terça-feira, 8 de abril de 2014

“Já passa da hora de reestruturar o sistema tributário e não apenas tentar consertar suas distorções”

Entra ano, sai ano e a necessária reforma tributária continua sendo adiada. A complexidade do sistema tributário do Brasil corrói a competitividade da indústria e prejudica as camadas mais pobres da população, que precisa de serviços públicos de melhor qualidade e redução dos impostos. A arrecadação cresce ano após ano. O “Impostômetro” mostra que, somente em 2014, a sociedade brasileira já pagou mais de R$ 400 bilhões ao fisco. Pior, não vê o retorno em bens e serviços e não consegue entender para onde vai o dinheiro.

Para falar sobre o sistema tributário, o Instituto Millenium entrevistou o economista e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), José Roberto Afonso, autor de “Keynes, crise e política fiscal” (Saraiva, 2012), “Crise, Estado e economia brasileira” (Agir, 2011) e “Tributación, seguridade y cohesión social en Brasil” (Cepal, 2007), que escreveu em parceria com José Serra. Especialista no tema, José Roberto não acredita em uma reforma que torne o sistema atual eficiente: “Nós precisamos é de outro sistema tributário, afinal, o atual fará 50 anos e o mundo e o Brasil mudaram”, afirma. Leia a entrevista:

Instituto Millenium – A problemática dos impostos no Brasil é maior no que se refere à complexidade do sistema, à falta de transparência na aplicação dos recursos ou às altas taxas?

José Roberto Afonso - Não conheço uma forma de dosar os problemas. Todas as distorções citadas são graves e mostram que, em essência, não temos mais um “sistema”, como significa tal vocábulo no dicionário. Para as famílias, a injustiça dos tributos, especialmente os indiretos, seria o mais grave. Estudos comprovam que quanto menos se ganha, mais se paga de tributos, ainda que, na maioria das vezes, sem o conhecimento dos impostos embutidos nos preços dos produtos.

Para as empresas, os danos à competitividade são grandes, a começar pela tributação indireta das exportações e investimentos produtivos. E, para todos, a complexidade, que torna o Brasil campeão mundial em avaliações sobre o custo de pagar imposto (compliance), e a opacidade dos tributos são pecados importantes. A única virtude está do lado do fisco, porque se arrecada como raros outros países emergentes conseguem fazer. Inclusive, conseguimos contrariar a teoria e aumentar os recolhimentos à frente da produção interna, mesmo quando ela desacelera.

É lógico que o fisco não faz isso porque quer maltratar os contribuintes e sim para responder a demanda por mais gasto público e para honrar a enorme dívida pública que o país possui. Se é algo inevitável ter uma carga tributária elevada para atender tanta necessidade de recursos, o desafio maior, a meu ver, está relacionado com a qualidade da tributação: seria necessário arrecadar de forma mais simples, equânime e menos danosa à produção interna.

Instituto Millenium – Existe modelo ideal de reforma tributária? Como seria uma reforma tributária eficiente?

J.R. Afonso - Não existe um modelo ótimo, em minha opinião. Cada sistema tributário retrata as condições políticas, sociais, culturais e econômicas de um país. É verdade que a maioria dos países adota uma sistemática muito próxima de competências tributárias e distribuição entre entes federados. O Brasil é, de longe, um ponto fora da curva, em grande parte por dois motivos singulares: é o único país que atribuiu ao âmbito subnacional, aos estados, a cobrança do imposto sobre valor adicionado e também é o único que cobra contribuições sociais que não se limitam à folha salarial e alcançam bases múltiplas – vendas, valor adicionado, lucros, loterias e até receitas governamentais.

Sou cético que uma reforma consiga tornar esse sistema mais eficiente. Nós precisamos é de outro sistema tributário, afinal, o atual fará 50 anos em breve e o mundo e o Brasil mudaram. Já passa a hora de reestruturar o sistema e não apenas tentar consertar suas distorções.

Instituto Millenium – Por que os governos não assumem a pauta da reforma? Há interesses políticos para que ela não aconteça?

J.R. Afonso - Falta pressão da sociedade, inclusive a organizada. Do lado dos contribuintes, todos são a favor de uma reforma tributária, mas, quando se chega a hora de redefinir os tributos, querem reduzir a sua carga e aumentar a dos demais, querem incentivos fiscais para seu setor ou para sua empresa e não se preocupam com o conjunto de impostos. Do lado dos governos, como há uma enorme necessidade de recursos e a arrecadação atual é espetacularmente alta, ainda que cobrada de forma péssima, as autoridades têm medo de que, ao reformar ou mudar o sistema, percam receita e tenham que diminuir o orçamento. De tempos para cá, especialmente no âmbito federal, cresceu a ideia de que basta um bom gerenciamento para que se conserte os problemas da tributação. Os resultados mostram que essa ideia fracassou.

Instituto Millenium – Os impostos declarados na nota fiscal contribuem para a transparência ou são ineficientes, dada a complexidade do sistema?

J.R. Afonso – Discriminar impostos inegavelmente contribui para melhorar a transparência, como também implica em mais um encargo para os vendedores. É preciso pesar os dois lados. Acho que se ganha mais com o primeiro, sobretudo se fosse exigida uma estimativa da carga tributária, e não um cálculo preciso – que nem o fisco consegue fazer, uma vez que um imposto indireto incide sobre outro imposto e, só no Brasil, ainda incide sobre ele próprio, como no caso do ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços].

Instituto Millenium – A população tem noção do impacto financeiro da tributação no próprio bolso?

J.R. Afonso – Não. Nem os especialistas conseguem calcular com precisão diante da complexidade do sistema. Como disse, seria importante apostar mais em divulgar estimativas, por mais grosseiras que sejam, do que pedir um cálculo preciso na nota fiscal.

Instituto Millenium – Ao mesmo tempo em que os impostos são elevados, a sonegação registra números altos. Em 2014, de acordo com o “Sonegômetro”, mais de R$100 bilhões deixaram de entrar para os cofres públicos. Em que medida os atuais níveis de sonegação prejudicam o desempenho do país?

J.R. Afonso - Não acredito que seja tudo isso. Não conheço os cálculos do “Sonegômetro”, no entanto, por princípio, é difícil adotar uma metodologia para precisar a sonegação. Se tal método existisse, tenho certeza que as autoridades fazendárias já o teriam adotado para acabar ou atenuar a sonegação. Muitos se esquecem de que nossa carga é concentrada em tributos indiretos, com alíquotas pesadas sobre insumos estratégicos. Sendo assim, é impossível uma fábrica clandestina ou mesmo um camelô não consumirem energia elétrica, água, telefone, usar um carro ou um transporte urbano – e em todos esses casos a conta vem com os impostos embutidos. Pode até não ter CPF ou CNPJ, mas garanto que é impossível deixar de pagar impostos em uma economia como a nossa.

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