sexta-feira, 4 de abril de 2014

Expropriação na Venezuela





O Estado de S. Paulo
 
Em mais um inequívoco passo para a destruição das mais elementares relações econômicas na Venezuela, o governo de Nicolás Maduro deu o exíguo prazo de 60 dias úteis para que proprietários de imóveis residenciais alugados há mais de 20 anos os vendam a seus inquilinos, por um preço estabelecido segundo obscuros critérios do governo, e não os de mercado. Aqueles que se recusarem ou não cumprirem o prazo terão de pagar multas pesadas e poderão ter o imóvel expropriado. 

Essa violência, mais uma no já longo histórico de arbítrio do chavismo, é consequência da regulamentação de uma disposição transitória da Lei de Regularização e Controle dos Arrendamentos de Moradias - um monstrengo aprovado em 2011, ainda sob o governo de Hugo Chávez, que atentou contra os direitos dos proprietários de imóveis residenciais. O falecido caudilho tentava resolver na marra, como era de seu feitio, o crônico déficit habitacional da Venezuela. Não foi suficiente construir a toque de caixa milhares de casas de péssimo acabamento para dá-las aos pobres em troca de sua fidelidade eleitoral; tornou-se necessário avançar sobre os bens privados.

Agora, por força da canetada de Maduro, passou a valer no país a estranha figura da "venda obrigatória" como forma de expropriação. Em qualquer democracia digna desse nome, em que vige o Estado de Direito, ninguém pode ser obrigado a desfazer-se de sua propriedade, a não ser em casos excepcionais, sempre no interesse público e em troca de correta compensação financeira. A Constituição da Venezuela - que Chávez vivia a brandir para dizer que sua truculência estava sempre amparada pela lei - garante o direito de propriedade e estabelece que a expropriação só pode se dar se houver utilidade pública e "mediante sentença firme e pagamento oportuno de justa indenização".

Até onde se sabe, apesar da barafunda de leis de exceção costumeiramente impostas pelo regime chavista, tal proteção constitucional continua válida. Assim, a nova medida do governo Maduro reitera que, na Venezuela, a Constituição, assim como a democracia, é de fachada. Imóveis residenciais alugados há ao menos 20 anos terão de ser vendidos aos inquilinos simplesmente porque, conforme os chavistas interpretam a Constituição, o direito à moradia "é uma obrigação compartilhada entre os cidadãos e o Estado em todos os seus âmbitos". Ou seja, os proprietários de imóveis são, queiram ou não, "sócios" do Estado no esforço de fazer com que todos na Venezuela tenham sua casa.

A legislação ora regulamentada declara de interesse público "toda matéria relacionada com o arrendamento de imóveis destinados à habitação". O aluguel de um apartamento, que deveria ser um arranjo privado, torna-se uma questão "estratégica" de Estado, conforme está dito na lei.

Os inquilinos não podem ser despejados em nenhuma hipótese e eles são, por definição, os compradores preferenciais do imóvel. Se esses inquilinos não puderem ou não quiserem adquirir o imóvel, os proprietários não podem procurar outro comprador - eles são obrigados a vender para o governo, que estabelece o preço. Ainda não se conhecem os critérios para fixar esse "justo valor", porque o governo, às voltas com o descontrole da economia, não estabeleceu o custo do metro quadrado para fins de desapropriação. Mas já se sabe que esse custo não levará em conta nem a inflação, na casa dos 50% anuais, nem as leis da oferta e da procura.

Nesses termos, é óbvio que os proprietários nada podem fazer a não ser aceitar qualquer valor que lhe for oferecido, certamente muito distante do que se pratica no mercado.

Desse modo, não é apenas a lei que Maduro está atropelando. É o bom senso. Em vez de criar condições para que o déficit habitacional diminua, a legislação estimula os proprietários a não alugar seus imóveis, pois a perda é garantida. Mas, num país em que os consumidores são obrigados a deixar suas digitais nos supermercados para que não possam voltar à fila e comprar mais do que o autorizado pelo governo, exigir racionalidade é perda de tempo.

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