O mercado de capitais entra de vez na era das comunidades virtuais.
Depois dos sistemas de negociação eletrônica que permitem comprar e
vender ações em bolsa de qualquer lugar usando telefone ou tablets e das
comunidades de discussão de investimentos, o próximo passo é a abertura
de capital de empresas via internet.
Hoje, já é comum o chamado
crowdfunding, usado para financiar projetos e empresas sem fins lucrativos por meio de campanhas em comunidades da internet.
Uma versão eletrônica da popular “vaquinha” para projetos de cunho social.
No exterior, esse processo evoluiu para a distribuição de papéis de
empresas que buscam o lucro, o chamado equity crowdfunding.
Como o custo dessa distribuição é muito baixo e a abrangência de
interessados é imensa, ele permite que empresas menores também encontrem
investidores dispostos a correr o risco de um negócio principiante, as
chamadas “startups”.
Na Inglaterra, onde o equity crowdfund começou há cinco anos, a
estimativa é que no ano passado esse tipo de operação tenha permitido a
pequenas empresas captarem 150 milhões de libras ou R$ 750 milhões,
quase o dobro dos 85 milhões de libras do ano anterior.
CVM prepara regulação
No Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que regula o mercado
de capitais, está atenta ao crescimento desse tipo de operação e estuda
uma regulação, que estava prevista inicialmente para o fim do ano
passado, mas acabou ficando para este ano, ainda sem prazo oficial.
Mas, segundo fontes do setor, a proposta deve entrar em discussão em
abril, detalhando como a oferta de papéis das empresas deve ser feita e
mudando algumas regras com relação ao porte e ao perfil das candidatas e
regulamentando as empresas distribuidoras, explica Gregg Kelly, sócio
do site EqSeed e diretor da Associação Brasileira das Empresas
Administradoras de Plataformas de Equity Crowdfunding.
Mais rapidez nas ofertas
Hoje, o equity crowdfunding já é possível, desde que as empresas
respeitem a Instrução CVM 400, que em seu artigo 5º regula as ofertas
públicas de micro e pequenas empresas.
O processo, porém, é demorado, pode levar seis meses ou mais, pois
depende de aprovação da CVM, Por isso, é grande a expectativa com a
regulamentação, que dispensariam as operações do sinal verde da CVM.
Kelly espera que as normas sejam colocadas em audiência pública no
começo de abril e, depois, as sugestões do mercado serão analisadas pela
CVM.
A aprovação final deve sair até dezembro, espera Kelly. Segundo ele, ao
contrário do mercado formal de grandes ofertas públicas de ações, que
está paralisado desde o ano passado, há muitas empresas procurando
operações de crowdfunding para financiar seus projetos.
Quantas ações vai levar no ato
A regulamentação deverá definir os valores máximos das ofertas, o tipo e
o porte das empresas que podem participar e a forma como os
investimentos serão feitos.
Hoje, o investidor recebe um Título de Dívida Conversível (TDC), uma
espécie de debênture conversível, que garante uma fatia de ações da
empresa no futuro.
Uma das exigências da CVM é que os investidores saibam na aplicação
quantas ações e quanto do capital da empresa terão quando ela abrir o
capital.
“É muito importante essa segurança e essa facilidade de entendimento
para o investidor iniciante, é preciso que o processo seja simples para
ele poder aplicar com segurança”, afirma Brian Begnoche , sócio de Kelly
na EqSeed.
Ofertas de R$ 5 milhões
Atualmente, as operações via internet estão limitadas, pela Instrução
400, às micro e pequenas empresas, que têm seu próprio critério de
tamanho para garantir também vantagens fiscais, como o uso do Simples
para pagar menos impostos.
Hoje, esse limite está em um faturamento anual de até R$ 3,6 milhões. O
valor que elas podem captar também é limitado a R$ 2,4 milhões.
A proposta das empresas de crowdfunding é que esse limite passe para um
faturamento de R$ 5 milhões a R$ 10 milhões por ano e uma autorização de
captação no mesmo valor.
O valor mínimo das captações feitas no Brasil está em torno de R$ 200
mil, mas, após a regulamentação, deverá crescer e chegar a até R$ 1
milhão.
Empresas abertas e fechadas
Outra mudança é que a nova regulamentação permitirá que não só empresas
de sociedade limitada façam ofertas, liberando também as emissões de
sociedades abertas.
Hoje, como as ofertas são só de empresas limitadas, os investidores só
podem comprar notas de crédito conversíveis. Com a autorização para as
sociedades abertas, as empresas poderão vender ações diretamente via
internet.
“A regulamentação deve permitir qualquer natureza de empresa, aberta ou
fechada, como já ocorre no exterior”, afirma Kelly. Mesmo assim, ele
acredita que muitas continuarão como sociedades limitadas, para
continuar com as vantagens fiscais do Simples.
Plataformas sem capital mínimo, mas com responsabilidades
A regulamentação deve dispensar as plataformas de distribuição de ter um
capital mínimo, mas elas terão de seguir uma série de normas que vão
garantir que as empresas e as ofertas cumpram as regras da CVM.
Kelly diz que a ideia é evitar que o excesso de regulação acabe travando
o mercado. “Vimos outros países em que houve muita regulação e o
resultado foi que os mercados não cresceram”, afirma.
O ideal é algo parecido com a Inglaterra, afirma Kelly, que define
apenas pontos básicos, como o tamanho das ofertas e das empresas e um
limite para investidores não qualificados, que deve ser de 10% da
carteira total no Brasil.
Em troca dessas exigências, as operações não precisarão mais ser
aprovadas pela CVM. As plataformas também serão responsáveis por
fornecer informações e dados das empresas, antes e depois da oferta,
para manter os investidores informados.
Meta de 12 ofertas este ano
A primeira empresa da EqSeed a usar o sistema para captar foi a Kokar,
de automação de residências, que usou as regras da Instrução 400 da CVM.
Kelly diz que está em conversas com outras empresas interessadas em
emitir papéis e quatro já estão em estágio avançado.
A meta é fechar o ano com 12 operações e R$ 5 milhões captados no total, com uma média de R$ 400 mil por operação.
“Mas o foco no momento não é o volume de operações, mas a qualidade”,
afirma Kelly, que espera que a maioria das operações deste ano saia
ainda pela Instrução 400.
A preocupação, diz, nem é tanto com o setor de atuação das empresas, mas
que elas tenham capacidade de crescimento forte. Em geral, o setor de
tecnologia costuma ter mais candidatas, mas há casos de comércio
eletrônico e até microcervejarias.
“São setores com os quais os investidores se identificam, acompanham, e
que gostariam de participar, já imaginando também uma porta de saída,
como a venda para outra grande empresa do setor”, acrescenta Begnoche.
Desintermediação financeira
Há quatro plataformas ativas no Brasil, tentado se firmar no mercado: a
EqSeed, a Broota, a StartMeUp e a EuSócio, cada uma com suas
características.
Na Broota, por exemplo, há a figura do “investidor âncora”, em geral um
fundo ou grande investidor “anjo”, que apresenta a empresa aos
investidores na rede.
O objetivo é regulamentar o mercado para formalizar e trazer credibilidade para o segmento.
“No fundo, é um modelo de desintermediação financeira, no qual a análise
de crédito que vai ser feita pelo próprio investidor, e em empresas
nascentes, que não têm muita estrutura, por isso precisa ser um processo
simples, com baixa burocracia e baixo custo para as empresas
aproveitarem”, afirma Kelly.
Um processo, portanto, que envolve riscos elevados de perdas caso o projeto não dê certo.
Sem espaço na bolsa e sem investidores
O modelo de equity crowdfunding deve preencher uma lacuna que existe
hoje entre as empresas pequenas e as médias, que já podem usar o mercado
de acesso da BM&FBovespa, o Bovespa Mais, para captar.
“Aqui no Brasil, essa lacuna é ainda maior”, afirma Kelly. “Podemos
começar com um limite mais baixo e, mais adiante, mostraremos à CVM a
importância desse mercado e os valores podem ser ampliados”, afirma
Kelly.
Ele diz que na Inglaterra o equity crowdfunding não tem limite de
captação, mas, na zona do euro, o máximo permitido é € 5 milhões por
empresa.
“Lá, muitas empresas já estão chegando no limite e pedindo para aumentar”, afirma Kelly.
Duas empresas inglesas com capital em bolsa também pediram para fazer
ofertas de crowdfunding, pelo baixo custo, pela possibilidade de atrair
mais investidores e pelos benefícios em marketing do sistema.
Empresas fora do radar dos investidores
A tecnologia permitirá abrir um canal de financiamento para empresas que
estão começando, as chamadas “startups”, e que ficam fora do radar dos
grandes financiadores, do mercado de capitais e dos pequenos
investidores, diz Begnoche.
Ele cita o exemplo dos fundos especializados em empresas emergentes, os
“venture capital”, que só trabalham com empresas que faturam mais de R$ 4
milhões.
“O equity crowdfunding permite destravar um grande volume de recursos de
investidores que podem se interessar em participar desses projetos hoje
sem fonte de financiamento”, explica.
Risco de golpes
Kelly diz que a seleção das empresas e a validação dos dados pelos sites vão ajudar a evitar golpes contra os investidores.
Além disso, o crowdfunding é um método de captar recursos muito público,
e as empresas vão chamar muita atenção e isso deve ajudar no controle
da qualidade.
“Nós, por exemplo, só faremos campanha com empresas já constituídas, com
captação e contas em nome delas mesmo, tudo para reduzir o risco”, diz.
“E teremos cem investidores individuais acompanhando a empresa.” A meta é
que o investidor corra apenas o risco do negócio mesmo, que já é
bastante alto, considerando que são empresas novas.
Participação limitada a 10%
No caso do investidor, ele ganhará uma renda variável sobre o crescimento do negócio de acordo com sua participação societária.
“É um produto de diversificação com empresas nascentes, para pessoas com
ideia de ganho de capital de longo prazo, mas nível de risco razoável e
baixa liquidez, por isso deve ser sempre uma parcela pequena de uma
carteira de investimentos”, afirma Kelly.
Por isso a sugestão de que as ofertas pelos sites não superem 10% do valor oferecido para pessoas físicas não qualificadas.
“Com a taxa de juros do Brasil, esse percentual é razoável”, afirma Kelly.
Governança variável
Em termos de governança, a empresa que faz a oferta pode oferecer
direito de voto ou não. Mas, no contrato, elas têm de prestar
informações a cada três meses, um resumo do desempenho, um balanço
simples e, a cada ano, um balanço completo.
“O modelo garante um alto nível de transparência, desde o início da
campanha, quando a empresa coloca a oferta no site”, afirma. Essa
cultura de transparência também é um passo importante para a empresa se
tornar uma companhia aberta no futuro.
Mais autonomia dos investidores
Para Begnoche, o ideal é que o sistema seja o mais compreensível
possível para o investidor não especializado, para liberar os valores
que hoje estão aplicados apenas em grandes bancos e em geral em renda
fixa.
“O conhecimento dessa pessoa física não é de um profissional, mas ele
tem a capacidade de tomar uma decisão sobre a qualidade de uma empresa
ou negócio”, afirma.
Ele lembra que há um movimento de mudança no Brasil, com mais pessoas gerenciando sua carteira de investimento.
“Lá fora, nos EUA ou na Inglaterra, essa tendência é ainda mais forte,
com muito home broker, que traz mais independentes para o mercado e
reduz o custo das empresas que captam”, diz.
“E isso ajuda as empresas que querem crescer e criar valor para a economia brasileira”, explica.
Lista de espera para investir
Ele dá o exemplo da Kokar, que captou em dezembro R$ 300 mil de 38
investidores de oito estados.
A média por investidor foi de R$ 8 mil,
“mas tinha valores de R$ 1 mil a R$ 50 mil, uma grande variedade de
valores e perfis”, afirma Begnoche.
O modelo, diz, serve tanto para profissional, como executivos de empresas, quanto o principiante, e surpreendeu pelo interesse.
“No dia da oferta, fizemos um webinar (apresentação via internet) para
um grupo de investidores e um cliente fechou sozinho os R$ 40 mil
restantes da oferta’, afirma Kelly.
“Então, no segundo webinar do dia, já não tínhamos mais nada para
oferecer e sobrou uma fila de espera.” Outra empresa que está sendo
preparada para captar R$ 250 mil pela EqSeed é o site educacional “Me
passa aí”, voltado para tirar dúvidas de estudantes universitários.
Oferta de 96 segundos
A tendência é que o mercado se desenvolva e mais empresas e investidores
participem do equity crowdfunding, permitindo operações maiores e em
menor espaço de tempo. Kelly lembra que o mercado inglês começou com
operações de 75 mil libras e hoje oscila em torno de 1 milhão de libras.
Uma empresa chegou a fazer uma oferta de 5 milhões de libras no ano passado. Além disso, o tempo das ofertas se encurtou.
Em uma delas, de um banco totalmente digital, a oferta foi toda comprada
por um único investidor, que em 96 segundos levou o 1 milhão de libras
em papéis oferecidos.
“É uma forma rápida de um negócio inovador se financiar, até porque uma
ideia nem sempre resiste tendo de esperar seis, nove meses para obter
recursos”, afirma Kelly.