A presidente, com humildade, deveria ter
reconhecido desde o início os seus erros e os de seu antecessor,
resgatando o princípio de não contradição e a clareza e a distinção de
ideias
Um marciano desembarcou no Planeta Terra e, desta vez, optou por
conhecer o Brasil. Há muito tempo atrás, antepassados seus, tinham
visitado a Grécia clássica. Lá tomaram conhecimento da filosofia de
Aristóteles que os apaixonou. Levaram, inclusive, os manuscritos mais
elaborados para seu planeta, deixando para os terráqueos o duro trabalho
de edição de suas obras por séculos a fio.
Particularmente, tinham sido atraídos pelo princípio de não
contradição, que passou a ser ensinado em todas as escolas. Mais
especificamente, qualquer político deveria fazer provas duríssimas,
aplicando esse princípio aos assuntos públicos. Afinal, tratava-se de
algo maior: a prevalência do bem comum.
Nosso amigo marciano ficou, então, surpreso com o que estava
ocorrendo em nosso país, pois tudo o que via percebia como uma infração
às regras mais elementares da lógica e, neste sentido, de como entendia a
política. Nas manifestações da última quinta feira, anunciada como
“greve geral” ou como “dia nacional de lutas”, ele não conseguia
compreender o que bem podia significar uma “greve” de movimentos sociais
“organizados”, como CUT e MST, aparelhados pelo PT e financiados pelos
governos petistas, contra o próprio governo petista. Traduzindo em
miúdos, isto significa uma “greve” do PT contra o PT. O princípio de não
contradição estaria sendo infringido!
Como podia acontecer que, no décimo terceiro ano de um governo
petista, o PT se sentisse tão incomodado com o seu próprio governo.
Cansado de si mesmo? Desorientado consigo? O que diriam, então, os
cidadãos confrontados com tal confusão? Como pode alguém fazer oposição a
si mesmo?
Ficou particularmente intrigado com uma expressão de muito uso no
governo do ex-presidente Lula e posta à prova no da presidente Dilma.
Trata-se de uma tal de “herança maldita”. Não conseguia bem perceber o
que significava. Em sua formação intelectual, além de Aristóteles, tinha
lido muito Descartes, quando de outra incursão de seus antepassados ao
Planeta Terra. Tinha aprendido com o filósofo francês um critério de
verdade baseado na clareza e distinção das ideias. Lógico como era,
tratou de aplicar esse critério à expressão “herança maldita”.
Ora, qual não foi a sua estupefação ao constatar que o que o
ex-presidente Lula considerava como herança “maldita” de seu antecessor
tinha sido “bendita”, assegurando-lhe o êxito de seu primeiro mandato.
Ficou sabendo que o primeiro governo petista tinha mantido as linhas
básicas de sua política econômica e, mesmo, social. Tinha tucanado. A
lógica do governo teria sido uma, a retórica outra. Ou seja, fazia uma
coisa e dizia outra. Não há princípio de não contradição que resista,
além do problema de ordem propriamente moral de não reconhecimento.
Perseguindo ainda a clareza e a distinção das ideias, terminou por
compadecer-se com a presidente Dilma, pois ela se encontrou em uma
sinuca de bico. Do ponto de vista moral, teve uma atitude digna ao
qualificar a herança de seu antecessor como “bendita”, quando, na
verdade, ela é “maldita”. Está agora recolhendo os seus frutos que
crescem nas ruas em manifestações autônomas. O seu discurso está, neste
sentido, impregnado de contradições, apesar de ter, no início de seu
mandato, mantido a coerência ao ter reconhecido o legado do
ex-presidente Fernando Henrique. Aliás, de sua própria iniciativa, fez
uma “faxina ética”, tendo depois recuado ao seguir novamente o seu
antecessor.
Contudo, os dilemas de nosso marciano não pararam por aí. Seus
princípios e critérios não cessavam de ser postos à prova — e que
provação! Não conseguia entender o que o governo e o PT entendiam por
“movimentos sociais” quando confrontou duas manifestações, a monstro de
duas semanas atrás e a esquálida desta última quinta, tendo sido esta
uma caricatura daquela.
Em uma manobra de grande inabilidade, o governo federal partiu para a cooptação e a burocratização de movimentos autônomos .
Ele próprio, apenas poucas décadas atrás, tinha entrado em contato
com outro grego, naturalizado francês, de nome Cornelius Castoriadis. Em
privado, era chamado Corneille, porém isso também o confundia por
lembrar o célebre dramaturgo francês. O problema, porém, não era esse. O
que estava em questão era a distinção feita por esse filósofo entre
“autonomia” e “heteronomia”.
Autonomia designava movimentos populares autônomos, genuínos, que
brotavam da sociedade por ela mesma, lutando contra governos que os
oprimiam ou não atendiam às suas reinvindicações. Heteronomia, por sua
vez, significava movimentos controlados por aparatos partidários e
burocráticos, de uso corrente na esquerda, cujo objetivo consistia
precisamente em substituir e aniquilar uma manifestação independente da
sociedade civil.
Ora, as manifestações de duas semanas atrás se caracterizaram,
precisamente, por serem autônomas, nascidas do próprio seio da sociedade
civil, ultrapassando qualquer “aparelho” que tenha procurado
controlá-las. Foi um espetáculo de liberdade. Uma expressão da mais
legítima indignação com distintos governos de diferentes partidos, sejam
eles do PT, PMDB ou PSDB, tanto no nível federal, quanto estadual e
municipal.
Em uma manobra de grande inabilidade, o governo federal e o PT, em
vez de procurarem atender a uma indignação generalizada dos cidadãos
brasileiros, partiram para a cooptação e a burocratização de movimentos
autônomos. Colocaram em pauta a heteronomia. Sindicatos financiados com
recursos públicos e movimentos sociais organizados como o MST, também
financiados pelo governo, usurparam a bandeira da liberdade e da
moralidade. O resultado foi um fiasco total. Ruas comparativamente
vazias, burocratização das marchas, uniformização dos discursos e
indignação fingida.
A presidente, com humildade, deveria ter reconhecido desde o início
os seus erros e os de seu antecessor, resgatando o princípio de não
contradição e a clareza e a distinção de ideias. Poderia ter aberto um
novo caminho. Nosso amigo marciano, por sua vez, confuso, preferiu
voltar ao seu planeta. Pelo menos lá reina a coerência e a
racionalidade.
Fonte: O Globo, 15/07/2013
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