Para o ex-embaixador Jorio Dauster, um Congresso agora renovado pode retomar a análise do referendo revocatório
Tendo vivido o trauma de
destituir dois presidentes pela via do impeachment, o Brasil precisa
instituir o direito democrático de que se corrijam eventuais erros
eleitorais. No vocabulário político brasileiro, o significado mais comum
de recall é a capacidade que tem o eleitor de relembrar o nome de quem
foi candidato em eleições anteriores. Mas há uma acepção mais rica e
mais próxima do linguajar comum quando se refere ao pedido de um
fabricante para receber de volta produtos defeituosos. Neste segundo
caso, o recall é também conhecido como referendo revocatório,
significando o poder do eleitorado de cassar o mandato de um governante
que se revelou desonesto, incompetente ou inoperante, inclusive por
perder o apoio da população e do Congresso. Para resolver esse tipo de
problema, seria de todo aconselhável acolher em nosso ordenamento
jurídico este poderoso instrumento da democracia participativa, que
viria se somar ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular tão
pouco usados entre nós.
Embora virtualmente desconhecido do
cidadão comum, o recall tem longa tradição. Aqui mesmo na América do
Sul a revogação pelos eleitores do mandato do presidente da República
está inscrita na constituição da Bolívia e da Venezuela. A aplicação
mais intensa do instrumento ocorre nos Estados Unidos: implantado em
1911, hoje somente 14 estados não admitem a destituição de
representantes eleitos pelo voto direto. Com isso, dois governadores e
centenas de prefeitos, senadores e outros agentes públicos perderam seus
cargos, sendo o caso mais famoso aquele que, em 2003, fez com que
Arnold Schwarzenegger se tornasse governador da Califórnia.
No
Brasil, vários projetos de emenda constitucional sobre o assunto foram
submetidos ao Senado Federal, mas só em junho do ano passado a Comissão
de Constituição, Justiça e Cidadania, apreciando parecer do senador
Antonio Anastasia, aprovou um substitutivo ao projeto de emenda do
senador Antonio Carlos Valadares em que se estabelece a possibilidade de
recall apenas para o presidente da República. O parecer aponta para o
fato de que propostas anteriores, por sua excessiva abrangência,
poderiam gerar instabilidade política e jurídica. Assinala, também, a
diferença entre esse instrumento e o impeachment, uma vez que, no
primeiro caso, o afastamento do primeiro mandatário não exige que ele
haja cometido crime de responsabilidade, bastando “a perda de
representatividade e de apoio da população”. Por tal razão, continua o
parecer, a adoção do recall “estimulará o exercício mais responsável da
elevada função de chefia do Estado brasileiro (...) já que os eleitores
não precisam aguardar a próxima eleição regular para destituir um agente
público incompetente, desonesto, despreocupado ou irresponsável”.
Em
concreto, o substitutivo aprovado dispõe que “o mandato do presidente
da República poderá ser revogado, mediante proposta submetida por
eleitores em número não inferior a um décimo dos que compareceram à
última eleição presidencial, distribuídos por pelo menos quatorze
Estados, cada um deles com não menos de cinco por cento dos eleitores
que votaram no referido pleito”. A fixação desses elevados gabaritos,
não apenas em termos do número de eleitores que devem subscrever o
pedido de recall, mas também do número de Estados envolvidos, é uma
forte garantia de que o instrumento não poderá ser usado de modo
abusivo, apenas para atender aos anseios de algum candidato derrotado na
eleição, exigindo na realidade que haja uma significativa reação à
forma pelo qual o país está sendo governado. Ademais, o substitutivo
estabelece ainda que é vedada qualquer proposta de revogação durante o
primeiro e último ano do mandato, bem como a apreciação de mais de uma
proposta de revogação por mandato.
O ato derradeiro do recall
seria dado por um referendo, convocado segundo as normas já presentes
na Constituição, pelo qual a proposta de revogação seria ratificada ou
rejeitada pela maioria dos eleitores. Em caso de ratificação, assumiria o
vice-presidente.
Se o substitutivo da Comissão consistisse
apenas do que foi dito acima, deveríamos cumprimentá-la por haver gerado
uma PEC extremamente sólida. Na verdade, porém, esse belo instrumento
de democracia participativa foi desvirtuado ao prever que a proposta de
revogação, antes de gerar o referendo decisivo, “será apreciada pela
Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, sucessiva e separadamente, e
considerada aprovada se obtiver o voto favorável da maioria absoluta
dos membros de cada uma das Casas”. Em outras palavras, criar-se-ia um
filtro ilegítimo no Congresso, pois 257 deputados e 41 senadores teriam a
faculdade de contrariar a vontade de bem mais de 10 milhões de
eleitores distribuídos por mais da metade dos Estados brasileiros. Faria
melhor o Senado se tivesse proposto uma dupla iniciativa para o recall,
permitindo que, além do pedido popular, o Congresso Nacional também
pudesse dar origem ao processo mediante a aprovação da maioria dos
membros das duas casas – o que seria legítimo, pois eles são os
representantes do povo.
Resta a esperança de que um Congresso
agora renovado possa retomar a análise do tema no entendimento
efetivamente democrático de que quem com o voto elege, com o voto pode
destituir.
*Diplomata,
ex-secretário no consulado do Brasil em Montreal e nas embaixadas em
Praga e Londres, ex-presidente e da Companhia Vale do Rio Doce e
ex-embaixador do Brasil junto à União Europeia.
http://www.amanha.com.br/posts/view/7617