Alexandre Battibugli / EXAME
Consumo de roupas: no setor têxtil, a substituição de itens importados já começou
São Paulo - Um dos símbolos dos “anos dourados” que o Brasil viveu na
década passada foi o real forte. No auge de nossa festa, em outubro de
2010, precisávamos de apenas 1,65 real para comprar 1 dólar — então
enfraquecido pela crise financeira de dois anos antes. Aquela cotação dava a sensação de que estávamos perto da riqueza.
Viajar para o exterior e consumir produtos importados eram escolhas ao
alcance de um número de consumidores nunca antes visto na história deste
país. Com esse passado recente tão vivo na memória, os brasileiros
agora experimentam a sensação inversa: a de que nossas opções estão
minguando na mesma medida que a moeda nacional rola ladeira abaixo.
No fechamento desta edição, em 9 de março, a cotação do dólar
em relação ao real havia chegado a 3,13. Ou seja, quase a metade do
poder de compra que nossa moeda tinha no ápice virou pó. E, dizem os
analistas em uníssono, a desvalorização não só veio para ficar como
tende a prosseguir nos próximos anos. “O país tentou ir além do que era
possível e agora precisa fazer um ajuste à realidade via câmbio”, diz
Marcelo Kaiath, diretor de renda fixa e variável do banco Credit
Suisse.
O galope do dólar neste início de ano — foram 18% de valorização nos
primeiros 68 dias de 2015 — pode dar a impressão de que o ajuste começou
há pouco. Na verdade, a moeda americana vem se apreciando frente ao
real desde 2011. Há por trás desse movimento diversos fatores.
Um deles é mundial: a economia americana entrou em recuperação e, já há
algum tempo, ensaia um aumento de juros, o que provoca a atração de
dinheiro para os Estados Unidos e valoriza o dólar. As outras razões são
locais.
Desde que a presidente Dilma Rousseff
assumiu o primeiro mandato, a economia brasileira só perde fôlego.
Interferências em diversos setores e contas públicas em deterioração
tornaram-se constantes.
Até o ano passado, o governo atuava para conter a
oscilação da moeda: desde maio de 2013, o Banco Central (BC) injetou
115 bilhões de dólares no mercado para evitar a depreciação do real.
Depois que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, anunciou que o BC não
intervirá mais para segurar o dólar, o câmbio voltou a ser flutuante de
verdade — e, consequentemente, a refletir mais o dia a dia do país.
Assim é que fatos como as desavenças de Dilma com o Congresso passaram a
pressionar diretamente as cotações, somando-se a um quadro de
incertezas que inclui o petrolão, o risco de racionamento de energia e a
sucessão de indicadores negativos da economia
que vêm à tona. O resultado é que nenhuma moeda no mundo perdeu tanto
valor quanto o real — a segunda colocada, a lira turca, teve depreciação
de 5% no ano.
Nada indica, por ora, que o cenário mudará tão cedo. Por isso, as
projeções mais conservadoras, como a do banco Santander, apontam o dólar
a 3,40 reais em 2018. A consultoria Tendências vai além: dólar a 3,61
em 2018 e a 3,77 em 2019. Mas a mudança deve ser vista como um “choque
de realidade”.
Nos últimos anos, o Brasil gastou além da conta e acumulou uma série
de problemas insustentáveis. Para citar apenas dois: os déficits em
transações correntes e nas contas públicas. O primeiro é o saldo das
operações em dólar do Brasil com o mundo (não entram nessa conta
investimentos estrangeiros diretos).
Depois de saldos positivos de 2003 a 2007, o indicador, puxado pelo
aumento das importações, entrou no vermelho. No ano passado, o déficit
chegou a 4,2% do PIB. O limite aceito para um país em desenvolvimento é
4%. Em dólares, o déficit foi de 90 bilhões — o terceiro maior do mundo,
atrás apenas de Estados Unidos e Reino Unido.
O buraco nas contas públicas, que em 2014 superou os 6% do PIB (pior
que o da combalida Grécia), é outro dado insustentável. A consultoria
MB Associados criou um índice de vulnerabilidade, que mede o grau de
exposição da moeda a turbulências domésticas e internacionais. Numa
lista de 19 países emergentes, o Brasil só está à frente da Venezuela.
A desvalorização do real tem diversos efeitos e o mais visível é o
aumento da fogueira da inflação. O economista e consultor Alexandre
Schwartsman calcula que uma alta de 10% no dólar pode adicionar até 0,7
ponto percentual ao índice oficial de preços, que terminou fevereiro em
7,7% no acumulado dos últimos 12 meses.
A inflação força o Banco Central a elevar a taxa básica de juro, que já
está em 12,75%, apesar do cenário recessivo. Inflação e juros em alta
tiram poder aquisitivo da população. Não é por acaso que o consumo
cresce mais em períodos de real valorizado do que nos momentos opostos.
Um estudo realizado pela consultoria Tendências mostra que, de 2004 a
2013, quando o dólar estava mais barato, a renda das famílias cresceu à
média anual de 5,5%; e as vendas no varejo, a 8%. Nos próximos anos, com
o dólar mais caro, o rendimento familiar deve crescer em média 1,6%; e o
varejo, 2,2%. Em outras palavras, a festa do consumo ficou no passado.
Parte da influência do dólar na inflação se dá pelo encarecimento de
itens importados que não podem ser substituídos por similares nacionais.
O grupo francês Saint Gobain, que atua no Brasil nos ramos de
fabricação e varejo de material de construção, estuda o repasse da alta
dos insumos importados.
Eles chegam a representar 30% do custo de alguns produtos. “Como a
inflação sobe mais depressa do que a possibilidade de cortar custos,
precisaremos aumentar os preços”, diz Thierry Fournier, presidente do
Saint Gobain. O aumento, ao longo de 2015, deve ficar entre 5% e 6%.
Efeito vantajoso
Já as indústrias que exportam esperam um efeito benéfico com a
desvalorização do real. “Acreditamos que o dólar vá ficar acima de 3
reais, o que nos dá uma vantagem competitiva”, diz Luís Gustavo Iensen,
diretor internacional da fabricante de motores elétricos WEG, de Santa
Catarina.
Iensen projeta que, ao se confirmar o cenário, a fatia das exportações
no faturamento da WEG poderá aumentar 10 pontos e chegar a 60% nos
próximos cinco anos. Outro efeito vantajoso para a indústria é a chance
de substituir importações. Boa parte do aumento da demanda por bens de
consumo na última década foi atendida por produtos vindos do exterior.
“O período de apreciação cambial coincide com a virada na balança
comercial da indústria: de um superávit de 6 bilhões de dólares, em
2006, para um déficit de 109 bilhões, no ano passado”, disse Armando
Monteiro, ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em
entrevista a EXAME.
No setor têxtil, que fechou o ano passado com déficit de 6 bilhões de
dólares — 94% dele causado por artigos asiáticos —, as mudanças já
começaram. Confecções nacionais estão ampliando as vendas para
substituir roupas que as lojas importavam. A Associação Brasileira da
Indústria Têxtil e de Confecção estima queda de 6% nas importações e
aumento de 5% nas exportações neste ano.
Esse movimento não deverá reverter o quadro geral, que aponta uma queda
da produção de 0,5% em 2015. “A saída para amenizar a retração no
mercado interno é exportar mais, e o câmbio atual oferece oportunidades
para isso”, diz Rafael Cervone, presidente da associação e sócio da
Technotex, confecção do interior paulista.
Mas não dá para esperar um boom de exportações. A recente valorização
do dólar foi em boa medida corroída pela inflação, que se manteve sempre
perto do teto da meta de 6,5% nos últimos anos. Com ajustes calculados
pela inflação, o real ainda é considerado valorizado.
Nas contas de Nelson Marconi, professor de economia da Fundação Getulio
Vargas, a preços de 2015, o dólar se manteve acima de 4 reais entre
1999 e 2004 — o pico foi de 5,86 em 2002. O patamar atual está,
portanto, bem abaixo do que atingiu naquele período. “A desvalorização
do real poderia ser maior se a inflação fosse menor”, diz Marconi. De
todos os ângulos que se olhe, há ainda muito ajuste pela frente.
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