O perfume de especiarias preenche o ambiente. Ayeda Lotfi Qodiseh
cozinha. Os filhos e o marido acompanham o futebol pela televisão. De um
cômodo a outro da casa de madeira, Ali, o filho do meio, anda e
conversa aos berros com a mãe enquanto coloca os pratos na mesa. Samir, o
marido, sentado no sofá, pede o isqueiro para Ammar, o primogênito, que
lhe entrega, sem tirar os olhos da tela. Doha, a caçula, sai do quarto.
A família tem visitas. Sarmad e Yamen, jovens de 20 e poucos anos,
vieram para ver o jogo. Vão ficar para o jantar.
A cena poderia ser um retrato do cotidiano nos subúrbios de Bagdá.
Mas as araucárias que se veem pela janela e, é claro, o exaltado locutor
brasileiro da partida entre Palmeiras e Internacional denunciam que
estamos no Brasil.
Um Brasil de sotaque árabe, onde, todos os dias, em média, 570 mil
aves são abatidas em nome de Alá. Com pouco mais de 35 mil habitantes,
Dois Vizinhos, no Paraná, já ganhou fama como a capital nacional do
frango. Sua economia, baseada na avicultura, é a consolidação de um
processo econômico de 30 anos, que trouxe, aos poucos, novos
ingredientes à já plural formação cultural da cidade. Gaúchos
descendentes de italianos que subiam para colonizar o oeste paranaense
foram os primeiros a se fixar ali. Em seguida vieram os alemães, de
Santa Catarina, os poloneses, oriundos de colônias mais ao sul, e os
japoneses, que desciam do norte do estado.
O aumento na demanda de importação de carne de frango pelos países
árabes nos anos 1980 gerou uma oportunidade para o setor. Assim como
outros frigoríficos espalhados no Brasil, a empresa alimentícia sediada
em Dois Vizinhos adaptou sua planta à exportação ao Oriente Médio. Para
que o negócio seja efetivado, as aves devem ser sacrificadas de acordo
com um conjunto de regras islâmicas que categoriza o alimento como
halal, “ou seja, lícitos, liberados”, me explica o moçambicano Cubilas
Juma Ibraim, o xeque da mussala de Dois Vizinhos, uma sala de orações
que faz as vezes de mesquita. “As aves têm de estar viradas para Meca, e
a pessoa que realiza o abate deve ser um homem muçulmano, que pronuncia
a palavra bismillah [‘em nome de Deus’] toda a vez que sua faca tira a
vida de um animal”, completa Imad Ismail, supervisor, em Dois Vizinhos,
do Departamento de Halal do Centro de Divulgação do Islã na América
Latina, que presta consultoria para o frigorífico.
A necessidade de homens muçulmanos para o halal trouxe os primeiros
islamitas à cidade. Hoje, por volta de 50 estrangeiros, vindos de
Palestina, Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, Egito ou de países da África
subsaariana, como Sudão, Costa do Marfim, Burkina Faso, Congo, Guiné e
Senegal, estão contratados. Há também um número pequeno do Paquistão, de
Bangladesh e, claro, do Brasil – alguns deles convertidos há pouco
tempo. A maioria está em Dois Vizinhos como imigrante. Muitos, porém,
tiveram a condição de refugiados reconhecida. Eles comprovaram que as
razões para deixar os países de origem foram perseguição política,
religiosa ou conflitos armados. Segundo o Ministério da Justiça, existem
no Brasil, hoje, 4 500 refugiados.
A família Qodiseh está nessa lista, e viveu uma odisseia para chegar a
Dois Vizinhos. Sentados na sala, enquanto tomamos café, servido em
pequenas xícaras sem alça, Ali ajuda o pai, Samir, servindo-lhe de
intérprete.
Filho de um palestino refugiado em Bagdá, Samir nasceu em 1953. Em
2003, a guerra no país colocou a família de novo em movimento. Assim
como outros conterrâneos no Iraque após a queda do regime de Saddam
Hussein, os Qodiseh corriam riscos com a onda de violência sectária por
parte de milícias iraquianas. Ele e a esposa venderam tudo e partiram de
Najaf, onde viviam, no interior, em direção à Jordânia. Ainda como
refugiados palestinos – mesmo que fossem nascidos dentro de seu
território, o Iraque não concedia cidadania aos palestinos –, os Qodiseh
cruzaram a fronteira e se estabeleceram no campo jordaniano de
Ruwaished, a 70 quilômetros do Iraque, sob a tutela das Nações Unidas.
Khaled Qodiseh, irmão de Samir, fez o mesmo em Bagdá, onde morava com
a esposa, Ikhlas, e seus quatro filhos. Ao cruzar a fronteira entre o
Iraque e a Jordânia, o primeiro grande problema apareceu. Por ser
iraquiana, Ikhlas não podia ser aceita no campo. Durante seis meses, a
família foi obrigada a ficar em outro acampamento, da Cruz Vermelha.
Dois anos se passaram até que Khaled conseguisse se juntar ao irmão.
À espera de um destino, as famílias viveram todo esse tempo em
barracas de lona. As temperaturas atingiam os 50ºC durante o dia. À
noite, o frio imperava. Tempestades de areia e infestações de escorpião
eram problemas cotidianos. Aos poucos, o campo de Ruwaished foi sendo
evacuado até sua extinção, em dezembro de 2007. Ali Qodiseh, hoje com 20
anos, tinha 15. Sua prima Farah, filha de Khaled, tinha 5.
Em 10 de setembro de 2007, os Qodiseh deixaram a Jordânia. A família
fez parte dos últimos 108 palestinos que foram trazidos de lá ao Brasil
pelo programa Reassentamento Solidário, do Comitê Nacional para
Refugiados, o Conare, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, em
parceria com o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, o
Acnur. O programa é dedicado ao atendimento especial de refugiados que
já estiveram em outros países, ou seja, que receberam um primeiro
refúgio antes de chegar ao Brasil. Aqui, foram levados a Mogi das
Cruzes, em São Paulo, onde, por meio de uma organização não
governamental, receberam documentos, aulas de português e apoio
financeiro. A primeira oportunidade de trabalho surgiu para Ammar
Qodiseh e seu primo Mohammed. Os dois jovens foram pioneiros em Dois
Vizinhos. Os pais de ambos, os irmãos Samir e Khaled, se juntaram a eles
depois de uma tentativa frustrada de se estabelecer em Chuí, no Rio
Grande do Sul.
Pergunto aos Qodiseh o que acharam da cidade quando chegaram. A
resposta é direta: muito tranquila, mas difícil para os estrangeiros.
Ali, que já carrega o sotaque cantado dos paranaenses, conta sua
história emblemática do dia em que um garçom de uma lanchonete lhe pediu
para que parasse de conversar com os amigos em árabe, pois isso
incomodava os outros clientes. Após um silêncio enfático, Ali sublinha
com o olhar quão ofensivo isso lhe pareceu.
Ayeda, a mãe, fala que sente falta do convívio com outros moradores.
“No Iraque, as pessoas se visitam muito. Moramos nesta casa há três
anos, mas só começamos a conversar com uma das vizinhas após a morte de
seu marido”, diz ela.
Dois Vizinhos é uma cidade jovem. Fundada em 1961, o conjunto
arquitetônico é composto por belas casas de madeira, com pequenos
jardins bem cuidados, onde as famílias se reúnem para o chimarrão nos
fins de tarde, e residências de alvenaria e prédios de dois ou três
andares nada charmosos – sintoma do progresso econômico. O comércio do
centro é agitado. Os carros fazem filas na avenida principal e, às
vezes, competem por espaço com uma ou outra charrete. Aos domingos,
jovens montados em caminhonetes brilhantes circulam com música sertaneja
em volume alto pelas ladeiras.
Em um conjunto de sobrelojas de um bairro afastado, o Igrejinha, vive
a maioria dos estrangeiros não árabes que trabalham no abatedouro. Nos
horários de troca de turno, é comum ver homens negros de quase 2 metros
de altura caminhando pela longa rua em declive que se origina no alto do
morro, onde está o frigorífico.
Encontro o senegalês Cheikh Beye à porta de um dos apartamentos, ao
lado de uma loja que expõe fogões a lenha na calçada. Vestido com o
uniforme da seleção de futebol do Senegal, Beye me cumprimenta sem
levantar os olhos. Assim como outros encontros com africanos em Dois
Vizinhos, ele a princípio se recusa a compartilhar sua história. Mas a
presença de Ali Qodiseh, meu guia na cidade, aos poucos alivia a
desconfiança.
Em 2009, com 30 anos, conta ele, em um português arrastado, Beye
deixou a esposa em Dacar, capital de seu país, para buscar trabalho em
São Paulo. Na metrópole, foi absorvido pelo comércio informal da rua 25
de Março. Dois anos depois, cansado de perder mercadoria para os
fiscais, ele decidiu aproveitar a indicação de um amigo senegalês para
trabalhar em um abatedouro no Paraná. Os planos de Beye incluem ficar no
Brasil, mas não em Dois Vizinhos. “Em São Paulo, você se sente parte da
multidão. Aqui, não. O ônibus pode estar lotado que ninguém se senta a
nosso lado, mesmo se só tiver aquele lugar vago.”
Um pequeno livro, Português para Falantes de Árabe, repousa em uma
mesa na casa de Ikhlas Qodsieh. Ela esforça-se para contar sua história
em português, mas logo pede socorro à filha Farah Qodiseh, de 12 anos,
que domina com fluência os dois idiomas.
Khaled, marido de Ikhlas, tinha problemas cardíacos. Quando chegaram a
Dois Vizinhos, buscaram acompanhamento médico, mas não conseguiram
realizar o exame pelo sistema público de saúde brasileiro. Khaled
contatou o escritório da Acnur em Brasília para pedir ajuda financeira e
recorrer a clínicas particulares. A garota, então com 7 anos, era a
única que falava e compreendia nosso idioma. Farah conta, com veemência,
que, meses depois, seu pai “não foi ao médico, teve um infarto e
morreu”. A informação é confirmada em um aceno de cabeça de Ikhlas.
Segundo o Acnur, Khaled recebeu todo o apoio possível dentro das
condições do programa Reassentamento Solidário – que atua por mais tempo
com os refugiados realocados mais de uma vez (portanto mais
vulneráveis) do que com aqueles que estão em seu primeiro asilo. Como
Dois Vizinhos está fora da área de atuação de uma associação parceira – a
mais próxima é a Associação Antônio Vieira, de Porto Alegre –, o
acompanhamento de situações particulares é mais difícil. “Em um país do
tamanho do Brasil, fica impossível ter logística e recursos para atender
a todas as demandas. Por isso, recomendamos que permaneçam próximos às
regiões em que haja uma instituição parceira”, diz Andrés Ramirez,
representante do Acnur no Brasil.
Após o término dos benefícios do programa em 2011, Ikhlas conta com a
ajuda dos filhos, e vive com as filhas Farah e Hanan, de 21 anos, que
trabalha, estuda e faz cursos profissionalizantes – sua jornada de três
períodos impede que eu a encontre em sua casa. Farah, porém, está sempre
com a mãe. Sorridente, traz, orgulhosa, o boletim do colégio enquanto
conta que quer ser médica. Ao lado das notas do terceiro bimestre, sua
caligrafia, ainda infantil, declara: “Passei!” O único espaço em branco é
ao lado da matéria de ensino religioso. “Mas essa não vale nota”, diz.
Quando transcrevo o nome da garota em meu bloco de anotações e mostro
para Ikhlas conferir a grafia. Ela confirma: “Farah. ‘Alegria’”.
O jantar está quase servido. Na casa da família Qodiseh, o clima é de
festa. Ammar provoca Ali com sua camisa vermelha do Internacional. O
time vence o Palmeiras por 2 a 1. Doha vem do quarto observar os últimos
minutos da partida. Os jovens Sarmad e Yamen, no Brasil há pouco,
interagem menos. Ainda não tiveram tempo de ser arrebatados pelo culto
ao futebol brasileiro. Samir, o pai, observa a movimentação sentado no
sofá. E fuma, quieto.
Ayeda Qodiseh põe os pratos na mesa: biryani, um arroz cozido com
especiarias, macarrão, frango, batata, amendoim e ervilha. O iogurte é
caseiro, e serve tanto para cobrir o biryani quanto como bebida, em
versão mais líquida, batida no liquidificador com um pouco de sal.
Repetimos os pratos. Dona Ayeda está satisfeita com a casa cheia. Só
depois de todos comerem, ela se senta à mesa. Sorri e murmura algo para o
filho traduzir. Ali, com seu inconfundível sotaque paranaense, diz:
“Piazada, esta casa é de vocês! As portas estão sempre abertas”.
Confirmo, então, a frase que li em um panfleto que me foi entregue na
mussala de Dois Vizinhos. “O profeta disse: ‘Não é um crente aquele que
enche seu estômago enquanto seu vizinho está com fome’.” E, em meio aos
perfumes e às vozes que tanto viajaram, degusto meu café e a
hospitalidade árabe nos rincões do Paraná.
Fernando Honesko