Inquieto e inventivo, ele era quase cinquentão quando cruzou o
Atlântico para criar o Grupo Digicon e fazer no sul o primeiro caixa
eletrônico
Por Eugênio EsberFechei os olhos algumas vezes e disse...
Pááá! Como tudo em minha vida é uma série de sôrte!”
“Sorte, apenas?”,
questiona o repórter, ao final de dois encontros com Joseph Elbling, o
canadense que girou pelo mundo até dar um basta na vida executiva e vir
empreender no sul do Brasil, em meados dos anos 1970. Joseph, ou Joe
(para os amigos), ou ainda o “Senhor Elbling”, como é tratado pelos
filhos, faz uma pausa. E responde citando Michael Bloomberg, que numa
entrevista recente foi instado a indicar atributos para o êxito. “Senhor
Bloomberg disse que é importante ter três coisas: estudar muito uma
coisa, aquilo que os italianos chamam de mestiere; não se poupar de
trabalho, trabalhar todo dia, todo dia, todo dia, pum-pum-pum (dá três
pancadinhas na mesa); e finalmente ter sorte”, diz Joseph, para em
seguida completar. “E eu teve muita sorte.”
Teve, sem dúvida.
Afinal, Joseph Elbling se safou de seis cirurgias delicadas desde que
enfrentou seu primeiro câncer. Aplica-se insulina todo dia para
controlar o diabetes. E ainda assim, aos 87 anos, tem disposição para
nadar um quilômetro todas as manhãs, nas águas cálidas de Aruba, pedaço
de paraíso no Caribe, onde foi morar com a esposa depois de convencido
pelos médicos e familiares de que precisava mudar de rotina. Não poderia
manter o ritmo trepidante de toda uma vida voltada para o trabalho e
especialmente para o desafio de unir mecânica e eletrônica – obsessão
que talvez seja a explicação mais evidente para sua sorte. Ou para o que
os italianos chamam de mestiere.
De um banheiro feminino e
mais algumas poucas peças que alugou na fábrica da alemã Wotan Máquinas
Operatrizes, em Gravataí, região metropolitana de Porto Alegre, Joseph
lançou as bases do Grupo Digicon, fundado em 1977, que hoje tem entre
seus clientes os grandes bancos brasileiros, além de fornecer
componentes com qualidade e precisão à altura das exigências da Embraer e
da Nasa. Seus dois filhos tocam os negócios. Peter, o Píder, como diz
Joseph, comanda a Digicon, que dá nome ao grupo e fabrica uma linha
diversificada de produtos – sistemas semafóricos, catracas eletrônicas,
parquímetros, componentes para aviação, etc. Thomas, o Tom, toca a
empresa caçula, Perto S/A, fundada em 1986 e hoje o carro-chefe dos
negócios do grupo. Especializada em ATMs (máquinas para sacar dinheiro),
a Perto faturou em 2013 R$ 241 milhões (80% da receita do grupo).
Apaixonado
pelo universo das máquinas, Joseph tem em sua casa, em Aruba, um torno,
uma fresa e alguns outros equipamentos que utilizou, 37 anos atrás,
para dar partida na Digicon. Ali, naquele canto que é um misto de
memorial e de oficina, ele se refugia algumas horas por dia para
“brincar um pouco”. Nada que surpreenda quem conhece sua biografia.
Quando, a pedido do repórter, começa a puxar da memória as suas andanças
como executivo por Inglaterra, Itália, Canadá e Estados Unidos,
empolga-se com passagens que têm a ver com a aventura do conhecimento
aplicado a engrenagens, mecanismos e comandos computadorizados. “Na
Inglaterra, que trabalho fantástico era”, deslumbra-se, ao se
transportar para meados dos anos 1950. Ele estava na BTH, e perdia a
noção das horas para sugar o que podia da experiência dos profissionais
da companhia onde, durante a II Guerra, foram testados os primeiros
motores dos aviões a jato. “Na BTH, eles deixavam a fábrica aberta todo o
tempo, e os engenheiros podiam entrar a qualquer hora do dia ou da
noite. Podiam usar todas as facilidades da fábrica, podiam fazer o que
queriam, à meia-noite, à uma da madrugada”, relembra Joseph, descrevendo
o que, na sua expressão de nostalgia, parece ter sido uma autêntica
Disneylândia para engenheiros jovens e inquietos como ele, então com 27
anos.
“Eu não me interessava dinheiro nem um pouco, you know?”,
conta Joseph, ao rememorar como foi parar na BTH. Era início dos anos
1950, e ele estava no Brasil trabalhando para a Light, no Rio de
Janeiro. Viera da Westinghouse americana, que fornecia geradores para a
Light. Gostou do país e especialmente do Rio, onde conheceu Maria
Jacqueline, a filha de um respeitado egiptólogo, Alberto Childe. “Eu
encontrei ela e alguma coisa imediatamente deu certo”, relembra, com um
sorriso embaraçado. Casou, cumpriu os três anos acertados com a Light,
mas bem antes do término do contrato, em 1955, já estava com a cabeça no
hemisfério norte. Havia lido sobre a descoberta do transístor, que
aposentaria as velhas válvulas. “Isso vai mudar o mundo”, apostou. Logo
depois, veio a notícia de que no MIT fora construída uma máquina
operatriz comandada por computador. “Pááá, eu pensei, isso é para mim.”
Saiu
então pela Europa e América do Norte à procura de oportunidade em uma
indústria de vanguarda que estivesse utilizando transístores no chão de
fábrica. Foi chamado para quatro entrevistas. Em todas, foi recusado por
não pertencer ao mundo da eletrônica. “Diziam: você gastou quatro anos
da sua vida fazendo grandes geradores... Agora, você não serve!”, conta,
parecendo se divertir com a peripécia. Surgiu, então, a entrevista na
BTH, em Londres. Era mais uma chance de ingressar no mundo da automação.
O recrutador perguntou quanto ele ganhava lá no Brasil. Quando soube,
foi seco: “Para engenheiros como você nós pagamos metade disso.” Joseph
foi mais direto ainda: “Aceito.”
Aproveitou bem o ambiente de
excelência técnica da BTH, mas percebeu que não havia ali a uma pegada
comercial suficiente para transformar aquelas soluções em um business.
“Comercialmente, eles não eram frente do mundo”, recorda Joseph. Outra
vez, sentiu que a cabeça já não estava mais onde ele pisava. Um amigo
que havia trabalhado para a Olivetti, o poderoso e diversificado
conglomerado industrial italiano que ficou famoso em todo o mundo pelas
máquinas de escrever e de calcular, fez a ponte para que Joseph chegasse
até o capo da companhia, Roberto Olivetti, em Milão. O emprego, tão
sonhado por qualquer jovem engenheiro, estava na mão. Mas então Joseph
resolveu apostar alto nas suas convicções e propôs uma condição,
correndo o risco de colocar tudo a perder. “Eu disse: Aceito, senhor
Olivetti, mas eu queria trabalhar é no controle de máquinas operatrizes,
que vocês não estão fazendo Queria lhe mostrar que controlar máquinas
vai ser muito, muito importante. Eu asseguro que um dia a diferença
entre o escritório e a oficina vai ficar menor, porque se vai poder
programar tudo. O senhor me deixa fazer isso aqui? Depois de três anos, o
senhor decide. Se o senhor decide que isso não ser bom para Olivetti,
eu trabalho mais três anos para o senhor, fazendo outra coisa aqui em
Milão.”
Uma oferta improvável, em um lugar igualmente
improvável – eles não estavam na sala do líder da Olivetti, e sim em um
bar. “E então?”, indaga o repórter. “Enton nós bebemos um campari com
soda”, responde, rindo à solta, como poucas vezes fez durante a
entrevista. O ok do “Senhor Olivetti” descortinou para Joseph o melhor
dos mundos: carta branca para introduzir a Olivetti no ramo da
fabricação de máquinas operatrizes, contando com os recursos de
engenharia, projetistas e uma ferramentaria que deslumbrariam o fundador
do grupo Digicon. “Fantástico, you know, uma companhia avançada,
fantástica”, rememora, olhar de garoto em parque de diversões. O período
na Itália reconectaria Joseph com o Brasil – mas isso só ficaria claro
para ele anos mais tarde. O fato é que passou mais de dez anos na
Olivetti e de lá só saiu, em 1969, atrás, novamente, de conhecimento.
Não para ele, mas para os dois garotos. Queria proporcionar a Peter e a
Tom – já fluentes em italiano – uma formação em escolas
norte-americanas. E novamente fez as malas para morar nos arredores de
Nova Iorque e trabalhar na empresa de Clair Farrand, um virtuose que nos
anos 1920 havia chefiado laboratórios da Warner Brothers e que, antes
de completar 20 anos de idade, ganhara seu primeiro milhão de dólares ao
inventar o primeiro alto-falante com bobina móvel. “Wow, 1 milhão de
dólares”, admira-se Joseph. “Ele era muito bom. Registrou em seu nome
250 patentes fortíssimas. Nós nos demos muito bem.”
Deram-se
tão bem que Farrand não só aceitou como se dispôs a apoiar a decisão que
Joseph iria tomar alguns anos depois. Seja pela esposa carioca, ou pela
saudade do país que conhecera no início da carreira, Joseph mirava a
luneta para o Brasil. As notícias de que o governo militar fazia uma
aposta na capacitação tecnológica da indústria brasileira o atraíram. Já
beirava os 50 anos, e sentia o desejo de ser dono do próprio negócio. O
que faria, exatamente, não estava claro. Mas onde, sim. “Como posso te
ajudar?”, prontificou-se Farrand, disposto a abrir a carteira para
investir no que quer que Joseph fosse fazer no Brasil. Dinheiro era o
menor dos problemas para Joseph, porque, a exemplo de Farrand, outros
amigos que ele havia feito na carreira executiva queriam entrar de
sócios. Apostavam, meio às cegas, no negócio que “Joe” tocaria no tal
país do futuro, no outro lado do oceano. A um executivo italiano da
Fiat, que queria assinar um cheque mais alto, Joseph agradeceu, mas
pediu menos. “Eu não precisava de muito cash. Eu tinha andado pelos
Estados Unidos olhando leilões de empresas falidas. Comprei torno,
comprei fresa, a preço muito bom. Foram dois contêineres que
descarreguei aqui no Brasil”, sorri Joseph. Havia outra razão para
levantar menos capital: como era seu primeiro negócio, queria estar no
controle.
No Brasil, fez muitos contatos, especialmente com
setores do governo que poderiam dar incentivos para projetos vinculados a
indústria de base tecnológica. Mas o apoio decisivo para formar o Grupo
Digicon ele não buscou. Simplesmente lhe caiu no colo. Ou no ouvido.
Estava em Nova Iorque quando recebeu uma ligação surpreendente. Era o
presidente da alemã Wotan, o primeiro grande cliente que ele havia
conquistado quando saiu pela Europa a vender as máquinas operatrizes que
começou a desenvolver na Fiat. A Wotan decidira instalar no Brasil, na
cidade de Gravataí (RS), um centro de produção de máquinas operatrizes. E
como também perambulava pelos gabinetes palacianos em busca de
incentivos, o chefão da Wotan soube, por acaso, que um certo canadense
estava garimpando oportunidades para se instalar no Brasil. Quando soube
que era Joseph, ligou para o amigo e fez uma proposta: que construísse
seu negócio junto à planta da Wotan, no sul. “Nos ofereceu um contrato
para fornecer armários elétricos para a Wotan por mais de dois anos”,
lembra. “Então era uma situação, you know, muito boa. Começamos com
dinheiro, com área física e com pedidos em mom”, diverte-se. O próprio
presidente da Wotan acabaria desembolsando algum dinheiro para compor o
capital inicial da firma de Joseph.
Como é comum em empresas
familiares, a Digicon prosperou ao estilo personalíssimo do seu
fundador. A linha diversificada de produtos, por exemplo, vem da postura
inquieta e criativa de Joseph, na opinião de um ex-funcionário da
companhia e hoje presidente da Altus Automação, Luiz Gerbase. “A
lembrança que tenho do Joseph é a daquele cara que não para nunca, que
está sempre vislumbrando novas possibilidades. Para você ter uma ideia,
os olhos dele faziam assim, ó...”, descreve Gerbase, movendo as pupilas
em várias direções. “Outra característica era a liderança”, sublinha
Gerbase. “De um jeito simpático, ele, com aquela inquietude criativa, e
com uma grande visão de mercado, juntava talentos complementares e
vendia suas ideias. Desafiava o pessoal a empreender. Perguntava: como é
que faz? Como é que faz? Como é que resolve?” Gerbase situa Joseph no
restrito grupo de visionários da indústria brasileira. “Ele trazia uma
base técnica excelente. Chegou ao Brasil determinado a juntar a mecânica
fina com a eletrônica. Não veio para cá fazer TV ou radinho de pilha”,
diz. Ex-executivo, com passagens por multinacionais como a Carrier, o
consultor de empresas Paulo Vellinho acentua um outro traço em Joseph.
Trata-se de um verticalista convicto, define. “Para produzir com
qualidade ele usa componentes de alta precisão que são todos feitos em
casa. A verticalização é tal que os itens adquiridos no mercado são
poucos – são só aqueles que não justifica produzir na própria fábrica,
como chapas de aço e tintas”, exemplifica Vellinho. Em linha com
Gerbase, destaca a ousadia de Joseph. “Ele sempre procurou produzir
equipamentos com tecnologia de ponta, jamais focou no trivial”, elogia.
Pode
parecer um depoimento com peso relativo. Afinal, aos 87 anos, mesma
idade de Joseph, Vellinho construiu uma longa relação com o fundador do
Grupo Digicon.
Mas um recuo até o início dos anos 1980 mostra que a
convicção de Vellinho é antiga, e que, por ela, arriscou o pescoço. Ele
era diretor, no Brasil, da britânica Thomas de La Rue, referência
mundial em impressão de papel-moeda. Os ingleses, que haviam fabricado o
primeiro caixa eletrônico do mundo, queriam produzir os equipamentos no
Brasil e Vellinho estava incumbido de encontrar um fabricante nacional
para licenciar o uso da tecnologia. Procurou grandes bancos. Ouviu um
não, obrigado. Os executivos dos bancos se perguntavam que instituição
financeira investiria US$ 30 mil por um equipamento que entregaria
dinheiro aos correntistas, quando tudo poderia continuar perfeitamente
como estava – o cliente indo ao banco fazer seu saque diretamente no
caixa, sendo atendido por um funcionário de salário modesto. Inviável
fazer esses equipamentos no Brasil, concluíram. Vellinho, então,
resolveu ligar para Joseph:
- Você está interessado em licenciar a tecnologia da Thomas de La Rue para fabricar cash dispenser no Brasil?
- Mas eu nem sei o que é isso, devolveu Joseph.
- Venha ao Rio e nós vamos mostrar a você, insistiu Vellinho.
O
que se passou, desde então, é uma longa história. Mas, em resumo, o
negócio que a grande banca não quis explodiu no mundo e particularmente
no Brasil, hoje o terceiro país com maior volume de ATMs, nome das
máquinas que entregam dinheiro nos caixas eletrônicos. E a Perto,
subsidiária criada por Joseph para se dedicar à fabricação desses
equipamentos, se tornou a unidade de maior faturamento do Grupo Digicon.
Sujeito de “sôrte” este Joseph.