quarta-feira, 11 de março de 2015

Regras para investimentos em LCI e LCA podem mudar


filipefrazao/Thinkstock
São Paulo
Imóveis em São Paulo: uma aplicação para estimular o setor 




 São Paulo - A lei das consequências indesejadas, popularizada pelo sociólogo Robert Merton na década de 30, alerta para o baita risco de intervir em sistemas complexos. Na maioria das vezes, aquilo que se espera alcançar não acontece. Em compensação, pipocam problemas que ninguém queria causar. 

A Lei Seca, criada para coibir o consumo de álcool nos Estados Unidos na década de 20, reforçou o poder do crime organizado naquele país. A Lei das Consequências Indesejadas é particularmente profícua em países povoados por burocratas que acreditam ter capacidade para resolver, com sua cabeça iluminada, os mais variados problemas apenas com “vontade política”. Um caso recente está criando uma confusão danada no sistema financeiro brasileiro.

Tudo começou com a melhor das intenções. Há dez anos, o governo criou as letras de crédito imobiliário (LCI) e agrícola (LCA), títulos de renda fixa que tinham uma vantagem sobre os demais — seus compradores não pagariam imposto de renda sobre o rendimento.

Com a isenção, o investidor aceitaria um rendimento um pouco menor nesses títulos na comparação, por exemplo, com papéis da dívida pública. Isso significaria um custo mais baixo para empréstimos imobiliários e agrícolas, beneficiando compradores da casa própria e agricultores. Nascia, ali, um monstrengo que, hoje, o governo parece não ter ideia de como matar.

Para os investidores, rapidamente ficou óbvio que as LCIs e as LCAs eram os melhores investimentos da praça. Para conseguir o mesmo rendimento de uma letra que paga 96% do CDI, livre de impostos, o investidor precisaria obter um rendimento mínimo de 110% do CDI num fundo de renda fixa tributado para uma aplicação de dois anos.

Segundo levantamento da consultoria financeira TAG Investimentos, no ano passado só 20% dos fundos multimercado e 11% dos fundos de renda fixa tiveram rentabilidade acima desse patamar. “É difícil ganhar dos investimentos isentos”, afirma o professor William Eid, da Fundação Getulio Vargas. O resultado é que, hoje, nada menos do que 350 bilhões de reais estão aplicados nos dois títulos.

As letras fazem mais sucesso do que outros investimentos incentivados, como certificados de recebíveis, porque­, se o crédito na ponta não é pago, quem arca com o prejuízo é o banco, e não o investidor. A garantia de pagamento em caso de quebra do banco emissor é de até 250 000 ­reais.

Hoje, o governo gasta estimados 8 bilhões de reais por ano para, na prática, subsidiar investidores. Isso porque não demorou para que surgissem exageros. Segundo críticos do modelo, bancos médios começaram a utilizar créditos com garantia em “imóveis” como lastro, ainda que as operações de crédito não sejam exatamente imobiliárias.

Segundo a associação de entidades do mercado de capitais, Anbima, hoje já há mais aplicações em investimentos isentos de imposto do que em tributados: cerca de 1 trilhão de reais estão em investimentos isentos (incluindo a poupança); e 580 bilhões, em produtos que pagam imposto de renda.

Com isso, começou uma fuga crescente de recursos dos fundos. Só no ano passado os investidores sacaram 65 bilhões de reais das carteiras de renda fixa e multimercado. A indústria de fundos vem pressionando por alguma equiparação ao benefício fiscal. Para se antecipar, os gestores de fundos devem apresentar em março uma proposta ao governo de restrições à liquidez dos investimentos isentos.

Para ter acesso ao benefício, o investidor teria de deixar o dinheiro parado por um ano. Após uma intervenção do Banco Central em 2012, o prazo mínimo passou a ser de dois meses — mas, no auge da festa, os bancos chegavam a oferecer letras com liquidez diária desde o início do contrato. “Os fundos não conseguem competir com isenção de impostos aliada a liquidez”, afirma o vice-presidente da Anbima, Carlos Ambrósio. Os fundos têm descontos semestrais de IR.

Mas as mudanças decorrentes no mercado financeiro são bem mais profundas do que a fuga de dinheiro dos fundos. Com a demanda por LCIs e LCAs, os bancos mudaram a forma de se financiar. Hoje, o volume de letras já representa o dobro do total de CDBs, que, antes dos investimentos isentos, eram o principal meio de financiamento dos bancos.

O custo da captação é mais baixo usando as LCIs e as LCAs, e a diferença é maior para os bancos médios. Bancos que pagavam até 110% do CDI (taxa básica de juro) para emitir seus CDBs conseguem pagar hoje menos de 100% numa LCI, por exemplo. Alguns bancos, como o Indusval, que tem uma divisão atuante em crédito agrícola, e o Intermedium, concentrado em imobiliário, têm hoje mais de 30% de sua captação total nesses instrumentos.

“As letras reduziram o custo de captação dos bancos médios, junto com o benefício ao crédito agrícola e imobiliário”, afirma Ricardo Gelbaum, diretor do Daycoval. A mudança abrangeu bancos de todos os portes, o que torna a situa­ção mais complexa. Os públicos Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal são os maiores emissores de letras do mercado, com 200 bilhões emitidos.

A captação de recursos com as letras também cresce muito rapidamente nos grandes bancos privados. No Bradesco, o total emitido subiu 42% no último ano, para 27 bilhões de reais. Mudar as regras das letras de crédito, portanto, é hoje um nó especialmente difícil de desatar — já que atingiria o modelo de financiamento dos bancos brasileiros.


Solução complexa


Cabe ao ministro da Fazenda, Joaquim Levy, desfazer a rede de consequências indesejadas criada pelos investimentos isentos — isso enquanto toca o já nada simples processo de ajuste fiscal. Em janeiro, Levy indicou que é necessário “harmonizar” a tributação dos investimentos, o que foi visto como senha para mudanças nas letras de crédito. Mas, de lá para cá, nada foi anunciado.

É fato que nos últimos anos não faltaram recursos para o crédito imobiliário e agrícola — embora, claro, nem todo aumento possa ser atribuído à isenção. O crédito agrícola dobrou, e o imobiliário mais que triplicou em quatro anos. Os defensores do modelo atual alegam que, caso o governo volte atrás, acabará tendo de subsidiar o crédito à moda antiga, por meio dos bancos públicos.

No mercado financeiro, mesmo os prejudicados pelo possível fim da isenção esperam que o governo decida sobre o assunto — e, principalmente, pare de mexer nas regras dos investimentos com tanta frequên­cia. “O problema é essa incerteza, montar toda a estrutura para nos adaptar às regras e ter de voltar atrás”, diz o acionista de um banco médio.

A grande dúvida a responder é se o mercado imobiliário, o agronegócio, os investidores e os bancos devem mesmo receber os 8 bilhões de reais de subsídios anuais — número que cresce ano a ano. Ainda: se direcionar parcela tão grande da poupança nacional a duas letras de crédito faz ou não sentido num país que precisa desesperadamente investir em infraestrutura, por exemplo. Esse é o tamanho da confusão que as tais aplicações de três letras criaram.

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