quinta-feira, 6 de junho de 2019

Recall, o direito de corrigir um erro eleitoral

 

 

Para o ex-embaixador Jorio Dauster, um Congresso agora renovado pode retomar a análise do referendo revocatório

 

Por Jorio Dauster*

Para o ex-embaixador Jorio Dauster, um Congresso agora renovado possa retomar a análise do referendo revocatório


Tendo vivido o trauma de destituir dois presidentes pela via do impeachment, o Brasil precisa instituir o direito democrático de que se corrijam eventuais erros eleitorais. No vocabulário político brasileiro, o significado mais comum de recall é a capacidade que tem o eleitor de relembrar o nome de quem foi candidato em eleições anteriores. Mas há uma acepção mais rica e mais próxima do linguajar comum quando se refere ao pedido de um fabricante para receber de volta produtos defeituosos. Neste segundo caso, o recall é também conhecido como referendo revocatório, significando o poder do eleitorado de cassar o mandato de um governante que se revelou desonesto, incompetente ou inoperante, inclusive por perder o apoio da população e do Congresso. Para resolver esse tipo de problema, seria de todo aconselhável acolher em nosso ordenamento jurídico este poderoso instrumento da democracia participativa, que viria se somar ao plebiscito, ao referendo e à iniciativa popular tão pouco usados entre nós.

Embora virtualmente desconhecido do cidadão comum, o recall tem longa tradição.  Aqui mesmo na América do Sul a revogação pelos eleitores do mandato do presidente da República está inscrita na constituição da Bolívia e da Venezuela. A aplicação mais intensa do instrumento ocorre nos Estados Unidos: implantado em 1911, hoje somente 14 estados não admitem a destituição de representantes eleitos pelo voto direto. Com isso, dois governadores e centenas de prefeitos, senadores e outros agentes públicos perderam seus cargos, sendo o caso mais famoso aquele que, em 2003, fez com que Arnold Schwarzenegger se tornasse governador da Califórnia.

No Brasil, vários projetos de emenda constitucional sobre o assunto foram submetidos ao Senado Federal, mas só em junho do ano passado a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, apreciando parecer do senador Antonio Anastasia, aprovou um substitutivo ao projeto de emenda do senador Antonio Carlos Valadares em que se estabelece a possibilidade de recall apenas para o presidente da República. O parecer aponta para o fato de que propostas anteriores, por sua excessiva abrangência, poderiam gerar instabilidade política e jurídica. Assinala, também, a diferença entre esse instrumento e o impeachment, uma vez que, no primeiro caso, o afastamento do primeiro mandatário não exige que ele haja cometido crime de responsabilidade, bastando “a perda de representatividade e de apoio da população”. Por tal razão, continua o parecer, a adoção do recall “estimulará o exercício mais responsável da elevada função de chefia do Estado brasileiro (...) já que os eleitores não precisam aguardar a próxima eleição regular para destituir um agente público incompetente, desonesto, despreocupado ou irresponsável”. 

Em concreto, o substitutivo aprovado dispõe que “o mandato do presidente da República poderá ser revogado, mediante proposta submetida por eleitores em número não inferior a um décimo dos que compareceram à última eleição presidencial, distribuídos por pelo menos quatorze Estados, cada um deles com não menos de cinco por cento dos eleitores que votaram no referido pleito”. A fixação desses elevados gabaritos, não apenas em termos do número de eleitores que devem subscrever o pedido de recall, mas também do número de Estados envolvidos, é uma forte garantia de que o instrumento não poderá ser usado de modo abusivo, apenas para atender aos anseios de algum candidato derrotado na eleição, exigindo na realidade que haja uma significativa reação à forma pelo qual o país está sendo governado. Ademais, o substitutivo estabelece ainda que é vedada qualquer proposta de revogação durante o primeiro e último ano do mandato, bem como a apreciação de mais de uma proposta de revogação por mandato. 

O ato derradeiro do recall seria dado por um referendo, convocado segundo as normas já presentes na Constituição, pelo qual a proposta de revogação seria ratificada ou rejeitada pela maioria dos eleitores. Em caso de ratificação, assumiria o vice-presidente. 

Se o substitutivo da Comissão consistisse apenas do que foi dito acima, deveríamos cumprimentá-la por haver gerado uma PEC extremamente sólida. Na verdade, porém, esse belo instrumento de democracia participativa foi desvirtuado ao prever que a proposta de revogação, antes de gerar o referendo decisivo, “será apreciada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, sucessiva e separadamente, e considerada aprovada se obtiver o voto favorável da maioria absoluta dos membros de cada uma das Casas”. Em outras palavras, criar-se-ia um filtro ilegítimo no Congresso, pois 257 deputados e 41 senadores teriam a faculdade de contrariar a vontade de bem mais de 10 milhões de eleitores distribuídos por mais da metade dos Estados brasileiros. Faria melhor o Senado se tivesse proposto uma dupla iniciativa para o recall, permitindo que, além do pedido popular, o Congresso Nacional também pudesse dar origem ao processo mediante a aprovação da maioria dos membros das duas casas – o que seria legítimo, pois eles são os representantes do povo.

Resta a esperança de que um Congresso agora renovado possa retomar a análise do tema no entendimento efetivamente democrático de que quem com o voto elege, com o voto pode destituir.
*Diplomata, ex-secretário no consulado do Brasil em Montreal e nas embaixadas em Praga e Londres, ex-presidente e da Companhia Vale do Rio Doce e ex-embaixador do Brasil junto à União Europeia.



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