quinta-feira, 11 de julho de 2013

INDÚSTRIA ‘HALAL’ EMPREGA REFUGIADOS MUÇULMANOS





O perfume de especiarias preenche o ambiente. Ayeda Lotfi Qodiseh cozinha. Os filhos e o marido acompanham o futebol pela televisão. De um cômodo a outro da casa de madeira, Ali, o filho do meio, anda e conversa aos berros com a mãe enquanto coloca os pratos na mesa. Samir, o marido, sentado no sofá, pede o isqueiro para Ammar, o primogênito, que lhe entrega, sem tirar os olhos da tela. Doha, a caçula, sai do quarto. A família tem visitas. Sarmad e Yamen, jovens de 20 e poucos anos, vieram para ver o jogo. Vão ficar para o jantar.

A cena poderia ser um retrato do cotidiano nos subúrbios de Bagdá. Mas as araucárias que se veem pela janela e, é claro, o exaltado locutor brasileiro da partida entre Palmeiras e Internacional denunciam que estamos no Brasil.

Um Brasil de sotaque árabe, onde, todos os dias, em média, 570 mil aves são abatidas em nome de Alá. Com pouco mais de 35 mil habitantes, Dois Vizinhos, no Paraná, já ganhou fama como a capital nacional do frango. Sua economia, baseada na avicultura, é a consolidação de um processo econômico de 30 anos, que trouxe, aos poucos, novos ingredientes à já plural formação cultural da cidade. Gaúchos descendentes de italianos que subiam para colonizar o oeste paranaense foram os primeiros a se fixar ali. Em seguida vieram os alemães, de Santa Catarina, os poloneses, oriundos de colônias mais ao sul, e os japoneses, que desciam do norte do estado.

O aumento na demanda de importação de carne de frango pelos países árabes nos anos 1980 gerou uma oportunidade para o setor. Assim como outros frigoríficos espalhados no Brasil, a empresa alimentícia sediada em Dois Vizinhos adaptou sua planta à exportação ao Oriente Médio. Para que o negócio seja efetivado, as aves devem ser sacrificadas de acordo com um conjunto de regras islâmicas que categoriza o alimento como halal, “ou seja, lícitos, liberados”, me explica o moçambicano Cubilas Juma Ibraim, o xeque da mussala de Dois Vizinhos, uma sala de orações que faz as vezes de mesquita. “As aves têm de estar viradas para Meca, e a pessoa que realiza o abate deve ser um homem muçulmano, que pronuncia a palavra bismillah [‘em nome de Deus’] toda a vez que sua faca tira a vida de um animal”, completa Imad Ismail, supervisor, em Dois Vizinhos, do Departamento de Halal do Centro de Divulgação do Islã na América Latina, que presta consultoria para o frigorífico.

A necessidade de homens muçulmanos para o halal trouxe os primeiros islamitas à cidade. Hoje, por volta de 50 estrangeiros, vindos de Palestina, Iraque, Jordânia, Líbano, Síria, Egito ou de países da África subsaariana, como Sudão, Costa do Marfim, Burkina Faso, Congo, Guiné e Senegal, estão contratados. Há também um número pequeno do Paquistão, de Bangladesh e, claro, do Brasil – alguns deles convertidos há pouco tempo. A maioria está em Dois Vizinhos como imigrante. Muitos, porém, tiveram a condição de refugiados reconhecida. Eles comprovaram que as razões para deixar os países de origem foram perseguição política, religiosa ou conflitos armados. Segundo o Ministério da Justiça, existem no Brasil, hoje, 4 500 refugiados.

A família Qodiseh está nessa lista, e viveu uma odisseia para chegar a Dois Vizinhos. Sentados na sala, enquanto tomamos café, servido em pequenas xícaras sem alça, Ali ajuda o pai, Samir, servindo-lhe de intérprete.

Filho de um palestino refugiado em Bagdá, Samir nasceu em 1953. Em 2003, a guerra no país colocou a família de novo em movimento. Assim como outros conterrâneos no Iraque após a queda do regime de Saddam Hussein, os Qodiseh corriam riscos com a onda de violência sectária por parte de milícias iraquianas. Ele e a esposa venderam tudo e partiram de Najaf, onde viviam, no interior, em direção à Jordânia. Ainda como refugiados palestinos – mesmo que fossem nascidos dentro de seu território, o Iraque não concedia cidadania aos palestinos –, os Qodiseh cruzaram a fronteira e se estabeleceram no campo jordaniano de Ruwaished, a 70 quilômetros do Iraque, sob a tutela das Nações Unidas.

Khaled Qodiseh, irmão de Samir, fez o mesmo em Bagdá, onde morava com a esposa, Ikhlas, e seus quatro filhos. Ao cruzar a fronteira entre o Iraque e a Jordânia, o primeiro grande problema apareceu. Por ser iraquiana, Ikhlas não podia ser aceita no campo. Durante seis meses, a família foi obrigada a ficar em outro acampamento, da Cruz Vermelha. Dois anos se passaram até que Khaled conseguisse se juntar ao irmão.
À espera de um destino, as famílias viveram todo esse tempo em barracas de lona. As temperaturas atingiam os 50ºC durante o dia. À noite, o frio imperava. Tempestades de areia e infestações de escorpião eram problemas cotidianos. Aos poucos, o campo de Ruwaished foi sendo evacuado até sua extinção, em dezembro de 2007. Ali Qodiseh, hoje com 20 anos, tinha 15. Sua prima Farah, filha de Khaled, tinha 5.

Em 10 de setembro de 2007, os Qodiseh deixaram a Jordânia. A família fez parte dos últimos 108 palestinos que foram trazidos de lá ao Brasil pelo programa Reassentamento Solidário, do Comitê Nacional para Refugiados, o Conare, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, em parceria com o Alto Comissário das Nações Unidas para Refugiados, o Acnur. O programa é dedicado ao atendimento especial de refugiados que já estiveram em outros países, ou seja, que receberam um primeiro refúgio antes de chegar ao Brasil. Aqui, foram levados a Mogi das Cruzes, em São Paulo, onde, por meio de uma organização não governamental, receberam documentos, aulas de português e apoio financeiro. A primeira oportunidade de trabalho surgiu para Ammar Qodiseh e seu primo Mohammed. Os dois jovens foram pioneiros em Dois Vizinhos. Os pais de ambos, os irmãos Samir e Khaled, se juntaram a eles depois de uma tentativa frustrada de se estabelecer em Chuí, no Rio Grande do Sul.

Pergunto aos Qodiseh o que acharam da cidade quando chegaram. A resposta é direta: muito tranquila, mas difícil para os estrangeiros. Ali, que já carrega o sotaque cantado dos paranaenses, conta sua história emblemática do dia em que um garçom de uma lanchonete lhe pediu para que parasse de conversar com os amigos em árabe, pois isso incomodava os outros clientes. Após um silêncio enfático, Ali sublinha com o olhar quão ofensivo isso lhe pareceu.

Ayeda, a mãe, fala que sente falta do convívio com outros moradores. “No Iraque, as pessoas se visitam muito. Moramos nesta casa há três anos, mas só começamos a conversar com uma das vizinhas após a morte de seu marido”, diz ela.

Dois Vizinhos é uma cidade jovem. Fundada em 1961, o conjunto arquitetônico é composto por belas casas de madeira, com pequenos jardins bem cuidados, onde as famílias se reúnem para o chimarrão nos fins de tarde, e residências de alvenaria e prédios de dois ou três andares nada charmosos – sintoma do progresso econômico. O comércio do centro é agitado. Os carros fazem filas na avenida principal e, às vezes, competem por espaço com uma ou outra charrete. Aos domingos, jovens montados em caminhonetes brilhantes circulam com música sertaneja em volume alto pelas ladeiras.

Em um conjunto de sobrelojas de um bairro afastado, o Igrejinha, vive a maioria dos estrangeiros não árabes que trabalham no abatedouro. Nos horários de troca de turno, é comum ver homens negros de quase 2 metros de altura caminhando pela longa rua em declive que se origina no alto do morro, onde está o frigorífico.

Encontro o senegalês Cheikh Beye à porta de um dos apartamentos, ao lado de uma loja que expõe fogões a lenha na calçada. Vestido com o uniforme da seleção de futebol do Senegal, Beye me cumprimenta sem levantar os olhos. Assim como outros encontros com africanos em Dois Vizinhos, ele a princípio se recusa a compartilhar sua história. Mas a presença de Ali Qodiseh, meu guia na cidade, aos poucos alivia a desconfiança.

Em 2009, com 30 anos, conta ele, em um português arrastado, Beye deixou a esposa em Dacar, capital de seu país, para buscar trabalho em São Paulo. Na metrópole, foi absorvido pelo comércio informal da rua 25 de Março. Dois anos depois, cansado de perder mercadoria para os fiscais, ele decidiu aproveitar a indicação de um amigo senegalês para trabalhar em um abatedouro no Paraná. Os planos de Beye incluem ficar no Brasil, mas não em Dois Vizinhos. “Em São Paulo, você se sente parte da multidão. Aqui, não. O ônibus pode estar lotado que ninguém se senta a nosso lado, mesmo se só tiver aquele lugar vago.”

Um pequeno livro, Português para Falantes de Árabe, repousa em uma mesa na casa de Ikhlas Qodsieh. Ela esforça-se para contar sua história em português, mas logo pede socorro à filha Farah Qodiseh, de 12 anos, que domina com fluência os dois idiomas.

Khaled, marido de Ikhlas, tinha problemas cardíacos. Quando chegaram a Dois Vizinhos, buscaram acompanhamento médico, mas não conseguiram realizar o exame pelo sistema público de saúde brasileiro. Khaled contatou o escritório da Acnur em Brasília para pedir ajuda financeira e recorrer a clínicas particulares. A garota, então com 7 anos, era a única que falava e compreendia nosso idioma. Farah conta, com veemência, que, meses depois, seu pai “não foi ao médico, teve um infarto e morreu”. A informação é confirmada em um aceno de cabeça de Ikhlas.

Segundo o Acnur, Khaled recebeu todo o apoio possível dentro das condições do programa Reassentamento Solidário – que atua por mais tempo com os refugiados realocados mais de uma vez (portanto mais vulneráveis) do que com aqueles que estão em seu primeiro asilo. Como Dois Vizinhos está fora da área de atuação de uma associação parceira – a mais próxima é a Associação Antônio Vieira, de Porto Alegre –, o acompanhamento de situações particulares é mais difícil. “Em um país do tamanho do Brasil, fica impossível ter logística e recursos para atender a todas as demandas. Por isso, recomendamos que permaneçam próximos às regiões em que haja uma instituição parceira”, diz Andrés Ramirez, representante do Acnur no Brasil.

Após o término dos benefícios do programa em 2011, Ikhlas conta com a ajuda dos filhos, e vive com as filhas Farah e Hanan, de 21 anos, que trabalha, estuda e faz cursos profissionalizantes – sua jornada de três períodos impede que eu a encontre em sua casa. Farah, porém, está sempre com a mãe. Sorridente, traz, orgulhosa, o boletim do colégio enquanto conta que quer ser médica. Ao lado das notas do terceiro bimestre, sua caligrafia, ainda infantil, declara: “Passei!” O único espaço em branco é ao lado da matéria de ensino religioso. “Mas essa não vale nota”, diz.

Quando transcrevo o nome da garota em meu bloco de anotações e mostro para Ikhlas conferir a grafia. Ela confirma: “Farah. ‘Alegria’”.

O jantar está quase servido. Na casa da família Qodiseh, o clima é de festa. Ammar provoca Ali com sua camisa vermelha do Internacional. O time vence o Palmeiras por 2 a 1. Doha vem do quarto observar os últimos minutos da partida. Os jovens Sarmad e Yamen, no Brasil há pouco, interagem menos. Ainda não tiveram tempo de ser arrebatados pelo culto ao futebol brasileiro. Samir, o pai, observa a movimentação sentado no sofá. E fuma, quieto.

Ayeda Qodiseh põe os pratos na mesa: biryani, um arroz cozido com especiarias, macarrão, frango, batata, amendoim e ervilha. O iogurte é caseiro, e serve tanto para cobrir o biryani quanto como bebida, em versão mais líquida, batida no liquidificador com um pouco de sal.

Repetimos os pratos. Dona Ayeda está satisfeita com a casa cheia. Só depois de todos comerem, ela se senta à mesa. Sorri e murmura algo para o filho traduzir. Ali, com seu inconfundível sotaque paranaense, diz: “Piazada, esta casa é de vocês! As portas estão sempre abertas”.

Confirmo, então, a frase que li em um panfleto que me foi entregue na mussala de Dois Vizinhos. “O profeta disse: ‘Não é um crente aquele que enche seu estômago enquanto seu vizinho está com fome’.” E, em meio aos perfumes e às vozes que tanto viajaram, degusto meu café e a hospitalidade árabe nos rincões do Paraná.
Fernando Honesko
(NatGeo Brasil – 04/07/2013)

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