Depois
de 18 anos da edição da Emenda Constitucional 19/98, entrou em vigor,
no último dia 30 de junho, o Estatuto Jurídico das Empresas Estatais e
suas subsidiárias (Lei 13.303/16), com o objetivo de regulamentar o
artigo 173, parágrafo 1º da Constituição República (com a redação dada
pela EC 19/98).
Certamente, a nova lei suscitará variada sorte de
controvérsias, a começar pelas disposições de Direito intertemporal
previstas no artigo 91, caput e parágrafo 3º, que terminam por garantir aplicação no período de 24 meses (para mim, de até
24 meses) a preceitos de Direito Societário (por exemplo, Lei 6.404/76)
e de licitações e contratos (por exemplo, Lei 8.666/93 e RDC) já
vigentes ao tempo de sua publicação (esse assunto é tema para outro
artigo).
Entre os aspectos essenciais para a compreensão do
Estatuto (Lei 13.303/16) destacam-se, no pertinente aos contratos, pelo
menos dois pontos: a) a diminuição da unilateralidade nas relações
travadas pelas empresas estatais, com a consequente proeminência do
aspecto bilateral das relações jurídico-contratuais; e b) a valorização
da autonomia das vontades, com recursos à regência dessas relações por
preceitos próprios do Direito Privado (artigo 68).
Dita perspectiva corrobora, em boa medida, com o artigo que publiquei neste mesmo espaço denominado Regime jurídico aplicável às administrações públicas é híbrido,
no qual sustentei que a maior ou menor incidência das regras de Direito
Público ou de Direito Privado (e vice-versa) nas relações travadas
pelas administrações públicas dependeria dos seguintes elementos:
a)
da pessoa jurídica (sujeito) que estivesse a exercer a atividade
administrativa, fosse ela pertencente ou não à administração pública;
b) do tipo de atividade administrativa desenvolvida (regulação, polícia, serviços públicos, atividade econômica, fomento);
c) do instrumento jurídico utilizado para efetivar a ação administrativa (ato, contrato);
d) da finalidade perseguida pela atividade administrativa (atendimento às comodidades, geração de resultados econômicos);
e) dos direitos e interesses que estivessem legitimamente envolvidos nessa persecução.
A
Lei 13.303/16 prestigiou o aspecto subjetivo da administração pública
(a) — ela se aplica à generalidade das empresas estatais, suas
subsidiárias e controladas exclusivas — sem distinguir o tipo de
atividade a que se dedicam (serviço público, atividade econômicas,
planejamento, fomento, fiscalização (b)).
Além disso, o novo
estatuto apostou na bilateralidade típica dos contratos em geral (c),
como mecanismo apto à regência das relações jurídicas empreendidas pelas
empresas estatais com o mercado, apartando, no particular, a Lei
8.666/93, que sempre acreditou no uso das prerrogativas unilaterais da
administração pública (ver, a propósito, o artigo 58 da Lei 8.666/93)
como mecanismo único capaz de garantir o atingimento do genuíno
interesse público.
Com efeito, a confirmação deste
“incremento contratual” na Lei 13.303/16 vem a reboque, por exemplo, da
leitura dos artigos 72 e 81, caput, os quais subordinam todas
as alterações contratuais no âmbito das empresas estatais à dependência
da formalização de acordo entre as partes, verbis:
Art. 72. Os contratos regidos por esta Lei somente poderão ser alterados por acordo entre as partes, vedando-se ajuste que resulte em violação da obrigação de licitar.
Art.
81. Os contratos celebrados nos regimes previstos nos incisos I a V do
art. 43 contarão com cláusula que estabeleça a possibilidade de
alteração, por acordo entre as partes, nos seguintes casos:
Tolere-se
repetir, mas a opção do legislador valoriza o aspecto consensual em
detrimento das prerrogativas típicas do tradicional regime jurídico
administrativo valorizado pela Lei 8.666/93.
Como decorrência
disso, sob a égide do novo estatuto, não mais terão lugar os acréscimos e
supressões unilaterais dos objetos contratuais, tornando-se facultativa
a aceitação, pelo particular, das alterações quantitativas e
qualitativas propostas pela empresa estatal ou subsidiária, respeitados
sempre (e quando for o caso) os limites legais (conferir o parágrafo 1º
do artigo 81 da Lei 13.303/16).
Também dependerão de acordo entre
as partes as alterações advindas de outros fatores da administração,
fatos do príncipe, teoria da imprevisão, força maior, caso fortuito,
tudo conforme dispuser a matriz de riscos (artigo 42, X e artigo 42,
parágrafo 1º, I e “d” e parágrafo 3º, artigo 69, X), estando “vedada a
celebração de aditivos decorrentes de eventos supervenientes alocados,
na matriz de riscos, como de responsabilidade da contratada” (parágrafo
8º do artigo 81 da Lei 13.303/16).
A matriz de riscos é a cláusula
contratual definidora de riscos e responsabilidades entre as partes e
caracterizadora do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato,
em termos de ônus financeiro decorrente de eventos supervenientes à
contratação (artigo 42, X).
A presença dessa matriz é fundamental e
imprescindível para as contratações feitas sob os regimes de execução
da contratação integrada e da contratação semi-integrada (artigo 42, X e
artigo 42, parágrafo 1º, I e “d” e parágrafo 3º), sendo mesmo
defensável sustentar sua utilização generalizada para todas as
contratações regidas pelo estatuto das empresas estatais, consoante
previsão do artigo 69, X da Lei 13.303/16.
A despeito do
prenúncio de novos “tempos contratuais”, serão grandes os impactos para
as áreas de planejamento, licitação, gestão e fiscalização contratual
nas empresas estatais e subsidiárias, mercê da mudança de concepção
subjacente à Lei 13.303/16. O desafio reside em conseguir superar os
desejos e a tendência de se realizar uma interpretação vintage ou retro da
nova lei, que termine por ressuscitar ou repaginar orientações
construídas e sedimentadas sob os auspícios do regime de prerrogativas
da Lei 8.666/93.
Luciano Ferraz é advogado e professor associado de Direito Administrativo na UFMG.