O Estado de S. Paulo
Em mais um inequívoco passo para a destruição das mais
elementares relações econômicas na Venezuela, o governo de Nicolás
Maduro deu o exíguo prazo de 60 dias úteis para que proprietários de
imóveis residenciais alugados há mais de 20 anos os vendam a seus
inquilinos, por um preço estabelecido segundo obscuros critérios do
governo, e não os de mercado. Aqueles que se recusarem ou não cumprirem o
prazo terão de pagar multas pesadas e poderão ter o imóvel expropriado.
Essa violência, mais uma no já longo histórico de arbítrio do
chavismo, é consequência da regulamentação de uma disposição transitória
da Lei de Regularização e Controle dos Arrendamentos de Moradias - um
monstrengo aprovado em 2011, ainda sob o governo de Hugo Chávez, que
atentou contra os direitos dos proprietários de imóveis residenciais. O
falecido caudilho tentava resolver na marra, como era de seu feitio, o
crônico déficit habitacional da Venezuela. Não foi suficiente construir a
toque de caixa milhares de casas de péssimo acabamento para dá-las aos
pobres em troca de sua fidelidade eleitoral; tornou-se necessário
avançar sobre os bens privados.
Agora, por força da canetada de Maduro, passou a valer no país a
estranha figura da "venda obrigatória" como forma de expropriação. Em
qualquer democracia digna desse nome, em que vige o Estado de Direito,
ninguém pode ser obrigado a desfazer-se de sua propriedade, a não ser em
casos excepcionais, sempre no interesse público e em troca de correta
compensação financeira. A Constituição da Venezuela - que Chávez vivia a
brandir para dizer que sua truculência estava sempre amparada pela lei -
garante o direito de propriedade e estabelece que a expropriação só
pode se dar se houver utilidade pública e "mediante sentença firme e
pagamento oportuno de justa indenização".
Até onde se sabe, apesar da barafunda de leis de exceção
costumeiramente impostas pelo regime chavista, tal proteção
constitucional continua válida. Assim, a nova medida do governo Maduro
reitera que, na Venezuela, a Constituição, assim como a democracia, é de
fachada. Imóveis residenciais alugados há ao menos 20 anos terão de ser
vendidos aos inquilinos simplesmente porque, conforme os chavistas
interpretam a Constituição, o direito à moradia "é uma obrigação
compartilhada entre os cidadãos e o Estado em todos os seus âmbitos". Ou
seja, os proprietários de imóveis são, queiram ou não, "sócios" do
Estado no esforço de fazer com que todos na Venezuela tenham sua casa.
A legislação ora regulamentada declara de interesse público "toda
matéria relacionada com o arrendamento de imóveis destinados à
habitação". O aluguel de um apartamento, que deveria ser um arranjo
privado, torna-se uma questão "estratégica" de Estado, conforme está
dito na lei.
Os inquilinos não podem ser despejados em nenhuma hipótese e eles
são, por definição, os compradores preferenciais do imóvel. Se esses
inquilinos não puderem ou não quiserem adquirir o imóvel, os
proprietários não podem procurar outro comprador - eles são obrigados a
vender para o governo, que estabelece o preço. Ainda não se conhecem os
critérios para fixar esse "justo valor", porque o governo, às voltas com
o descontrole da economia, não estabeleceu o custo do metro quadrado
para fins de desapropriação. Mas já se sabe que esse custo não levará em
conta nem a inflação, na casa dos 50% anuais, nem as leis da oferta e
da procura.
Nesses termos, é óbvio que os proprietários nada podem fazer a não
ser aceitar qualquer valor que lhe for oferecido, certamente muito
distante do que se pratica no mercado.
Desse modo, não é apenas a lei que Maduro está atropelando. É o bom
senso. Em vez de criar condições para que o déficit habitacional
diminua, a legislação estimula os proprietários a não alugar seus
imóveis, pois a perda é garantida. Mas, num país em que os consumidores
são obrigados a deixar suas digitais nos supermercados para que não
possam voltar à fila e comprar mais do que o autorizado pelo governo,
exigir racionalidade é perda de tempo.
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