São Paulo- Se perguntar para um estrangeiro qual marca é a cara do brasileiro, ele provavelmente vai responder: “
Havaianas”. Se esta pergunta for feita aqui no Brasil, é provável que a resposta será a mesma.
Pouquíssimas marcas no mundo conseguiram se reinventar e conquistar
status internacional sem precisar mudar a essência de seu produto por
décadas como fez a Havaianas.
Afinal, não é pra qualquer um tornar uma
commodity
(produto feito em larga escala, com foco na redução dos custos de
produção) em um objeto de desejo de todas as classes sociais em mais de
cem países.
Poucas pessoas sabem, mas esta virada só foi possível por causa de uma
crise de vendas na qual a empresa se afundou 30 anos após sua criação.
Foi a partir daí que a então Alpargatas São Paulo (dona da Havaianas)
mudaria a história das sandálias de borracha mais usadas no mundo.
As sandálias Havaianas foram criadas em 1962, inspiradas na tradicional
sandália de dedo japonesa Zori, com tiras de tecido e sola de palha de
arroz. Em vez das solas de palha, entrou a borracha, mas sem deixar suas
raízes: o grão de arroz inspirou a textura da palmilha. Já o nome foi
pensado no Havaí – projetado por Hollywood como o lugar dos sonhos dos
anos 60.
Com o histórico brasileiro na extração da borracha, os gerentes da
Alpargatas decidiram que a sandália teria de ser deste material, feita
com uma fórmula especial que não deforma, nem solta tiras e não tem
cheiro, como dizia o velho slogan da marca.
Mais de 53 anos depois, nem suas principais concorrentes, como a Ipanema, da
Grendene, conseguiram imitar e trabalham com materiais como o plástico.
Assim, as tradicionais sandálias de borracha, com palmilha branca e
tiras e solas coloridas, foram lançadas e milhões de pares foram
vendidos em três décadas.
O sucesso, no entanto, chegou ao seu limite. Sem grandes investimentos
em marketing e no fortalecimento da marca, os chinelos foram associados
às classes mais baixas e suas vendas despencaram – nem mesmo a fórmula
exclusiva de seu material salvou a Havaianas de uma difícil crise de
lucratividade no início dos anos 90.
“Até 1994, tínhamos um produto único: era uma sandália de borracha de
palmilha branca com tiras azul claro, amarelas ou preta, mas basicamente
era uma commodity. Com a estagnação da marca, a gente resolveu mudar”,
conta Rui Porto, um dos diretores envolvidos em um dos projetos mais
importantes da marca: a transformação do “chinelo de pobre” para a marca
que “todo mundo usa”.
Para mudar a percepção dos consumidores, conta Rui, foi preciso deixar
de produzir apenas um produto e começar a criar um valor agregado à
marca. “Lançamos a Havaianas Top, monocromáticas, mais confortáveis e
com o nome gravado na tira. Ela continua até hoje, mas chamadas de
‘Tradicional’. Foi uma revolução.”
As Havaianas Top foram o início de uma revolução que nem a Alpargatas
poderia prever. Aos poucos, a Havaianas deixou de ser a marca “com
atestado de pobre”, como disse Rui, para virar um acessório de moda.
Para isso, a Alpargatas não poupou investimentos: novas estampas com
cores, tiras e formatos diferentes. Hoje, há mais de 400 modelos em um
produto que, basicamente, continua o mesmo.
Para tanto sucesso em um único produto, a maior mudança foi na
construção da marca. "De patinho feio da Alpargatas, na época, ela virou
a grande estrela.”
Sem dúvida, a Havaianas é a menina dos olhos da companhia fundada em São
Paulo, em 1907. Hoje a marca corresponde a 48% dos lucros da
Alpargatas, que também é dona das marcas Mizuno, Timberland, Dupé,
Osklen e do empreendimento Meggashop, outlet da Alpargatas.
No segundo trimestre deste ano, a receita líquida da Alpargatas foi de
R$ 996,9 milhões, aumento de 14% em relação ao segundo trimestre de
2014.
Nesta segunda-feira, a Alpargatas foi comprada por R$ 2,67 bilhões pela
J&F Investimentos, uma holding de investimentos dos irmãos Joesley e
Wesley Batista, que controla a
JBS. Ela pertencia ao grupo Camargo Corrêa, envolvido na
Operação Lava Jato. A transação ainda depende de aprovação do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).
Agregando valor, conquistando cada brasileiro
De chinelo de pobre, a sandália de dedo não tem mais nada. Além de
aderir às estampas da moda e seguir tendências do mundo inteiro, a marca
fez parcerias com grandes estilistas e investiu fortemente nos veículos
de comunicação de massa e nos segmentados.
“Antes éramos focados apenas em meios massivos, como televisão e rádio.
Começamos a fazer anúncios em revistas de moda e de celebridades.
Patrocinamos eventos de moda como o São Paulo Fashion Week e emprestamos
sandálias em desfiles”, conta Rui, que tem mais de 30 anos de casa e
hoje é consultor de mídia e braço direito do presidente da Alpargatas,
Márcio Utsch.
A ideia, porém, nunca foi deixar de atingir as classes mais baixas, nem
mesmo focar em faixas etárias específicas. A ordem era agregar.
“Acho que foi um caso único no mundo. Marcas mudam, a gente não
exatamente mudou. A gente agregou, como uma família. Antes era algo
único e hoje é uma multidão.”
Para isto, o jeito foi encontrar a “justa medida”, segundo o consultor
de mídia. Os comerciais são detalhadamente pensados para não delimitar
qualquer público, por exemplo.
“Como nosso país é imenso, a gente tenta fazer um anúncio que todos vão
compreender. Não usamos valores de uma determinada classe social, por
outro lado, não afastamos este público”, explica Rui.
“Nossos comerciais
têm que ser bem humorados, com uma certa irreverência, certa
sexualidade brasileira. Tentamos usar personalidades que sejam bem
conhecidas.”
Entre estas personalidades que protagonizaram comerciais da marca, Malu
Mader é um exemplo da transição da marca. Associada ao ideal de
elegância, a atriz protagonizou uma peça publicitária em que calçava a
Havaianas dentro de casa.
Os preços também começaram a variar. Com peças assinadas por estilistas e
customizadas até com cristais de Swarovski, hoje há pares de Havaianas
que chegam a custar R$ 400. Por outro lado, as tradicionais não saíram
de linha e são opções acessíveis (a partir de R$ 13,90).
“Para cada mídia, seja revista, jornal, TV ou rádio, temos uma abordagem
diferente. Embora o esqueleto sirva para todos, conforme a mídia, a
gente adapta para seu público.”
A internacionalização da marca
A Havaianas começou a ganhar o mundo na virada do milênio, entre 1999 e
2000. Antes, a marca já era exportada para países vizinhos, como Bolívia
e Paraguai, mas como um produto para uso funcional – propósito
totalmente oposto à nova estratégia da marca, que buscava apropriar
sofisticação às sandálias.
Antes de procurar distribuidores mundo a fora, no entanto, a marca
esperou virar febre no Brasil. A ideia era deixar que os próprios
brasileiros começassem a exportar as sandálias, para dar de presente a
amigos e parentes que moravam no exterior.
“Queríamos mostrar que era uma moda que vinha do Brasil. Para isso, soubemos gerenciar a marca antes de ir pra fora.”
De acordo com Rui, as sandálias já eram um sucesso em 1997, mas só por
volta de 2000 começaram a exportar. Primeiro, elas desembarcaram em
Portugal, na Austrália e no Japão, pela origem das sandálias.
Depois, elas chegaram aos Estados Unidos e em outros países da Europa e da América do Sul, como Argentina e Uruguai.
Havaianas
“Não estávamos exportando um produto com ‘certificado de pobreza’ como
ela era, mas exportando uma marca com valor agregado. Esta foi uma
missão que soubemos fazer direitinho.”
O plano de expansão para fora foi tão "direitinho" que a Havaianas é
hoje uma das marcas brasileiras mais conhecidas pelos norte-americanos e
europeus.
As "flip-flops" logo ganharam os pés dos estrangeiros e mais espaço nas
lojas e boutiques de países como Estados Unidos, França, Alemanha,
Itália, Espanha e Reino Unido. Em 2003, um par de Havaianas chegou a
custar em Londres, na Inglaterra, o equivalente a R$ 500.
Atualmente, a Havaianas está presente em 117 países e tem centros de
operação em 11 deles: Estados Unidos, Portugal, Espanha, França, Itália,
Reino Unido, Áustria, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Alemanha.
As sandálias ocuparam um espaço que até então estava vazio no mercado
mundial. Para isso, Rui diz que dois pilares foram fundamentais: ter
feito sucesso no próprio país e entender os mercados locais.
Além das sandálias: a descentralização da marca
Após décadas fabricando somente um produto, a Havaianas começou,
timidamente, a marcar presença em outras frentes. Primeiro, foram
lançadas toalhas, chaveiros e capas de celular e outros acessórios.
A maior aposta, no entanto, estava reservada às alpargatas, as
“Havaianas cobertas”. “Fizemos um teste piloto na Europa, um mercado que
necessitava de uma ‘Havaianas de inverno’ e foi um sucesso.”
Depois de ganhar o mercado europeu, a marca trouxe para o Brasil, que
fez grande sucesso neste ano.
Para apresentá-las aos brasileiros, a
Alpargatas não poupou sua fórmula de sucesso: com muita irreverência, as
alpargatas foram apresentadas numa campanha em que brinca com a
inversão de gênero dos casais Cléo Pires e Rômulo Neto e José Loreto e
Débora Nascimento:
Agora, a empresa expandiu para tênis e roupas, que são vendidas em
apenas três lojas no Brasil. Os próximos passos são distribuir para as
franquias no país, que somam mais de 390, e exportar as primeiras peças
para a Europa, onde tem nove lojas próprias.
Em setembro deste ano, a marca anunciou outra novidade: um contrato de
licenciamento de marca com a Safilo Group, empresa italiana que atua no
mercado mundial de óculos premium. O acordo permitirá a criação e
distribuição mundial de uma coleção de óculos da marca Havaianas.
“Óculos tem tudo a ver com a marca, um produto ligado ao verão e ao
calor. A marca é bastante conhecida e queríamos expandir para outras
categorias”, conta Rui.
Questionado sobre o receio de desvirtuar a marca, Rui esclarece que cada
produto lançado passa antes por muitos processos. “A gente faz tudo com
muito cuidado. Fazemos testes, pensamos na qualidade. Acho que só
afetaria a marca-mãe se o produto fosse mal feito. A gente está livre
desse risco.”
Da crise, a oportunidade
Até da crise econômica brasileira a marca conseguiu se salvar. Após um
primeiro trimestre ruim, com queda de 8,7% na receita líquida em relação
ao mesmo período de 2014, a Havaianas conseguiu voltar a ter lucro
graças à…. Desvalorização do câmbio.
Um ano antes da crise dar seus primeiros passos, por volta de 2014, a
Alpargatas informava a inauguração da nova fábrica em Montes Claros,
Minas Gerais, que ampliou a capacidade produtiva da sandália em 40%,
para mais de 102 milhões de pares por ano.
Além de Montes Claros, a marca tem fábrica em Campina Grande, na
Paraíba. Mas o aumento da produção em tempos difíceis de vendas acabou
sendo oportunidade para explorar ainda mais outros mercados.
“A crise atinge todo mundo, o ano não está uma maravilha. Mas o que nos
salvou foi a exportação”, esclarece Rui. “Com a alta do dólar, a
exportação foi beneficiada e já no segundo trimestre sentimos um boom
nas vendas.”
Segundo Rui, a grande variedade de preços foi outra carta na manga da
empresa. “Você tem desde modelos tradicionais que podem ser vendidos por
R$ 10 até modelos de R$ 400, toda customizada. Este mix ajuda muito.”
Além disso, aos olhos da marca, a crise é uma oportunidade de consolidar
ainda mais a marca. “Os consumidores não querem ousar e preferem
recorrer aos produtos que já conhecem. Em crise, se corre para onde tem
mais confiança”.
Hoje, a marca Havaianas detém 85% do mercado de sandálias de borracha.
Já entre sandálias no geral, ela tem uma fatia de cerca de 50%.
Diante da crise, os planos não foram afetados, garante o consultor.
“A crise não mudou os planos. Inauguramos uma fábrica em Montes Claros e
o investimento já foi feito. Temos capacidade de aumentar participação
no Brasil e no mundo. Então, não tem como ter crise.”