Para advogado, incluir no
projeto de lei mecanismo que obrigue empresas como Google e Facebook a
criar data centers no Brasil afugentará companhias e provocará enxurrada
de ações judiciais requerendo acesso a dados pessoais
Renata Honorato
Ronaldo Lemos
(Divulgação)
Diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro,
o advogado Ronaldo Lemos, de 37 anos, é um dos idealizadores do Marco
Civil da internet, em gestão desde 2009. O projeto de lei pretende
estabelecer regras para a web brasileira, prevendo direitos e deveres de
cidadãos, provedores acesso e de serviços e também do governo em
relação às atividades realizadas na rede.
Às vésperas da votação do
projeto na Câmara, contudo, Lemos se insurge contra uma ideia que o
governo tenta, aos 45 minutos do segundo tempo, incluir no texto.
Trata-se da proposta de obrigar empresas como Google e Facebook a
implantar data centers (servidores de grande porte, na prática) em
território nacional para armazenar aqui dados de usuários brasileiros.
É
uma resposta do Planalto à suspeita de que a Agência de Segurança
Nacional (NSA) dos Estados Unidos espionou autoridades e empresas locais
— incluindo a presidente Dilma Rousseff e a Petrobras. "Essa
localização forçada fará com que as empresas de internet fujam do Brasil
e com que os brasileiros se tornem clandestinos, cidadãos de segunda
classe, nos serviços americanos ou europeus. Os sites terão receio de
oferecer serviços a usuários brasileiros com medo de, no futuro, ter que
montar um data center local", diz Lemos.
O advogado prevê ainda que o
tiro do governo sairá pela culatra no tocante à defesa da privacidade: a
presença dos data centers no Brasil vai provocar uma enxurrada
de ordens judiciais exigindo acesso a informações pessoais, além da
retirada de conteúdos do ar — com prejuízo óbvio à liberdade de
expressão.
"Teremos filas de oficiais de Justiça com ordens para acessar
dados nos data centers. Com as atuais leis brasileiras, o usuário
estaria mais seguro se seus dados estivessem na Europa do que em solo
nacional." Confira a seguir a entrevista que Lemos concedeu a VEJA.com
por telefone, de Londres.
Algum país do mundo exige a hospedagem em data centers locais?
Não. Essa é uma medida que o Brasil está inventando agora.
Qual sua posição sobre a proposta do governo?
Sou contra a obrigatoriedade. Há outras maneiras de trazer esses servidores para o país.
Quais são as alternativas?
Precisamos aprimorar tecnicamente a rede no Brasil. Em vez de obrigar a hospedagem, o governo poderia investir na criação de internet exchange points,
os chamados pontos de troca de tráfego (PTT). Eles funcionam como
entroncamentos rodoviários ou ferroviários: quando se tem um monte deles
em um país, faz todo sentido instalar um data center ali. Essa
infraestrutura faria com que a internet brasileira ficasse mais
conectada, competitiva e barata e atrairia os data centers de forma
natural.
Em vez de obrigatoriedade, deveria então haver investimento em infraestrutura.
Exatamente.
Os data centers são montados em locais onde existem entroncamentos da
rede de internet, porque isso permite que os dados circulem em melhores
condições e que o serviço funcione da melhor maneira possível. As
empresas de internet que mantêm data centers gigantes se pautam pela
mesma lógica, para fazer uma analogia, de uma grande empresa atacadista,
que vende produtos para o Brasil inteiro: faz sentido montar centros de
distribuição onde há acesso a rodovias e ferrovias, mas não num lugar
ermo, de onde os seus produtos têm dificuldade para sair.
Quais problemas a hospedagem forçada pode acarretar?
Essa
localização forçada fará com que as empresas de internet fujam do
Brasil e com que os brasileiros se tornem clandestinos, cidadãos de
segunda classe, nos serviços americanos ou europeus. Os sites terão
receio de oferecer serviços a usuários brasileiros com medo de, no
futuro, ter que montar um data center local. Teremos também um terrível
problema jurídico. Uma vez que os data centers das empresas estrangeiras
estejam instalados aqui, armazenando informações como trocas de e-mail,
teremos uma fila de oficiais da Justiça com ordens para acessar os
dados.
Por quê?
Porque esse é o espírito da nossa
legislação. Tomemos o caso das eleições. A lei eleitoral brasileira é,
do ponto de vista comparativo, muito problemática. Ela permite que
centenas de pedidos de remoção de conteúdo sejam feitos todos os dias
durante as eleições. Isso é péssimo. Você afeta a liberdade de expressão
quando ela é mais importante: durante o debate eleitoral. Se os dados
estiverem armazenados fisicamente no Brasil, a situação ficará ainda
mais precária nesse aspecto em particular. Mas o fato é que a lei
brasileira não protege o ecossistema da internet.
O Marco Civil vai
contribuir parcialmente para a proteção dos dados pessoais. Mas não há
salvaguarda para os operadores de data centers. E essa questão jurídica,
ao lado da questão técnica, também pesa muito na decisão de construir
um data center. Ninguém quer se arriscar onde as leis não são boas e não
colaboram com a inovação.
Um dos argumentos do governo para justificar a
obrigatoriedade dos data centers é que isso impediria que dados de
cidadãos brasileiros fossem alvo de espionagem. Esse argumento procede? Especialistas
afirmam que, do ponto de vista técnico, manter informações de usuários
em data centers locais não impede a espionagem, já que a eventual
interceptação é feita enquanto os dados trafegam na rede. Mas não é só
isso.
Com as atuais leis brasileiras, o usuário estaria mais
seguro se seus dados estivessem na Europa do que em solo nacional. Isso
porque a lei europeia é muito mais severa em relação à privacidade do
que a lei brasileira. Lá, a quebra de sigilo de um e-mail é uma tarefa
muito difícil. Se a preocupação do governo é com a privacidade dos
cidadãos, deveria se voltar para o aprimoramento da lei brasileira, que
ainda tem de mudar muito.
Outro argumento do governo é que é difícil ter acesso aos
dados de usuários brasileiros armazenados no exterior por empresas
estrangeiras, quando o acesso a esses dados se faz necessário e está
amparado na lei. Nesses casos, os juízes brasileiros têm recorrido à
Justiça americana através do Tratado de Cooperação entre Brasil e
Estados Unidos (MLAT). Esses acordos internacionais são eficazes?
De fato, há situações em que o acesso às informações de usuários é
legítimo. Nesses casos, o armazenamento local de dados de fato torna as
coisas mais rápidas. Mas a preocupação do governo poderia ser resolvida
com uma melhoria no MLAT. Por que o Brasil não cria um novo diálogo para
aperfeiçoar o tratado em solicitações digitais? O governo poderia, por
exemplo, sugerir um canal expresso, que em direito chamamos de fast
track, para a obtenção dessas informações rapidamente.
Então melhorar o MLAT seria uma alternativa mais acertada?
O
tratado internacional é o melhor caminho para resolver esse impasse.
Algumas vezes, a Justiça brasileira pede informações, mas a lei
americana proíbe que a sede da empresa de internet envie os dados.
Cria-se, dessa forma, um paradoxo legal, pois se você atende a lei do
Brasil, viola a lei dos Estados Unidos, e vice-versa. Já aconteceram
situações inversas, nas quais empresas americanas pediram informações
bancárias de cidadãos americanos com conta no Brasil, e a Justiça
brasileira negou o acesso aos dados. Trata-se de um caminho de mão dupla
e o governo tem de entender isso.
O relator do projeto do Marco Civil, deputado Alessandro
Molon (PT-RJ), afirma que obrigar as empresas de internet a manter data
centers no Brasil é uma forma de atingi-las financeiramente e, por
tabela, os Estados Unidos, em resposta ao episódio de espionagem. O que o
senhor acha disso?
A ideia da sanção financeira é péssima. Da
mesma forma que os Estados Unidos ganham dinheiro com o Brasil, o Brasil
ganha dinheiro com os Estados Unidos. Essa queda-de-braço retórica pode
ter um custo econômico muito grande para o país. É muito melhor
resolver essa questão da tutela de dados do ponto de vista de um tratado
internacional negociado do que resolver o problema no grito. Imagine
uma regra de retaliação em que as empresas brasileiras que tenham dados
de estrangeiros sejam obrigadas a localizar data centers em outros
países. Isso causaria um problema sério para o Brasil e as empresas
nacionais.
O senhor acha que o Marco Civil é uma boa resposta do Brasil aos recentes casos de espionagem da NSA?
O Marco Civil é a melhor resposta inicial que o governo pode dar para a
espionagem. Ele estabelece um posicionamento político do governo
brasileiro pró-privacidade, pró-neutralidade, pró-usuário, pró-defesa da
rede. Essa é uma bandeira imediata que o governo conquista ao aprovar o
Marco Civil. Para continuar respondendo à NSA, o governo teria de tomar
outras medidas, como construir conexões de internet diretas entre o
Brasil e outros países da América Latina sem que essas conexões passem
pelos Estados Unidos. Construindo pontos de troca de tráfego regionais
com outros países do BRIC, o Brasil se protegeria da mira americana.
Atualmente, o Brasil depende muito da infraestrutura dos Estados Unidos.
Grande parte do nosso tráfego de internet passa por Miami.
Enquanto
existir essa dependência, o Brasil continuará sujeito à espionagem. A
melhor resposta do país aos recentes escândalos é técnica. O país
precisa reforçar a sua autonomia na rede, mas sem soluções fantasiosas
como a dos data centers, cuja implantação é consequência da existência
de uma infraestrutura robusta. Caso contrário, o tiro vai sair pela
culatra.
Por que uma legislação que disciplina a internet é importante para o Brasil?
O país está atrasado em relação a outras nações. Os Estados Unidos
regularam questões que estão no Marco Civil em 1998. Esse alicerce legal
permitiu que o mercado de inovação americano conquistasse a liderança
global, com empresas como Google e Facebook. O objetivo do Marco Civil é
garantir segurança jurídica aos brasileiros, já que hoje ela não
existe, e criar um alicerce legal que permita ao país se tornar mais
competitivo no mercado de inovação. Ele assegura também direitos aos
usuários. O país sofre com uma grande incerteza jurídica, já que muitos
direitos fundamentais não estão sendo protegidos na internet. Há muitas
dúvidas sobre como são guardados os dados dos usuários, quais são os
limites a serem respeitados, quando um juiz pode ou não solicitar acesso
a essas informações. Nada nesse sentido foi regulado no Brasil e isso
abre caminho para abusos.
O Marco Civil é uma espécie de carta de princípios. Não seria
mais correto incluir a tutela de dados no projeto de lei de Proteção
dos Dados Pessoais, que circula pelo Ministério da Justiça e na Casa
Civil?
O Marco Civil trata de princípios, mas também de
questões normativas. A Lei de Dados Pessoais virá para complementá-lo.
São duas legislações fundamentais. Se no Marco Civil estamos atrasados
15 anos, na Lei de Proteção de Dados Pessoais o atraso chega a 30 anos.
Essas leis já existem em outros países, inclusive na América Latina,
como Argentina, Chile e Colômbia.
O que mudará na vida das pessoas após a aprovação do projeto?
Muitas coisas vão mudar. A neutralidade de rede, que impede que a
internet se transforme em uma TV a cabo, com pacotes personalizados com
base no acesso do usuário, permitirá que o mercado seja mais
competitivo. As pessoas ganharão novos serviços de vídeo e música sob
demanda e terão acesso a diferentes conteúdos on-line, como vídeos 3D e
games. O direito à privacidade também ficará protegido e os usuários se
sentirão menos vulneráveis a monitoramentos privados ou públicos. O
Marco garante ainda o acesso a dados governamentais abertos e trata a
internet como um direito essencial no exercício da cidadania. Muitas
pessoas perguntam por que no Brasil não existem redes Wi-Fi abertas,
como nos Estados Unidos. A resposta é simples: se alguém abrir a sua
rede e uma pessoa utilizá-la de forma incorreta, o responsável pelo
delito será o dono do hotspot. Os Estados Unidos, ao contrário,
responsabilizam o criminoso. O Marco acaba com isso e, consequentemente,
com a censura prévia, já que os sites não serão mais responsáveis por
conteúdos de terceiros.
Sobre a obrigatoriedade de data centers no Brasil
Leio a seguir o texto que o governo enviou à Comissão do Marco Civil na Câmara
“Art. 10-A. O armazenamento dos dados de pessoas físicas ou jurídicas
brasileiras por parte dos provedores de aplicações de Internet que
exercem essa atividade de forma organizada, profissional e com
finalidades econômicas no país deve ocorrer no território nacional,
ressalvados os casos previstos na regulamentação.
§1º Incluem-se na hipótese do caput os registros de acesso a
aplicações de Internet, assim como o conteúdo de comunicações em que
pelo menos um dos partícipes esteja em território brasileiro. ”