Governo muda regras do programa ‘Mais Médicos’ para aproveitar profissionais qualificados.
A vida de K., 45 anos, foi convertida a uma gestão de privações. Ele,
a mulher e os dois filhos moram, de favor, em uma casa abandonada na
Região Serrana do Rio de Janeiro. Há oito meses, K. empreendeu uma fuga
cinematográfica da Síria, em guerra, até o Brasil. Para trás, além de
dois irmãos, ficaram a casa espaçosa da família, os planos anuais de
viagem de férias à Europa e a bem-sucedida carreira de K.
— Me arruma alguma coisa que eu possa fazer para ser útil — costuma
pedir, em árabe, ao irmão George, que cresceu no Brasil. K. é médico,
mas passa os dias ajudando a carregar material de construção no comércio
do irmão.
O destino de K., no entanto, pode estar prestes a mudar. O governo
federal acaba de alterar as regras do programa Mais Médicos para
permitir que refugiados possam se inscrever e concorrer aos postos de
trabalho em todo o Brasil, cujo salário chega a R$10,5 mil.
Em termos práticos, essa é a única chance de K. e outros médicos
refugiados voltarem a exercer a profissão. Se fosse tentar revalidar o
diploma, o que não é necessário para o programa, o processo levaria
cerca de cinco anos. E poderia não dar certo. De acordo com o Ministério
da Justiça, 90% dos refugiados no país não conseguem fazer valer o
diploma por aqui.
— Muitos possuem alto nível de escolaridade e experiência de trabalho
em áreas de alta qualificação, mas dificilmente conseguem emprego na
mesma área justamente pelo problema da documentação — afirma Luiz
Godinho, oficial de informação do Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados.
A sensação de inutilidade somada à dificuldade em reconstruir a vida
têm deixado K. deprimido — sentimentos que ele divide com pelo menos
outros 15 médicos refugiados no país, entre sírios, paquistaneses,
colombianos, congoleses e afegãos. Todos eles já haviam questionado o
programa Mais Médicos administrativamente e judicialmente. Sem opção,
passavam os dias trabalhando em confecções, na construção civil ou,
pior, desempregados.
Falta de médicos
— É lamentável porque na nossa cidade há muita falta de médicos em
hospitais públicos e nós temos um médico experiente subutilizado em casa
— diz George, irmão de K., que preferiu não ter o nome divulgado nem o
município onde mora por medo de ser localizado por integrantes do Estado
Islâmico. K. é cristão e ex-funcionário do governo sírio. Antes de
chegar ao Brasil, testemunhou pessoas com seu perfil serem crucificadas
pelos jihadistas.
A mudança de regras para que o Brasil possa absorver a mão de obra
internacional tornou-se urgente, já que o país tem sido constantemente
procurado por refugiados. Entre 2012 e 2014, o número de pessoas que
receberam refúgio no país quadruplicou: são mais de oito mil. E a
nacionalidade de quem chega mudou: se antes, a maioria era de africanos,
hoje, os sírios são o maior grupo, com mais da metade dos refúgios
concedidos no Brasil.
— O Estado Islâmico tem forçado muita gente qualificada ao desterro.
Ainda não sabemos quantos deles são médicos. Nunca houve muita
preocupação em conhecer a formação. Até hoje elas sempre estiveram
fadadas a um destino de trabalho braçal — explica João Amorim, professor
de Direito Internacional da Unifesp.
Para garantir a inscrição dos refugiados no Mais Médicos, duas regras
tiveram que ser alteradas. A primeira era a que só seriam aceitos pelo
programa profissionais de países que possuíssem mais de 1,8 médico a
cada mil habitantes. A regra existia para garantir que o Brasil não
aprofundasse a escassez de profissionais de saúde em nações onde já há
falta deles.
— É claro que o Afeganistão, a Colômbia e a Síria não atendem a esse
critério, mas o Brasil não está “roubando” médicos de ninguém porque
esses profissionais não podiam exercer sua profissão ali, estavam em
risco de vida — explica o coordenador para assuntos de refugiados do
Ministério da Justiça, Virginius Franca.
A segunda mudança foi na flexibilização da burocracia. Documentos
quase banais para a maior parte dos candidatos, como diploma e atestado
criminal, eram inacessíveis a refugiados.
CFM contra
A médica colombiana Lorena Gúzman, de 41 anos, sabe a diferença que a
mudança pode trazer. Mestre em Gestão Pública, ela denunciou
contaminação por metais em um município colombiano. Passou a ser
perseguida. Até o ônibus escolar de seu filho teve que ser escoltado
antes que ela resolvesse deixar o país. Refugiada há mais de um ano no
Brasil, Lorena tentou se inscrever no Mais Médicos no ano passado e
acabou recusada:
— As pessoas mal entendem o que é ser refugiado, tenho que andar com a
lei embaixo do braço. Dependo da Igreja de Santana do Livramento (RS)
para sobreviver. Vivo de doações, moro de favor. O futuro me parecia uma
possibilidade fechada. Agora tenho esperanças de poder servir como
médica no país que me acolheu — afirma Lorena.
A flexibilização da burocracia gerou nova rodada de críticas ao
programa por parte do Conselho Federal de Medicina (CFM). Segundo o
presidente do órgão, Carlos Vidal, é impossível garantir que a população
não estará em risco ao ser atendida por profissionais do Mais Médicos:
— Continuamos defendendo que os estrangeiros, refugiados ou não,
sejam submetidos ao Revalida, o teste para verificar suas habilidades. O
programa não pede testes, o que é um equívoco.
O CFM estuda entrar com ação judicial para impedir que refugiados
possam ser incorporados pelo programa. Procurado pelo GLOBO, o
Ministério da Saúde afirmou que um comitê especial avaliará a inscrição
deles caso a caso.
— Esses estrangeiros apenas terão mais chances de provar sua
qualificação. Não existe risco de um refugiado que não seja médico
conseguir se fazer passar por médico — garantiu Hêider Pinto, secretário
de Gestão de Trabalho e Educação do Ministério da Saúde.
Mariana Sanches
(O Globo)
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