Decisões
recentes em casos de violência contra a mulher reacendem debate sobre
como a baixa presença feminina nos tribunais influencia resposta do
sistema a agressões e feminicídios.Os casos de violência contra mulheres
que repercutiram nos últimos dias reacenderam o debate sobre como o
Judiciário brasileiro responde a episódios de agressão e feminicídio .
Decisões recentes assinadas por magistrados do sexo masculino voltaram a
expor um sistema formado majoritariamente por homens em posições de
maior poder e com pouca presença feminina nos cargos superiores.
Um
caso que ganhou notoriedade é o do influenciador Thiago da Cruz Schoba,
conhecido como “Calvo do Campari”. Ele foi preso em flagrante por
agressão e tentativa de estupro contra a namorada, mas acabou liberado
por decisão provisória do juiz Renato Hasegawa Lousan, que aplicou
medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha . A repercussão
ocorreu em meio às declarações do influenciador, que difunde discursos
do movimento redpill .
Outro caso ocorreu no fim do mês de
novembro no Maranhão, onde um juiz colocou em liberdade Hayldon Maia de
Brito, preso por agredir a ex-esposa na presença do filho do casal, que
filmou a agressão.
No início do ano, outro magistrado determinou a
soltura de um suspeito de agredir a companheira por considerar que a
prisão teria sido motivada por “feminismo punitivista”.
As
três decisões se somam a episódios que expõem divergências sobre
interpretações jurídicas e a avaliação de comportamentos violentos
contra mulheres.
Por que as mulheres ainda são minoria no Judiciário
Segundo
dados mais recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), das 2.714
magistradas e magistrados em atividade em 2023, 1.038 eram mulheres,
cerca de 38% do total – mesmo percentual de 2019.
Para a advogada
criminalista e professora da Escola de Direito da PUCPR Renata Ceschin
Melfi de Macedo, esse cenário é fruto de uma cultura institucional
masculina, critérios de promoção pouco sensíveis às interrupções de
carreira e redes internas de indicação – e afeta a forma como o sistema
acolhe casos de violência contra mulheres.
A baixa presença
feminina no Judiciário não é um fenômeno recente e reflete a forma como o
sistema foi estruturado, segundo a especialista em Direito das Mulheres
e advogada Antília Reis. Ela explica que o Direito foi concebido “por
homens, para homens”, o que limitou o acesso e a permanência das
mulheres nas carreiras jurídicas por muitos anos.
Reis destaca
três barreiras que produzem esse cenário. A primeira é estrutural, em
que concursos e promoções valorizam trajetórias associadas à
disponibilidade integral, sem interrupções e sem carga de cuidado. A
segunda é cultural, marcada pela resistência à presença feminina em
posições de comando, sobretudo em áreas ligadas à persecução penal. A
terceira é institucional, com processos de promoção pouco transparentes e
sustentados por redes masculinas de influência.
“O resultado é esse funil onde quanto mais alto o cargo, menor a presença de mulheres”, diz a especialista.
A
delegada Raquel Gallinati, diretora da Associação dos Delegados de
Polícia do Brasil (Adepol), reforça que as estruturas públicas, tanto no
Judiciário quanto em carreiras correlatas, foram desenhadas segundo uma
lógica patriarcal, num contexto que não considerava a participação
feminina.
Segundo Gallinati, o cenário só começou a mudar quando o
acesso ao ensino superior e aos concursos públicos passou a ser pautado
exclusivamente pelo mérito, permitindo maior entrada de mulheres em
carreiras jurídicas.
Julgamento imparcial x gênero
A
distribuição de processos no Judiciário é feita por sorteio eletrônico
para impedir que casos sejam direcionados a magistrados específicos. A
regra é um dos pilares da independência judicial.
Mas, apesar
disso, pesquisas recentes indicam que o gênero de quem julga pode
influenciar a forma como casos de violência contra mulheres são
analisados.
“Estudos internacionais, especialmente nos EUA e na
Europa, indicam que tribunais com mais magistradas têm maiores taxas de
condenação em crimes sexuais e menor tolerância com agressões”, destaca
Reis.
Ela cita ainda outro estudo , com foco no Brasil, que
constatou que um caso de violência doméstica designado a uma juíza tem
mais chances de resultar em condenação do que um caso designado a um
juiz com carreira semelhante.
A advogada pontua que algumas
decisões desconsideram a palavra da vítima, relativizam a gravidade da
agressão ou reproduzem estereótipos de gênero, e atribui as diferenças
de julgamento ao machismo estrutural que permeia o sistema de justiça:
afinal, magistrados e operadores do direito são formados dentro de uma
cultura patriarcal, o que influencia avaliações, mesmo sem intenção
declarada de discriminar.
“Tal contexto favorece a reprodução de
vieses implícitos, dificultando o reconhecimento da violência de gênero
em toda a sua gravidade e contribuindo para respostas judiciais que, por
vezes, minimizam a dimensão estrutural da desigualdade, naturalizam
comportamentos violentos ou deslocam a responsabilização do agressor
para a vítima”, concorda Macedo, da PUCPR.
Segundo a professora,
estudos que relacionam decisões mais ou menos duras ao gênero dos
magistrados não revelam falhas individuais, e sim diferenças de
repertório, formação e sensibilidade ao tema. Ela diz que a presença
feminina melhora a resposta do Judiciário, mas precisa vir acompanhada
de protocolos claros, equipes multidisciplinares e capacitação contínua.
Mas
Reis ressalta que a presença de mulheres também é importante nas etapas
anteriores ao julgamento, como atendimento e investigação. A advogada
lembra que a maioria dos registros iniciais em delegacias ainda é feita
por homens, e que o acolhimento inadequado no primeiro contato repercute
em todo o processo.
Essas evidências sustentam iniciativas do
CNJ, como o julgamento com perspectiva de gênero, que busca reduzir
distorções e estabelecer critérios uniformes para casos de violência
contra mulheres.
Para as especialistas, reconhecer o impacto do
gênero nas decisões não compromete a imparcialidade do Judiciário, mas
ajuda a construir um sistema capaz de responder de forma adequada à
violência que atinge mulheres em todo o país.
Protagonismo feminino impulsionou avanços
Diversas
mudanças estruturais no enfrentamento à violência contra a mulher
surgiram de articulações de mulheres, tanto em ambientes institucionais
quanto nas ruas. Esses movimentos foram decisivos para alterar normas,
criar mecanismos de proteção e ampliar a resposta do Estado em casos de
violência de gênero.
Entre os avanços estão a Lei Maria da Penha,
que consolidou medidas protetivas e padronizou o atendimento em todo o
país; a tipificação do feminicídio e, mais recentemente, da violência
psicológica e do stalking; a criação e expansão das delegacias
especializadas e das varas de violência doméstica; a criação de pastas
nas esferas de governo dedicada às mulheres e a Central de Atendimento
Ligue 180, para denunciar violência contra a mulher.
Segundo
Macedo, da PUCPR, observatórios, centros de pesquisa e programas de
capacitação liderados por mulheres têm sido fundamentais para produzir
dados e influenciar decisões.
Feminicídio x aplicação na prática
Dez
anos após a tipificação do crime de feminicídio, o Brasil avançou em
padronização jurídica, maior visibilidade pública sobre o tema e
melhoria na produção de dados, segundo as especialistas ouvidas pela DW.
Reis
ressalta que houve aumento do rigor nas penas e maior uniformização dos
entendimentos nos tribunais, mas lembra que, apesar desses progressos,
mulheres seguem morrendo mesmo após pedir ajuda.
“Medidas
protetivas não são fiscalizadas de forma adequada, o monitoramento
eletrônico falha, e a resposta policial continua lenta. Em cidades
pequenas, a falta de delegacias especializadas, equipes treinadas e
casas-abrigo deixa mulheres sem acesso ao atendimento básico”, diz.
As
Delegacias Especializadas da Mulher, criadas justamente para enfrentar
esse cenário, são consideradas uma das mudanças mais relevantes. Equipes
majoritariamente femininas e capacitadas garantem acolhimento sem
julgamento, identificação de sinais invisíveis de violência e registro
qualificado das denúncias. A advogada destaca que o atendimento
humanizado aumenta a probabilidade de a vítima, ou pessoas próximas,
formalizarem a denúncia, reduzindo o risco de escalada da violência.
Para
Gallinati, da Adepol, é importante frisar que o feminicídio não surge
de um único episódio. Trata-se do estágio final de um ciclo prolongado,
marcado por agressões normalizadas, coação psicológica e dependência
emocional.
Ela pontua que o aumento dos registros na última década
é reflexo tanto da tipificação recente quanto da continuidade da
violência motivada pelo fato de as vítimas serem mulheres. E diz que o
Estado ainda custa a criar condições reais para que a lei seja aplicada,
enquanto a sociedade segue minimizando sinais prévios, como perseguição
e ameaças, o que favorece a repetição do ciclo da violência.