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Imóveis em São Paulo: uma aplicação para estimular o setor
São Paulo - A lei das consequências indesejadas, popularizada pelo
sociólogo Robert Merton na década de 30, alerta para o baita risco de
intervir em sistemas complexos. Na maioria das vezes, aquilo que se
espera alcançar não acontece. Em compensação, pipocam problemas que
ninguém queria causar.
A Lei Seca, criada para coibir o consumo de álcool nos Estados Unidos
na década de 20, reforçou o poder do crime organizado naquele país. A
Lei das Consequências Indesejadas é particularmente profícua em países
povoados por burocratas que acreditam ter capacidade para resolver, com
sua cabeça iluminada, os mais variados problemas apenas com “vontade
política”. Um caso recente está criando uma confusão danada no sistema
financeiro brasileiro.
Tudo começou com a melhor das intenções. Há dez anos, o governo criou
as letras de crédito imobiliário (LCI) e agrícola (LCA), títulos de
renda fixa que tinham uma vantagem sobre os demais — seus compradores
não pagariam imposto de renda sobre o rendimento.
Com a isenção, o investidor aceitaria um rendimento um pouco menor
nesses títulos na comparação, por exemplo, com papéis da dívida pública.
Isso significaria um custo mais baixo para empréstimos
imobiliários e agrícolas, beneficiando compradores da casa própria e
agricultores. Nascia, ali, um monstrengo que, hoje, o governo parece não
ter ideia de como matar.
Para os investidores, rapidamente ficou óbvio que as LCIs e as LCAs
eram os melhores investimentos da praça. Para conseguir o mesmo
rendimento de uma letra que paga 96% do CDI, livre de impostos, o
investidor precisaria obter um rendimento mínimo de 110% do CDI num
fundo de renda fixa tributado para uma aplicação de dois anos.
Segundo levantamento da consultoria financeira TAG Investimentos, no
ano passado só 20% dos fundos multimercado e 11% dos fundos de renda
fixa tiveram rentabilidade
acima desse patamar. “É difícil ganhar dos investimentos isentos”,
afirma o professor William Eid, da Fundação Getulio Vargas. O resultado é
que, hoje, nada menos do que 350 bilhões de reais estão aplicados nos
dois títulos.
As letras fazem mais sucesso do que outros investimentos incentivados,
como certificados de recebíveis, porque, se o crédito na ponta não é
pago, quem arca com o prejuízo é o banco, e não o investidor. A garantia
de pagamento em caso de quebra do banco emissor é de até 250 000
reais.
Hoje, o governo gasta estimados 8 bilhões de reais por ano para, na
prática, subsidiar investidores. Isso porque não demorou para que
surgissem exageros. Segundo críticos do modelo, bancos médios começaram a
utilizar créditos com garantia em “imóveis” como lastro, ainda que as
operações de crédito não sejam exatamente imobiliárias.
Segundo a associação de entidades do mercado de capitais, Anbima, hoje
já há mais aplicações em investimentos isentos de imposto do que em
tributados: cerca de 1 trilhão de reais estão em investimentos isentos
(incluindo a poupança); e 580 bilhões, em produtos que pagam imposto de
renda.
Com isso, começou uma fuga crescente de recursos dos fundos. Só no ano
passado os investidores sacaram 65 bilhões de reais das carteiras de
renda fixa e multimercado. A indústria de fundos vem pressionando por
alguma equiparação ao benefício fiscal. Para se antecipar, os gestores
de fundos devem apresentar em março uma proposta ao governo de
restrições à liquidez dos investimentos isentos.
Para ter acesso ao benefício, o investidor teria de deixar o dinheiro
parado por um ano. Após uma intervenção do Banco Central em 2012, o
prazo mínimo passou a ser de dois meses — mas, no auge da festa, os
bancos chegavam a oferecer letras com liquidez diária desde o início do
contrato. “Os fundos não conseguem competir com isenção de impostos
aliada a liquidez”, afirma o vice-presidente da Anbima, Carlos Ambrósio.
Os fundos têm descontos semestrais de IR.
Mas as mudanças decorrentes no mercado financeiro são bem mais
profundas do que a fuga de dinheiro dos fundos. Com a demanda por LCIs e
LCAs, os bancos mudaram a forma de se financiar. Hoje, o volume de
letras já representa o dobro do total de CDBs, que, antes dos
investimentos isentos, eram o principal meio de financiamento dos
bancos.
O custo da captação é mais baixo usando as LCIs e as LCAs, e a
diferença é maior para os bancos médios. Bancos que pagavam até 110% do
CDI (taxa básica de juro) para emitir seus CDBs conseguem pagar hoje
menos de 100% numa LCI, por exemplo. Alguns bancos, como o Indusval, que
tem uma divisão atuante em crédito agrícola, e o Intermedium,
concentrado em imobiliário, têm hoje mais de 30% de sua captação total
nesses instrumentos.
“As letras reduziram o custo de captação dos bancos médios, junto com o
benefício ao crédito agrícola e imobiliário”, afirma Ricardo Gelbaum,
diretor do Daycoval. A mudança abrangeu bancos de todos os portes, o que
torna a situação mais complexa. Os públicos Banco do Brasil e Caixa
Econômica Federal são os maiores emissores de letras do mercado, com 200
bilhões emitidos.
A captação de recursos com as letras também cresce muito rapidamente
nos grandes bancos privados. No Bradesco, o total emitido subiu 42% no
último ano, para 27 bilhões de reais. Mudar as regras das letras de
crédito, portanto, é hoje um nó especialmente difícil de desatar — já
que atingiria o modelo de financiamento dos bancos brasileiros.
Solução complexa
Cabe ao ministro da Fazenda, Joaquim Levy, desfazer a rede de
consequências indesejadas criada pelos investimentos isentos — isso
enquanto toca o já nada simples processo de ajuste fiscal. Em janeiro,
Levy indicou que é necessário “harmonizar” a tributação dos
investimentos, o que foi visto como senha para mudanças nas letras de
crédito. Mas, de lá para cá, nada foi anunciado.
É fato que nos últimos anos não faltaram recursos para o crédito
imobiliário e agrícola — embora, claro, nem todo aumento possa ser
atribuído à isenção. O crédito agrícola dobrou, e o imobiliário mais que
triplicou em quatro anos. Os defensores do modelo atual alegam que,
caso o governo volte atrás, acabará tendo de subsidiar o crédito à moda
antiga, por meio dos bancos públicos.
No mercado financeiro, mesmo os prejudicados pelo possível fim da
isenção esperam que o governo decida sobre o assunto — e,
principalmente, pare de mexer nas regras dos investimentos com tanta
frequência. “O problema é essa incerteza, montar toda a estrutura para
nos adaptar às regras e ter de voltar atrás”, diz o acionista de um
banco médio.
A grande dúvida a responder é se o mercado imobiliário, o agronegócio,
os investidores e os bancos devem mesmo receber os 8 bilhões de reais de
subsídios anuais — número que cresce ano a ano. Ainda: se direcionar
parcela tão grande da poupança nacional a duas letras de crédito faz ou
não sentido num país que precisa desesperadamente investir em
infraestrutura, por exemplo. Esse é o tamanho da confusão que as tais
aplicações de três letras criaram.