Em
entrevista à DW, climatologista Carlos Nobre aborda o desafio de
preparar cidades brasileiras para eventos climáticos extremos, e estima
que 3 milhões de pessoas teriam que ser retiradas de áreas de
risco.Enquanto pessoas ilhadas ainda aguardam resgate e mais de 300
municípios do Rio Grande do Sul nem conseguem calcular o prejuízo
causado pelas enchentes, cientistas alertam que eventos com chuvas
extremas chegaram para ficar.
O que chama a atenção, diz Carlos
Nobre, climatologista brasileiro que fez carreira no Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe), é que essas tragédias estão acontecendo
mais cedo do que se previa. Em 2007, o quarto relatório do Painel
Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU previu que esses
fenômenos se tornariam recorrentes por volta de 2030 ou 2040.
A
antecipação se deve ao aumento rápido da temperatura média do planeta:
em 2023, o recorde de aquecimento foi batido, com 1,5° C a mais que no
período pré-industrial. Em 2024, o calor acima da média continua.
“Os
modelos indicavam que, quando a gente atingisse 1,5°C, já deveríamos
esperar fenômenos muito extremos, de chuvas muito intensas e
prolongadas, como vimos no Rio Grande do Sul”, afirma Nobre.
O
desafio, aponta o cientista, será adaptar as cidades e retirar cerca de 3
milhões de brasileiros que vivem em áreas de risco. “Aumentar a
resiliência e ter uma política de adaptação às mudanças climáticas é um
investimento de centenas de bilhões de reais”, diz ele em entrevista à
DW.
DW: As tragédias recentes que vimos no Brasil, como a enchente
em Santa Catarina no fim de 2023, a seca extrema na Amazônia e a
catástrofe recente do Rio Grande do Sul estão de alguma forma
interconectadas? Quais relações a ciência consegue traçar?
Carlos
Nobre: Essas tragédias têm uma interconexão, sem dúvida. Começando pela
bacia do rio Taquari, no centro-norte do Rio Grande do Sul: ela
registrou o maior recorde de chuvas e inundações em setembro de 2023.
Ali, houve uma relação direta com o El Niño, que estava se
desenvolvendo, provocado pelo aquecimento acima do normal no Oceano
Pacífico Equatorial.
O El Niño induz uma seca na Amazônia e um
aumento da velocidade do jato subtropical, que passa sobre o Uruguai,
Paraguai, centro-leste da Argentina e Sul do Brasil. Quando o vento
desse jato fica mais forte, a uma altura de 10 a 15 quilômetros, ele faz
com que as frentes frias parem ali. Chove muito. O El Niño faz com que
esse jato subtropical forte induza chuvas muito fortes no Sul do país.
Essa
chuva extrema que vimos semana passada no Rio Grande do Sul, que chegou
até o sul de Santa Catarina, é um fenômeno meteorológico um pouco
diferente. É um sistema de ondas de todo o Hemisfério Sul entre a região
subpolar e as latitudes subtropicais. Esse sistema na última semana
estava quase que estacionário, o que a gente chama de bloqueio
atmosférico. Havia esse sistema de baixa pressão ao sul e outro de
altíssima pressão ao norte. Quando tem um bloqueio de alta pressão, o ar
fica mais quente e impede a formação de nuvens. Como está muito quente,
cria esta onda de calor, ou domo de calor. No sul, a baixa pressão traz
as frentes frias, que ficam estacionadas porque há este sistema de
bloqueio.
O El Niño já está numa fase de perder força, o jato
subtropical já não está muito forte. Mas, sim, tudo isso tem a ver com o
aquecimento global. Os oceanos bateram todos os recordes de aquecimento
da história desse o último período interglacial, ou seja, dos últimos
125 mil anos. E quando o oceano está muito quente, evapora muita água e
essa água é a fonte de energia para todos os sistema de chuva e indução
de áreas de seca. O El Niño existe há milhões de anos, sempre induziu
chuvas fortes no Sul, mas bateu-se o recorde agora.
As previsões climáticas feitas anos atrás previam mais chuvas extremas para o Sul do Brasil. Elas estão acertando?
Os
modelos matemáticos climáticos rodados há muitos anos já previam. Os
modelos com aquecimento global mostram um aumento da chuva anual no Sul
do Brasil. Um aumento de 10% a 20%.
O que chama a atenção é que
isso está acontecendo de forma muito mais antecipada. Se a gente pegar o
relatório do IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas] de
2007, que ganhou o Prêmio Nobel da Paz, eu estava inclusive entre os
autores, ele indicava que este tipo de fenômeno poderia acontecer por
volta de 2030, 2040. Mas eles [fenômenos dos eventos climáticos
extremos] já se anteciparam muito.
No ano passado atingimos o
recorde de aquecimento, a temperatura média global já subiu 1,5° C mais
quente que o período pré-industrial. Este ano continua quente. A
temperatura média do planeta em fevereiro e março de 2024 já bateu
1,56°C mais quente, é o recorde histórico.
Os modelos indicavam
que quando a gente atingisse 1,5°C nós já deveríamos já esperar
fenômenos muito extremos de chuvas muito intensas e prolongadas como
vimos no Rio Grande do Sul.
Com o planeta já perto deste 1,5°C de
aquecimento, eventos como este no Sul vão ficar mais frequentes? O que o
Brasil tem que fazer para lidar com isso?
Se os oceanos
continuarem muito quentes, sim, já estaremos muito próximos de 1,5 ºC. E
podemos passar de 1,5 ºC antes de 2030 de forma permanente.
Nesse
caso, extremos climáticos ficam mais frequentes em todo mundo. Torna-se
essencial acelerar a implantação de soluções para adaptação a estes
extremos. No caso de chuvas extremas, o enorme desafio de remover
brasileiros de áreas de altíssimo risco como essas destruídas no Rio
Grande do Sul. E construir e reconstruir infraestrutura resiliente aos
extremos.
O que é preciso para melhorar a capacidade de prever eventos extremos no país, cada vez mais recorrentes?
A
capacidade de previsão meteorológica melhorou muito. Isso tem muito a
ver com o desenvolvimento científico, com a criação do Cptec [Centro de
Previsão do Tempo e Estudos Climáticos], que fez os primeiros modelos
atmosféricos climáticos. E temos o Cemaden [Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais], que utiliza as previsões
meteorológicas de todo o mundo, inclusive as do Inpe.
Praticamente,
consegue-se prever com vários dias de antecedência esses fenômenos
extremos. Às vezes, os modelos matemáticos não conseguem prever
recordes, mas eles preveem muita chuva.
Aquele evento extremo de
fevereiro de 2023 no litoral norte de São Paulo, o maior volume de
chuvas em 24 horas no Brasil, 600 milímetros, os modelos não conseguiram
prever. Os modelos previram 300 milímetros. Em vários lugares do Rio
Grande do Sul, choveu 800 milímetros em seis dias. Quando a chuva passa
dos 200 milímetros já há um enorme risco. O Cemaden repassou essas
informações.
É claro que há muito o que fazer. O Inpe tem um
modelo regional chamado ETA e ele pode ser rodado com uma resolução de 3
quilômetros. Os modelos com essa resolução espacial conseguem simular
melhor a distribuição geográfica da chuva. Isso é importante para ver o
risco de desastres para áreas de risco, deslizamento, inundações. O ETA
já existe, seria importante retomar o papel dele.
Como reconstruir as cidades destruídas nesta condição de aquecimento do planeta e mudanças climáticas?
É
o maior desafio. É o desafio da resiliência, da adaptação. No Brasil, a
redução do desmatamento já reduz as emissões e contribui globalmente na
luta contra a emergência climática. Tudo isso é importantíssimo e o
Brasil pode ser um dos líderes.
Mas estes eventos extremos não têm
mais volta. Eles vão acontecer com essa frequência. Ondas de calor que
levam a uma quantidade imensa de mortes, secas que levam a queda de
produtividade e da agricultura, problemas de abastecimento de água e,
lógico, esses eventos de chuvas extremas, deslizamentos, enxurradas,
tudo o que a gente viu no Sul.
Aumentar a resiliência e ter uma
política de adaptação às mudanças climáticas é um investimento de
centenas de bilhões de reais. O Cemaden já fez um estudo e está
refazendo com base no censo de 2022. Este novo estudo deve mostrar que
mais de 3 milhões de brasileiros têm que sair das áreas de risco.
Por
exemplo, aqueles municípios na beira do rio Taquari no Rio Grande do
Sul e outros, na planície, na área ciliar do rio. Não pode ter pessoas!
Esses eventos vão continuar acontecendo!
Tem também as comunidades
que vivem nas encostas, normalmente com pessoas muito pobres. Elas
correm um enorme risco por causa dos deslizamentos. É um desafio muito
grande buscar, a médio prazo, outros locais seguros para esses
brasileiros viverem.
Logicamente, precisamos melhorar muito o
nosso sistema de resposta. O Cemaden dá o alerta de risco para as
Defesas Civis, e tem que haver uma eficiência muito grande. É claro que,
até agora, este trabalho já salvou vidas e retirou mais de 20 mil
pessoas das zonas de risco no Sul. Isso mostra que dá para ser feito.
É
preciso reagir imediatamente ao alerta do Cemaden, instalar sirenes em
todo o Brasil, planejar a saída e o alojamento para todas essas pessoas,
sistema de alimentação. Temos visto no Sul uma mobilização muito grande
da sociedade civil, voluntários. Temos um enorme desafio pela frente.
https://istoedinheiro.com.br/nao-tem-mais-volta-diz-nobre-sobre-catastrofes-climaticas/