No livro
Teoria Democrática, Giovanni Sartori discutia o significado da democracia em um mundo politicamente polarizado pela Guerra Fria
[1].
Nesse trabalho, Sartori avaliou a importância — talvez o melhor seria
dizer: a necessidade — de uma definição que satisfizesse certas
exigências analíticas do conceito de democracia. Entendia ele que, no
chamado “mundo livre”, vivia-se em uma era da “confusão democrática”. E,
de fato, ele estava certo ao afirmar que nenhum termo-chave do universo
político-jurídico prestava-se a interpretações tão controversas quanto a
palavra “democracia”. Basta lembrar que muitas das ditaduras do
cone-sul (senão, todas elas) insistiam em se anunciar como
“democráticas”, sendo que seus governos de exceção, geridos por juntas
militares ou assemelhados, justificavam-se como uma necessidade
justamente para a defesa da democracia e da liberdade contra o fantasma
do comunismo.
Em 1989, o maior símbolo desse mundo polarizado
ruiu, e a guerra fria acabou enterrada pelo entulho e pela poeira de sua
destruição.
Porém, isso não significou uma alteração nas coordenadas conceituais
equívocas que caracterizavam a era da “confusão democrática”. A aparente
generalização da democracia como fórmula mundial de governo não
contribuiu para que o mar de interpretações divergentes ou
contraditórias sobre o seu significado ficasse, digamos assim, um pouco
mais calmo. Ao contrário, à exceção daqueles que, precipitadamente,
viram a dissolução da União Soviética como uma manifestação do fim da história,
é possível afirmar que essa pretensa universalização da fórmula
democrática de governo aumentou — em vez de diminuir — esse estado de
embaraço semântico-conceitual.
No cone-sul, as ditaduras que
queriam ser chamadas de democracias foram se esfarelando uma a uma. Em
alguns casos, antes mesmo que a queda do muro de Berlim estabelecesse o
marco definitivo do crepúsculo soviético. E, no lugar da
pseudodemocracia, anunciava-se a era da efetiva democracia. Na África do
Sul, o regime do apartheid foi derrotado e, em seu lugar,
erigiu-se um governo que se dizia inclusivo, não racial e democrático.
No Leste Europeu, na Ásia, na Oceania, cada vez mais, apareciam nações
que adotavam a democracia e suas instituições como fórmula de governo.
Porém, não tardou muito para que cientistas políticos e sociólogos
começassem a perguntar: serão mesmo, todas essas “novas democracias”,
democracias?
Novamente, então, a questão da definição conceitual,
posta por Sartori anos antes, voltava a ser um problema importante para a
avaliação critica do regime político, efetivamente praticado,
nessas nações que pretendiam se reinventar politicamente a partir da
fórmula democrática. Ou seja: o que existe entre o nome e a coisa; entre
o rótulo e aquilo que, de fato, encontramos nas vivencias dessas
comunidades.
Alguns autores, como é o caso de Guilhermo O’Donnell, procuravam recuperar Robert Dahl e seu conceito de poliarquia
para se livrar do embaraçoso problema de ter que chamar de democracia
um regime político que não parecia satisfazer às expectativas projetadas
pelo conceito, que envolvem um regime de inclusão, com igualdade
política universalizada e efetiva participação do povo nas deliberações
públicas fundamentais (importante considerar que, na fórmula de Dahl, ou
mesmo na discussão de Sartori, essa situação não representa uma
peculiaridade de países periféricos, mas se aplicam, também, à modelos
políticos experimentados na modernidade central).
Desse modo, em
vez de perguntar se um determinado regime político satisfaz as
exigências conceituais da democracia, cria-se um termo novo que pode ser
atribuído a todas as realidades que, preenchendo certos requisitos,
façam jus a ele. Trata-se de um conceito, poder-se-ia dizer, menos
exigente que o de democracia. Porém, Sartori, já ao tempo em que
escreveu Teoria Democrática, não aceitava essa solução. Dizia
ele que as dificuldades em torno de definir o que seja a democracia não
poderiam ser solucionadas de uma forma simples: criando-se um termo novo
que se apresentasse como um rótulo mais adequado para a realidade
encontrada nos Estados que se pretendem “democráticos”. Até porque,
dizia Sartori, é exatamente em regimes precários, “onde a democracia é
desafiada”, que “respostas provisórias não servem”.
Para Sartori, é
impossível abrirmos mão da dimensão deontológica do conceito de
democracia. Ou seja, uma democracia só existe quando determinados ideais
e valores podem ser transformados em realidades. Isso significa que,
quando se pretende falar em democracia, não é possível aceitar a máxima
de que “qualquer coisa serve”. Não basta simplesmente observar a
existência de instituições que funcionem dentro de certa normalidade e
que possuem espaços ocupados por pessoas legitimadas pelo voto popular,
colhido em eleições periódicas e regulares, sem que nelas se observem
embaraços ou interferências indevidas. O conceito de democracia exige
certo compromisso com uma dimensão de dever ser: deve haver na
realidade analisada níveis aceitáveis de concretização de direitos
fundamentais, com inclusão e projeção universal de igualdade política
entre os cidadãos.
No entanto, criar uma definição de democracia
não representa tarefa fácil. Os manuais que usamos nos cursos de
Direito, nas disciplinas de Teoria do Estado ou Direito Constitucional,
que o digam. Parcela considerável desse material opta por enfrentar o
problema da definição conceitual de democracia a partir da tática mais
elementar e que, de plano, é rejeitada por Sartori: a etimológica.
Todo estudante de Direito já ouviu ou leu, em algum estágio do curso,
que democracia significa “poder do povo” (ou, de forma ainda mais
vulgarizada, governo do povo). Ora, essa é uma definição vazia e
absolutamente imprecisa. Além de soar paradoxal com relação àquilo que
efetivamente encontramos na prática política de diversos Estados, pesa
ainda contra ela o fato de apontar de forma muito transparente para o
ideal de autogoverno que, em termos contemporâneos, exige uma construção
bastante complexa.
Sartori propõe, então, que busquemos uma
definição que, sem perder de vista os elementos deontológicos/normativos
da democracia, seja também consciente da necessidade descritiva que
esse conceito deve possuir. Vale dizer: é preciso que essa definição nos
permita analisar aquilo que a política realmente “é”. Assim, uma
definição adequada deve ser, ao mesmo tempo, descritiva e prescritiva.
Esse
texto de Sartori mostra-se de grande validade para quem busca
compreender o conturbado momento político que vivemos por aqui, em
terras brasileiras. Cabe-nos perguntar: nossa “democracia” pode mesmo
ser chamada de democracia? E isso vem à tona não apenas porque estamos
vivenciando um processo de impeachment. Mais do que isso, os
primeiros dias do governo interino deram amostras de que o modelo de
governo de coalizão — nomeado, ainda na década de 1980, por Sérgio
Abranches como presidencialismo de coalizão — encontra-se mais
vivo do que nunca. Desde a redemocratização, essa fórmula de
estabilização da governabilidade foi uma espécie de bênção mista:
permitiu o avanço de algumas necessárias reformas, a conquista da
estabilidade econômica e a expansão dos direitos sociais, incrementando
nossos índices de inclusão; por outro lado, é nela que se encontra a
raiz dos principais escândalos de corrupção das últimas décadas, além de
contribuir para elevação do nível de fisiologismo na política.
Portanto,
precisamos começar rapidamente a construir as condições para deixar de
lado a perspectiva do combate — que acirrou e ainda acirrará os ânimos
em razão dos desdobramentos do processo de impeachment — para fomentar um debate sobre o que podemos dizer sobre a nossa democracia. Nessa discussão, o presidencialismo de coalizão
estará no banco dos réus. Se é possível afirmar que nele se encontra
uma forma de explicação do funcionamento de nosso sistema político,
falta-lhe, por outro lado, a necessária dimensão deontológica e
normativa que está presente no conceito de democracia. Sem falarmos
amplamente sobre isso, não avançaremos. Continuaremos a vivenciar, a
cada novo governo que se forma — seja ele interino ou não — um eterno
retorno ao mesmo. E, por isso, mais do que dizer que queremos
democracia, precisamos saber responder qual democracia queremos!
[1] SARTORI, Giovanni.
Teoria Democrática. São Paulo: Editora Fundo de Cultura, 1965,
passim.