Este artigo objetiva discutir aspectos referentes aos
estatutos jurídicos que regulamentam os direitos dos estrangeiros no
direito nacional e a possível correlação entre a utilização indevida
destes para beneficiar a prática do tráfico internacional de pessoas.
A “operação Liberdade” deflagrada pela Policia Federal recentemente
no Distrito Federal com o objetivo de reprimir o tráfico internacional
de pessoas[1] revela a possibilidade de utilização da Lei 9747/97 para
prática de crimes. No Brasil existem principalmente dois estatutos
jurídicos que regulamentam a condição legal do estrangeiro no país, de
maneira bem diversa, e, orientados por ideologias distintas: o Estatuto
do Estrangeiro e o Estatuto dos Refugiados.
A ausência de uma politica
de imigração uniforme e adequada às circunstancias atuais, nos últimos
anos, revela a utilização do Estatuto dos Refugiados contrária aos
propósitos desta lei. Tal fato têm gerado perplexidade e até mesmo
injustiças, evidenciando, inclusive, a utilização deste estatuto legal
para facilitar a prática de crimes. Neste sentido, este artigo objetiva
discutir aspectos referentes aos estatutos jurídicos que regulamentam os
direitos dos estrangeiros no direito nacional e a possível correlação
entre a utilização indevida destes para beneficiar a prática do tráfico
internacional de pessoas.
A Condição Jurídica do Estrangeiro no Direito Brasileiro
A política de imigração no Brasil é ditada, principalmente, por dois
instrumentos jurídicos: a lei 6815/80, o Estatuto dos Estrangeiros, e a
lei 9474/97, o Estatuto dos Refugiados. A primeira, promulgada no
período do regime militar, reflete uma ideologia nacionalista e
restritiva em relação à permanência de estrangeiros, enquanto a última é
fruto da abertura política e da inserção internacional do Brasil na
segunda metade dos anos 90[2]. Neste período, o Estado brasileiro aderiu
a diversos instrumentos internacionais relativos a proteção dos
direitos humanos e promoveu reformas legais para adequar as leis
internas às obrigações internacionais.
O Estatuto dos Refugiados, assim, reflete uma ideologia orientada
pelo discurso universalista centrado no principio da dignidade da pessoa
humana. Do ponto de vista jurídico, a lei 9474/97, é considerada um
avanço ao delimitar direitos e deveres que garantem uma sobrevivência
digna aos estrangeiros que adquirem a condição de refugiado. Por outro
lado, a lei 6815/80 é informada pelo objetivo de garantir, sobretudo, a
proteção do trabalhador nacional, conferindo ampla discricionariedade ao
poder público para estabelecer as possibilidades para a aquisição do
visto de residência permanente, geralmente via resoluções normativas[3].
Na prática, o visto permanente substitui a aquisição da nacionalidade
em decorrência do vinculo matrimonial, hipótese inexistente no direito
pátrio, garantindo aos estrangeiros, casados ou em união estável com
nacionais brasileiros, o direito de obter a residência permanente. O
resultado é uma política migratória excludente e, ao mesmo tempo,
protetiva em relação aos brasileiros que mantenham vínculo afetivo com
nacionais estrangeiros, garantindo a permanência destes em território
nacional[4]. Por outro lado existem resoluções normativas que
regulamentam a concessão de visto permanente para investidores[5],
limitando, assim, os casos de concessão a fatores econômicos ou para
fins de união de família.
Consequentemente, as possibilidades do estrangeiro se estabelecer e
trabalhar no país ficam restritas a situações muito específicas,
excluindo a maior parte dos estrangeiros que se encontram em território
nacional em busca de trabalho do âmbito de aplicação do estatuto legal. O
resultado é a crescente presença de imigrantes ilegais em território
nacional que se sujeitam a condições de trabalho indignas e, muitas
vezes, análoga à condição de escravo, vivendo na clandestinidade e
sujeitos a privação de direitos fundamentais.
Em direção oposta, o
Estatuto dos Refugiados é inclusivo e potencialmente oferece a
possibilidade de um tratamento mais favorável ao estrangeiro que seja
vítima de perseguição, enquanto permaneça o motivo que fundamente a
concessão da condição de refugiado. Não obstante, devido à distância do
território brasileiro de áreas de conflito envolvendo grande número de
refugiados, o país é pouco procurado por potenciais candidatos à
condição de refugiado[6].
Em contrapartida, a aplicação do Estatuto dos
Refugiados em casos concretos revela fragilidades que resultam em
práticas contrárias aos propósitos do mesmo. Este é o caso envolvendo
estrangeiros provenientes de áreas em conflito que são aliciados por
quadrilhas especializadas em trafico internacional de pessoas que se
valem de brechas legais para a prática deste tipo de crime. Por que isto
ocorre? Quais os dispositivos legais que permitem esse tipo de conduta?
O Estatuto dos Refugiados: questões controversas
A lei 9474/97 regulamenta a condição jurídica do refugiado,
conceituando quais as situações que justificam a concessão do refúgio,
direitos e deveres dos refugiados, efeitos jurídicos decorrentes da
concessão do refúgio, bem como hipóteses de cessação, e até mesmo a
possibilidade de expulsão do refugiado. Além disso, o Estatuto institui
procedimentos específicos para o pedido de refúgio, incluindo a criação
do CONARE, o Comitê Nacional para os Refugiados, órgão colegiado
destinado a emitir parecer favorável ou não à concessão da condição de
refugiado.
Não obstante ao caráter aparentemente democrático do
procedimento para a concessão da condição de refugiado, o estatuto
jurídico inclui regras menos deliberativas, como por exemplo a
possibilidade do Ministro da Justiça, após deliberação do CONARE,
decidir em sentido contrário ao parecer do órgão, seja para conceder ou
não a condição de refúgio.
O caráter antidemocrático do estatuto
jurídico se tornou evidente no caso Cesare Battisti, quando o Ministro
da Justiça concedeu a condição de refugiado ao ex-militante de esquerda
italiano, contrariando decisão do CONARE[7]. Tal situação revelou não
apenas o caráter autoritário do estatuto, mas também a possibilidade de
manipulação das regras aplicáveis a refugiados para fins ideológicos. No
caso Battisti, por exemplo, a concessão da condição de refugiado
destinava-se aparentemente a produzir efeitos jurídicos que afetam o
trâmite do processo de extradição, tal como a suspenção do procedimento,
bem como a possiblidade de vedar a extradição fundamentada nos mesmos
motivos que justificaram a concessão do refúgio[8].
Isto é, a aplicação
da lei 9474/97 oferece a possibilidade de obstar, e até mesmo frustrar, a
concretização do pedido extradicional ao qualificar o crime sujeito à
extradição como crime politico, com claro intuito de antecipar ou
influenciar o controle de legalidade do Supremo Tribunal Federal. Tal
artifício se mostrou ineficaz no caso Battisti, pouco influenciando o
exame delibatório no caso concreto, de forma que as circunstâncias
politicas acabaram por repercutir justamente na interpretação da lei
6815/80, inovando ao estabelecer novo entendimento acerca das
competências da Corte Constitucional e do Presidente da República,
ampliando as competências do poder executivo ao mesmo tempo que ignora
as disposição legais que regulamentam o procedimento de extradição no
Estatuto do Estrangeiro[9].
Ademais, a opção pelo Estatuto dos
Refugiados no caso Battisti, revela a possibilidade de uma espécie de
“fórum shopping” entre as categorias de asilo politico e refúgio,
descaracterizando a essência que diferencia estes dois institutos, para
obter vantagens por meio de artifícios legais[10].
A polêmica referente ao caso Battisti, entretanto, situa-se na faixa
de discricionariedade conferida ao poder público, e ainda que
criticável, a concessão da condição de refugiado é lícita e encontra
fundamento nos dispositivos da própria lei e na legitimidade das
decisões do STF como guardião da Constituição Federal de 1988[11]. No
caso do tráfico internacional de pessoas, o recurso ao Estatuto dos
Refugiados extrapola os limites legais, servindo-se para encobertar a
prática de crimes por parte daqueles que utilizam a lei como artifício
para explorar o trabalho escravo daqueles que se encontram áreas de
conflito, em regra satisfazendo as condições objetivas para obter a
concessão da condição de refugiados. A fraude, neste caso, não é
atribuída ao refugiado vítima de tráfico internacional, mas aos
indivíduos responsáveis por escravizar tais indivíduos, não implicando,
necessariamente na perda da condição de refugiado.
O Tráfico Internacional de Pessoas: a lei a serviço do crime
A utilização do Estatuto do Refugiado para mascarar o tráfico
internacional de pessoas supostamente sujeitas à proteção do Estado
consiste numa inversão da sistemática de proteção de direitos humanos do
mesmo. Tais organizações criminosas recrutam nacionais de áreas de
conflitos justamente por conhecer não apenas os termos da lei, mas
também a jurisprudência que geralmente não demanda produção de prova
contundente sempre que se trate de indivíduos originários de zona de
conflito público e notório[12].
Assim, valem-se dos dispositivos da lei
para legalizar a situação destes indivíduos no país sem qualquer intuito
humanitário, apenas para obter lucros. Isto é, a facilidade em se obter
a condição de refugiado para aqueles indivíduos provenientes de áreas
de conflitos se torna uma moeda de troca para criminosos que oferecem
“suporte legal” em troca da liberdade, de forma que a permanência no
Brasil passa a ser uma espécie de contraprestação a ser cumprida por
meio de trabalho não remunerado ou sub-remunerado.
Tais indivíduos, vítimas de tráfico internacional de pessoas e
supostamente beneficiados pela sistemática do Estatuto dos Refugiados,
entretanto, encontram-se potencialmente protegidos pela condição
jurídica de refugiado. Isto é, diferente dos imigrantes ilegais que se
encontram na clandestinidade, e contam com pouca ou nenhuma
possibilidade de legalizar a situação no país[13], nos termos do
Estatuto do Estrangeiro, tais refugiados podem contar com a proteção do
Estado.
Isto é, caso seja confirmado os motivos que justificaram o
refúgio, estes não correm o risco de serem deportados ou expulsos,
podendo permanecer legalmente e trabalhar durante o período em que
permaneçam as condições que justificaram a concessão da condição de
refugiado. O principal obstáculo neste caso é o idioma e o estranhamento
em relação à cultura local, afegãos e paquistaneses, a exemplo das
vítimas resgatadas pela “operação Liberdade”, enfrentam dificuldade para
se inserirem no ambiente local, aprender o português, e adquirir
consciência jurídica, tornando-se alvos fáceis para organizações
criminosas que objetivem recrutar nacionais que se enquadram nos termos
do conceito do artigo 1 da lei 9474/97[14].
Conclusões
A correta implementação do Estatuto dos Refugiados demanda o
enfrentamento de possíveis utilizações deste para fins ilícitos. A
dinâmica da sistemática legal que permite a interação, nem sempre
equilibrada, entre regras humanitárias e o amplo poder discricionário do
poder público resulta em decisões de caráter político, a exemplo do
caso Battisti, situando-se em uma zona cinza, de difícil contestação à
luz dos dispositivos da lei 9474/97.
No caso de vítimas de tráfico
internacional de pessoas, ainda que o estrangeiro adquira a condição de
refugiado legalmente do ponto de vista do Estatuto, a prática do ilícito
é atribuída a terceiros que agem na ausência de repressão estatal,
beneficiando-se de conhecimentos jurídicos para evitar potencial
repressão policial associada ao tráfico de imigrantes ilegais. Tal
situação torna-se possível com a combinação, de um lado, de vítimas que
são incapazes de recorrerem às autoridades do Estado, e, por outro lado,
a ausência de fiscalização por parte dos poderes públicos que torna
viável a prática deste tipo de crime.
Trata-se de um efeito colateral negativo que demanda maior
envolvimento do CONARE e outros órgãos destinados a fiscalizar a
situação dos estrangeiros que se encontram legalmente em território
nacional com o objetivo de evitar tais manipulações do Estatuto do
Refugiado que comprometem não apenas os propósitos da lei 9474/97, mas
também o valor fundamental do constitucionalismo brasileiro, o principio
da dignidade da pessoa humana.
Notas:
[2] Na segunda metade dos anos 90, o governo FHC ratificou diversos
tratados há décadas adiados por governos anteriores, tais como o Tratado
de Não-Proliferação, o TNP, a Convenção de Nova Iorque relativa ao
Reconhecimento de Sentenças Arbitrais, e aderiu à jurisdição da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
[4] Resolução Normativa nº 77, de 29/01/2008 (Dispõe sobre critérios
para a concessão de visto temporário ou permanente, ou de autorização de
permanência, ao companheiro ou companheira, em união estável, sem
distinção de sexo).
[5] Resolução Normativa N° 84, 10/02/2009 (Disciplina a concessão de
autorização para fins de obtenção de visto permanente para investidor
estrangeiro – pessoa física)
[8] Nos termos do Artigo 33 da Lei 9474/97 “O reconhecimento da
condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de
extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”.
[9] Nos termos do Artigo 86 da Lei 6815/80 “Concedida a extradição,
será o fato comunicado através do Ministério das Relações Exteriores à
Missão Diplomática do Estado requerente que, no prazo de sessenta dias
da comunicação, deverá retirar o extraditando do território nacional”.
[10] Em regra, o refúgio é aplicado a casos em que a necessidade de
proteção atinge a um número elevado de pessoas, onde a perseguição tem
aspecto mais generalizado, fundamentado em motivos religiosos, raciais,
de nacionalidade, de grupo social e de opiniões políticas (artigo 1, lei
9474/97), sendo suficiente o fundado temor de perseguição, e geralmente
a proteção se opera fora do país; O asilo, por outro lado, é empregado
em casos de perseguição política individualizada, motivada pela
perseguição por crimes políticos, sendo necessário a prova de efetiva
perseguição, e geralmente a proteção pode se dar no território do país
estrangeiro (asilo territorial) ou na embaixada do país de destino
(asilo diplomático). Para discussão Waisberg, Tatiana. Manual de Direito
Internacional Privado. CreateSpace, 2012, p. 90-98.
[12] “É público e notório que o Estado de Israel é palco de conflitos
armados, sejam eles no plano interno como no plano internacional, de
modo que desnecessária a produção de outras provas, além dos elementos
já coligidos aos autos, os quais são suficientes para o justo deslinde
da controvérsia.” (AC 29163 PR 2007.70.00.029163-5, rel. JOÃO PEDRO
GEBRAN NETO, D.E. 02/12/2010)
[13] A Lei nº 11.961/2009 é dos raros casos em que se estabeleceu a
possibilidade concessão de residência provisória aos estrangeiros que,
tendo ingressado no Território Nacional até 1º de fevereiro de 2009 e
nele permanecessem em situação migratória irregular, desde que
requeressem o benefício junto ao Departamento de Polícia Federal, até o
dia 30 de dezembro do mesmo ano, conforme disciplinado em seu art. 4º.
[14] Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: I –
devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,
nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de
seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à
proteção de tal país; II – não tendo nacionalidade e estando fora do
país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira
regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso
anterior; III – devido a grave e generalizada violação de direitos
humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar
refúgio em outro país.
Tatiana Waisberg
Advogada e Mestre em Direito Internacional e Comunitário, PUC/MG
Pesquisadora do programa de estudos avançados em Direito
Universidade de Tel Aviv.