez que um determinado pilar das conversações não esteja caminhando. Eu acho que é uma percepção equivocada achar que você trabalhar com o single undertaking é um empecilho, na verdade ele até ajuda.
Não acho que o problema que esteja no processo. Eu francamente acho que o problema está na substância. O problema que existe na Rodada Doha, o problema que existe no impasse nas negociações, não está na forma da decisão ou na maneira que nós estamos trabalhando, está na diferença substantiva entre as posições negociadoras.
Uma vez que a gente resolva o problema real das negociações, da substância, do teor das negociações, o processo não vai atrapalhar a conclusão de um resultado positivo.
BBC Brasil - Não sei se é sobre isso a que o senhor se refere, mas um dos grandes desafios do comércio internacional hoje é a resistência dos países desenvolvidos a cortar subsídios agrícolas, por exemplo. Como o senhor pretende lidar com essa questão?
Azevêdo - É sempre muito fácil, às vezes até para passar uma mensagem para a opinião pública, dizer "o problema é que um grupo de países não quer fazer isso, outro grupo de países quer fazer aquilo".
Todos sabemos que as coisas nunca são tão simples assim. É a maneira de explicar para o público que um problema tem uma vertente importante em um determinado problema, mas não é assim que as coisas acontecem, não é tão simples assim.
Há vários fatores, vários elementos, vários componentes nesta equação. Eu prefiro não tentar simplificar muito isso para não passar a mensagem e a ideia erradas.
Barreiras
BBC Brasil - O Brasil foi acusado de adotar medidas protecionistas, por exemplo, ao aumentar as tarifas de importação para alguns produtos no ano passado. Como o senhor avalia essas acusações? O senhor acha que sua eventual eleição pode aumentar o escrutínio internacional sobre as práticas comerciais do Brasil?
Roberto Azevêdo - Acho que as práticas comerciais do Brasil e as práticas comerciais de todos os membros estão sob permanente escrutínio, independente de quem é o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio. O Pascal Lamy é o diretor-geral há oito anos e nem por isso o escrutínio das medidas francesas aumentou ou diminuiu, isso não tem nenhuma relevância.
Estão sob escrutínio porque os próprios mercados, os próprios operadores do mercado, as empresas, as companhias, estão de olho, verificando se medidas incompatíveis com as regras multilaterais estão sendo adotadas ou não. Isto não vai mudar, eu acho que não tem nenhum impacto com relação a isso.
O sistema multilateral existe para isso, para que os membros que estão preocupados com medidas que foram adotadas por parceiros comerciais possam levar ao sistema multilateral essas questões e tentar dirimir as diferenças de maneira amigável, de uma maneira construtiva, evitando, por exemplo, a contaminação de outras áreas de comércio e até uma escalada de retaliações comerciais.
Então é uma maneira de resolver problemas em um foro técnico, em um foro que procura encontrar soluções que sejam aceitáveis para os dois lados, sem contaminar o resto das relações bilaterais.
BBC Brasil - Já faz algum tempo que o governo brasileiro vem insistindo na tese da "guerra cambial", afirmando que alguns países estariam manipulando suas moedas para tornar suas exportações mais competitivas, no que seria uma nova forma de protecionismo. Como o senhor avalia esse tema? O que pode ser feito?
Azevêdo - Acho que é um tema importante, que está sendo discutido em vários foros internacionais, o G-20 financeiro trata desse assunto, mesmo a OMC abriu um grupo de trabalho para conversar sobre esse assunto.
Mas é um tema de extrema complexidade, não é uma coisa que vai ser resolvida da noite para o dia. É um tema que abarca uma quantidade enorme de variáveis, de condicionantes, de regulamentos dentro de uma mesma fronteira e interfronteiras.
As experiências que nós já tivemos sobre esse tema no passado levaram exatamente a essa conclusão, são coisas que precisam de uma coordenação no mais alto nível entre os grandes atores internacionais.
BBC Brasil - Nos últimos tempos, temos visto cada vez mais países levantando barreiras sanitárias a algumas mercadorias como carne e outros produtos agrícolas. Alguns países veem nessas barreiras uma forma disfarçada de praticar protecionismo. Isso pode ser uma nova forma de protecionismo, mais difícil de ser combatida? Como lidar com esse problema?
Azevêdo - Eu não sei se é exatamente uma nova forma de protecionismo, é um tipo de protecionismo que já existe há muito tempo.
O que talvez seja novo nessa situação é que, com a queda das barreiras tarifárias, fica mais difícil, por exemplo, um país que quer impor uma medida de proteção, operar apenas no lado tarifário, no lado monetário do comércio. Então com frequência há países que são acusados de estarem impondo medidas desnecessárias, medidas excessivas na área sanitária, não por uma questão de preocupação sanitária propriamente dita, mas por um protecionismo velado.
Mas o sistema multilateral de comércio, a OMC, está aí para isso, para verificar essas situações e tentar encontrar resultados que sejam satisfatórios para os dois lados, evitando a contaminação das relações bilaterais.
Esta é a avaliação do diplomata Roberto Azevêdo, representante permanente do Brasil junto à OMC e candidato a substituir o francês Pascal Lamy na direção-geral do órgão que é a principal instância na administração do sistema comercial internacional.
Em uma campanha frenética que já o levou a mais de 50 países, Azevêdo aposta que pragmatismo e criatividade podem ajudar a colocar o sistema "no bom caminho".
"Temos que enfrentar as coisas com realismo, com pragmatismo e tentar conseguir os resultados que são possíveis, não necessariamente os ideais", disse o embaixador em entrevista concedida por telefone, de sua casa em Genebra, na Suíça.
Com 55 anos de idade e quase três décadas de diplomacia, Azevêdo nasceu em Salvador e é formado em Engenharia Elétrica pela Universidade de Brasília.
Junto com outros quatro candidatos, ele acaba de passar para a segunda fase da disputa pela direção da OMC, em uma corrida que só deve terminar no final de maio.
Caso seja eleito, Azevêdo será o primeiro brasileiro a liderar aquele que é, junto com ONU, FMI e Banco Mundial, um dos principais organismos da política internacional.
Leia abaixo a entrevista concedida por Azêvedo à BBC Brasil.
A campanha
BBC Brasil - Caso o senhor vença a disputa, será o primeiro brasileiro a ocupar um cargo de linha de frente em uma grande organização multilateral. Em sua avaliação, qual seria o significado disso para o Brasil?
Roberto Azevêdo - Acho que seria um reconhecimento da atuação cada vez mais importante do Brasil no cenário internacional. O Brasil é um país que na área multilateral sempre foi muito ativo, sempre teve quadros muito bons defendendo nossas posições e isso significa que eventualmente chegaríamos a esse ponto. É um reconhecimento dos outros parceiros, dos outros países, de que nós temos funcionários, diplomatas, temos representantes bons, de alta qualidade, que são capazes de ajudar no funcionamento dos sistemas.
O Brasil é um país hoje de grande relevância, está no centro de quase todas as grandes decisões de governança mundial, seja na área política seja na área econômica. É um passo natural, eu acho que é um reconhecimento do trabalho e da dedicação do Brasil nos vários foros internacionais e multilaterais.
BBC Brasil - Como o senhor espera que seja a transição de chefe da missão brasileira a diretor-geral da OMC, caso o senhor seja eleito. Será uma transição difícil?
Azevêdo - São funções sempre muito difíceis, ambas. Você ser representante permanente de um país como o Brasil, que está no centro das negociações em uma organização como a OMC, é uma tarefa muito difícil, pelos desafios que se impõe, pela necessidade de acomodar interesses das nossas variadas constituencies (grupos de interesse) brasileiras, tanto no setor privado como no setor público.
E, na OMC, mais ainda, porque, afinal de contas, é essencialmente esse mesmo tipo de portfólio multiplicado por 159 países. São duas funções muito difíceis, todas as duas com desafios enormes, mas muito gratificantes.
BBC Brasil - Como está a campanha neste momento? O senhor viajou para diversos países para se encontrar com autoridades, foi uma agenda cansativa?
Azevêdo - Foi uma agenda muito cansativa, sobretudo nesse período de viagens. Foram quase 50 países em menos de dois meses, para conseguir cobrir uma parte importante dos membros mais ativos, mais relevantes, mais atuantes.
Mas agora eu estou mais em Genebra, o que não significa que a campanha esteja menos intensa. Só não tenho que viajar. Desde que acordo até a hora de dormir fazendo ligações, falando com pessoas, lendo material, escrevendo coisas, enfim, muito intenso, muito trabalhoso, mas está valendo a pena.
BBC Brasil - Até agora, quais os países que manifestaram apoio a sua candidatura?
Azevêdo - Ah, isso eu não posso falar...
BBC Brasil - Mas tem algum emergente?
Azevêdo - Tem em todas as áreas. Essa é uma coisa muito boa da candidatura, porque ela tem recebido apoios em todas as regiões geográficas e também entre os países de todos os níveis de desenvolvimento.
Desafios
BBC Brasil - Quais serão suas prioridades caso seja eleito diretor-geral da OMC?
Roberto Azevêdo - Acho que o sistema multilateral de comércio está em uma encruzilhada, em um momento muito crítico em que ou ele se atualiza, se moderniza e responde aos anseios do mundo dos negócios atual, ou ele vai perdendo progressivamente legitimidade e até relevância nas suas atuações, embora não vá deixar de ser um dos grandes pilares da governança econômica mundial.
A prioridade, portanto, é recolocar o sistema multilateral no bom caminho, no caminho da relevância, onde os membros encontrem nele um foro negociador, que é a única maneira de você fazer com que as regras da OMC se atualizem, é negociando.
Há uma certa evolução em termos de jurisprudência, porque esses contenciosos que acontecem na OMC vão esclarecendo as regras, e isso em si já é uma evolução do sistema. Mas os grandes saltos qualitativos estão nas negociações, e as negociações não acontecem há mais de 20 anos na OMC, é preciso mudar isso. Essa é a minha maior prioridade.
BBC Brasil - Há algumas limitações ao cargo de diretor-geral quanto às definições de políticas e agendas da instituição. Como o senhor pretende agir para alcançar esses objetivos?
Azevêdo - Os conflitos de agenda dos diversos países são coisas naturais, é a vida cotidiana do sistema multilateral. Nós não podemos, como eu costumo apontar, esperar que exista ou aconteça uma situação ideal, o ambiente ideal (para retomar as negociações).
Por exemplo, no momento em que a economia cresce, no momento em que nós estamos todos em uma expansão econômica global, o argumento é de que nós não conseguimos avançar (nas negociações) porque não há estímulo para isso, não precisamos de uma ajuda do sistema multilateral. Quando há crise, aí (dizem), "ah, fica mais difícil de negociar, fica mais difícil de abrir e liberalizar os nossos mercados".
Eu acho que nós não podemos esperar o momento ideal, nós temos que trabalhar com a agenda diversificada que existe mesmo.
Os países sempre estarão em ciclos econômicos diferentes, estarão sempre em ciclos políticos diferentes e a economia mundial também, de uma maneira geral.
Temos que enfrentar as coisas com realismo, com pragmatismo e tentar conseguir os resultados que são possíveis, não necessariamente os ideais, mas os que são possíveis. E isto é um exercício que não foi feito ainda e é uma coisa que eu gostaria de explorar com os membros se chegar a ser eleito.
BBC Brasil - Tentar retomar a Rodada Doha de liberalização do comércio está entre as prioridades? É possível fazê-lo?
Azevêdo - Eu acho que é possível e deveria ser uma das prioridades. Chegamos a um impasse há mais de quatro anos e passamos um bom tempo tentando trabalhar com o que estava sobre a mesa, e isso não foi possível.
Acho que está na hora de nós sermos um pouco mais criativos, sermos um pouco mais flexíveis em nossa abordagem. Isso não é impossível, tenho absoluta certeza disso. Tenho também certeza de que todos os membros querem que o sistema multilateral continue operante, sabem que encontrar uma solução para a Rodada é uma necessidade para desbloquear o sistema como um todo.
Hoje, as circunstâncias são diferentes, eu acho que a crise econômica já é uma crise mais bem quantificada, já não é aquele animal estranho que nós percebíamos em 2008 e 2009. Nós já temos uma certa expectativa de recuperação, ainda que progressiva, lenta, gradual, mas já há um certo caminho que se imagina que nós possamos trilhar em termos de economia mundial e, do ponto de vista de negociação, ninguém mais espera que o outro mude de ideia.
Então, estamos prontos para tratar dos obstáculos e dos empecilhos como eles são e, como eu disse, de uma maneira pragmática e realista.
Reforma
BBC Brasil - A estrutura de negociação da OMC é alvo de críticas, principalmente em relação a instituições como o single undertaking (compromisso único, regra pela qual todos os itens de uma negociação são parte de um todo, negociados em bloco, não podem ser acordados separadamente). O senhor vislumbra a possibilidade de uma reforma mais ampla para destravar as negociações, possibilitando, por exemplo, a negociação de acordos sobre temas específicos?
Roberto Azevêdo - Não acho que o single undertaking seja um problema. O single undertaking, na verdade, ajuda os membros a negociar sem ter que parar as negociações toda vez que um determinado pilar das conversações não esteja caminhando. Eu acho que é uma percepção equivocada achar que você trabalhar com o single undertaking é um empecilho, na verdade ele até ajuda.
Não acho que o problema que esteja no processo. Eu francamente acho que o problema está na substância. O problema que existe na Rodada Doha, o problema que existe no impasse nas negociações, não está na forma da decisão ou na maneira que nós estamos trabalhando, está na diferença substantiva entre as posições negociadoras.
Uma vez que a gente resolva o problema real das negociações, da substância, do teor das negociações, o processo não vai atrapalhar a conclusão de um resultado positivo.
BBC Brasil - Não sei se é sobre isso a que o senhor se refere, mas um dos grandes desafios do comércio internacional hoje é a resistência dos países desenvolvidos a cortar subsídios agrícolas, por exemplo. Como o senhor pretende lidar com essa questão?
Azevêdo - É sempre muito fácil, às vezes até para passar uma mensagem para a opinião pública, dizer "o problema é que um grupo de países não quer fazer isso, outro grupo de países quer fazer aquilo".
Todos sabemos que as coisas nunca são tão simples assim. É a maneira de explicar para o público que um problema tem uma vertente importante em um determinado problema, mas não é assim que as coisas acontecem, não é tão simples assim.
Há vários fatores, vários elementos, vários componentes nesta equação. Eu prefiro não tentar simplificar muito isso para não passar a mensagem e a ideia erradas.
Barreiras
BBC Brasil - O Brasil foi acusado de adotar medidas protecionistas, por exemplo, ao aumentar as tarifas de importação para alguns produtos no ano passado. Como o senhor avalia essas acusações? O senhor acha que sua eventual eleição pode aumentar o escrutínio internacional sobre as práticas comerciais do Brasil?
Roberto Azevêdo - Acho que as práticas comerciais do Brasil e as práticas comerciais de todos os membros estão sob permanente escrutínio, independente de quem é o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio. O Pascal Lamy é o diretor-geral há oito anos e nem por isso o escrutínio das medidas francesas aumentou ou diminuiu, isso não tem nenhuma relevância.
Estão sob escrutínio porque os próprios mercados, os próprios operadores do mercado, as empresas, as companhias, estão de olho, verificando se medidas incompatíveis com as regras multilaterais estão sendo adotadas ou não. Isto não vai mudar, eu acho que não tem nenhum impacto com relação a isso.
O sistema multilateral existe para isso, para que os membros que estão preocupados com medidas que foram adotadas por parceiros comerciais possam levar ao sistema multilateral essas questões e tentar dirimir as diferenças de maneira amigável, de uma maneira construtiva, evitando, por exemplo, a contaminação de outras áreas de comércio e até uma escalada de retaliações comerciais.
Então é uma maneira de resolver problemas em um foro técnico, em um foro que procura encontrar soluções que sejam aceitáveis para os dois lados, sem contaminar o resto das relações bilaterais.
BBC Brasil - Já faz algum tempo que o governo brasileiro vem insistindo na tese da "guerra cambial", afirmando que alguns países estariam manipulando suas moedas para tornar suas exportações mais competitivas, no que seria uma nova forma de protecionismo. Como o senhor avalia esse tema? O que pode ser feito?
Azevêdo - Acho que é um tema importante, que está sendo discutido em vários foros internacionais, o G-20 financeiro trata desse assunto, mesmo a OMC abriu um grupo de trabalho para conversar sobre esse assunto.
Mas é um tema de extrema complexidade, não é uma coisa que vai ser resolvida da noite para o dia. É um tema que abarca uma quantidade enorme de variáveis, de condicionantes, de regulamentos dentro de uma mesma fronteira e interfronteiras.
As experiências que nós já tivemos sobre esse tema no passado levaram exatamente a essa conclusão, são coisas que precisam de uma coordenação no mais alto nível entre os grandes atores internacionais.
BBC Brasil - Nos últimos tempos, temos visto cada vez mais países levantando barreiras sanitárias a algumas mercadorias como carne e outros produtos agrícolas. Alguns países veem nessas barreiras uma forma disfarçada de praticar protecionismo. Isso pode ser uma nova forma de protecionismo, mais difícil de ser combatida? Como lidar com esse problema?
Azevêdo - Eu não sei se é exatamente uma nova forma de protecionismo, é um tipo de protecionismo que já existe há muito tempo.
O que talvez seja novo nessa situação é que, com a queda das barreiras tarifárias, fica mais difícil, por exemplo, um país que quer impor uma medida de proteção, operar apenas no lado tarifário, no lado monetário do comércio. Então com frequência há países que são acusados de estarem impondo medidas desnecessárias, medidas excessivas na área sanitária, não por uma questão de preocupação sanitária propriamente dita, mas por um protecionismo velado.
Mas o sistema multilateral de comércio, a OMC, está aí para isso, para verificar essas situações e tentar encontrar resultados que sejam satisfatórios para os dois lados, evitando a contaminação das relações bilaterais.
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