Entra ano, sai ano e a necessária reforma tributária
continua sendo adiada. A complexidade do sistema tributário do Brasil
corrói a competitividade da indústria e prejudica as camadas mais pobres
da população, que precisa de serviços públicos de melhor qualidade e
redução dos impostos. A arrecadação cresce ano após ano. O
“Impostômetro” mostra que, somente em 2014, a sociedade brasileira já
pagou mais de R$ 400 bilhões ao fisco. Pior, não vê o retorno em bens e
serviços e não consegue entender para onde vai o dinheiro.
Para falar sobre o sistema tributário, o Instituto Millenium
entrevistou o economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de
Economia (Ibre/FGV), José Roberto Afonso, autor de “Keynes, crise e
política fiscal” (Saraiva, 2012), “Crise, Estado e economia brasileira”
(Agir, 2011) e “Tributación, seguridade y cohesión social en Brasil”
(Cepal, 2007), que escreveu em parceria com José Serra. Especialista no
tema, José Roberto não acredita em uma reforma que torne o sistema atual
eficiente: “Nós precisamos é de outro sistema tributário, afinal, o
atual fará 50 anos e o mundo e o Brasil mudaram”, afirma. Leia a
entrevista:
Instituto Millenium – A problemática dos impostos no Brasil é
maior no que se refere à complexidade do sistema, à falta de
transparência na aplicação dos recursos ou às altas taxas?
José Roberto Afonso - Não conheço uma forma de dosar os
problemas. Todas as distorções citadas são graves e mostram que, em
essência, não temos mais um “sistema”, como significa tal vocábulo no
dicionário. Para as famílias, a injustiça dos tributos, especialmente os
indiretos, seria o mais grave. Estudos comprovam que quanto menos se
ganha, mais se paga de tributos, ainda que, na maioria das vezes, sem o
conhecimento dos impostos embutidos nos preços dos produtos.
Para as empresas, os danos à competitividade são grandes, a começar
pela tributação indireta das exportações e investimentos produtivos. E,
para todos, a complexidade, que torna o Brasil campeão mundial em
avaliações sobre o custo de pagar imposto (compliance), e a opacidade
dos tributos são pecados importantes. A única virtude está do lado do
fisco, porque se arrecada como raros outros países emergentes conseguem
fazer. Inclusive, conseguimos contrariar a teoria e aumentar os
recolhimentos à frente da produção interna, mesmo quando ela desacelera.
É lógico que o fisco não faz isso porque quer maltratar os
contribuintes e sim para responder a demanda por mais gasto público e
para honrar a enorme dívida pública que o país possui. Se é algo
inevitável ter uma carga tributária elevada para atender tanta
necessidade de recursos, o desafio maior, a meu ver, está relacionado
com a qualidade da tributação: seria necessário arrecadar de forma mais
simples, equânime e menos danosa à produção interna.
Instituto Millenium – Existe modelo ideal de reforma tributária? Como seria uma reforma tributária eficiente?
J.R. Afonso - Não existe um modelo ótimo, em minha
opinião. Cada sistema tributário retrata as condições políticas,
sociais, culturais e econômicas de um país. É verdade que a maioria dos
países adota uma sistemática muito próxima de competências tributárias e
distribuição entre entes federados. O Brasil é, de longe, um ponto fora
da curva, em grande parte por dois motivos singulares: é o único país
que atribuiu ao âmbito subnacional, aos estados, a cobrança do imposto
sobre valor adicionado e também é o único que cobra contribuições
sociais que não se limitam à folha salarial e alcançam bases múltiplas –
vendas, valor adicionado, lucros, loterias e até receitas
governamentais.
Sou cético que uma reforma consiga tornar esse sistema mais
eficiente. Nós precisamos é de outro sistema tributário, afinal, o atual
fará 50 anos em breve e o mundo e o Brasil mudaram. Já passa a hora de
reestruturar o sistema e não apenas tentar consertar suas distorções.
Instituto Millenium – Por que os governos não assumem a pauta da reforma? Há interesses políticos para que ela não aconteça?
J.R. Afonso - Falta pressão da sociedade, inclusive a
organizada. Do lado dos contribuintes, todos são a favor de uma reforma
tributária, mas, quando se chega a hora de redefinir os tributos, querem
reduzir a sua carga e aumentar a dos demais, querem incentivos fiscais
para seu setor ou para sua empresa e não se preocupam com o conjunto de
impostos. Do lado dos governos, como há uma enorme necessidade de
recursos e a arrecadação atual é espetacularmente alta, ainda que
cobrada de forma péssima, as autoridades têm medo de que, ao reformar ou
mudar o sistema, percam receita e tenham que diminuir o orçamento. De
tempos para cá, especialmente no âmbito federal, cresceu a ideia de que
basta um bom gerenciamento para que se conserte os problemas da
tributação. Os resultados mostram que essa ideia fracassou.
Instituto Millenium – Os impostos declarados na nota fiscal
contribuem para a transparência ou são ineficientes, dada a complexidade
do sistema?
J.R. Afonso – Discriminar impostos inegavelmente
contribui para melhorar a transparência, como também implica em mais um
encargo para os vendedores. É preciso pesar os dois lados. Acho que se
ganha mais com o primeiro, sobretudo se fosse exigida uma estimativa da
carga tributária, e não um cálculo preciso – que nem o fisco consegue
fazer, uma vez que um imposto indireto incide sobre outro imposto e, só
no Brasil, ainda incide sobre ele próprio, como no caso do ICMS [Imposto
sobre Circulação de Mercadorias e Serviços].
Instituto Millenium – A população tem noção do impacto financeiro da tributação no próprio bolso?
J.R. Afonso – Não. Nem os especialistas conseguem
calcular com precisão diante da complexidade do sistema. Como disse,
seria importante apostar mais em divulgar estimativas, por mais
grosseiras que sejam, do que pedir um cálculo preciso na nota fiscal.
Instituto Millenium – Ao mesmo tempo em que os impostos são
elevados, a sonegação registra números altos. Em 2014, de acordo com o
“Sonegômetro”, mais de R$100 bilhões deixaram de entrar para os cofres
públicos. Em que medida os atuais níveis de sonegação prejudicam o
desempenho do país?
J.R. Afonso - Não acredito que seja tudo isso. Não
conheço os cálculos do “Sonegômetro”, no entanto, por princípio, é
difícil adotar uma metodologia para precisar a sonegação. Se tal método
existisse, tenho certeza que as autoridades fazendárias já o teriam
adotado para acabar ou atenuar a sonegação. Muitos se esquecem de que
nossa carga é concentrada em tributos indiretos, com alíquotas pesadas
sobre insumos estratégicos. Sendo assim, é impossível uma fábrica
clandestina ou mesmo um camelô não consumirem energia elétrica, água,
telefone, usar um carro ou um transporte urbano – e em todos esses casos
a conta vem com os impostos embutidos. Pode até não ter CPF ou CNPJ,
mas garanto que é impossível deixar de pagar impostos em uma economia
como a nossa.