segunda-feira, 6 de junho de 2016

A definição de democracia em uma era de confusão democrática







No livro Teoria Democrática, Giovanni Sartori discutia o significado da democracia em um mundo politicamente polarizado pela Guerra Fria[1]. Nesse trabalho, Sartori avaliou a importância — talvez o melhor seria dizer: a necessidade — de uma definição que satisfizesse certas exigências analíticas do conceito de democracia. Entendia ele que, no chamado “mundo livre”, vivia-se em uma era da “confusão democrática”. E, de fato, ele estava certo ao afirmar que nenhum termo-chave do universo político-jurídico prestava-se a interpretações tão controversas quanto a palavra “democracia”. Basta lembrar que muitas das ditaduras do cone-sul (senão, todas elas) insistiam em se anunciar como “democráticas”, sendo que seus governos de exceção, geridos por juntas militares ou assemelhados, justificavam-se como uma necessidade justamente para a defesa da democracia e da liberdade contra o fantasma do comunismo.

Em 1989, o maior símbolo desse mundo polarizado ruiu, e a guerra fria acabou enterrada pelo entulho e pela poeira de sua destruição.
 
Porém, isso não significou uma alteração nas coordenadas conceituais equívocas que caracterizavam a era da “confusão democrática”. A aparente generalização da democracia como fórmula mundial de governo não contribuiu para que o mar de interpretações divergentes ou contraditórias sobre o seu significado ficasse, digamos assim, um pouco mais calmo. Ao contrário, à exceção daqueles que, precipitadamente, viram a dissolução da União Soviética como uma manifestação do fim da história, é possível afirmar que essa pretensa universalização da fórmula democrática de governo aumentou — em vez de diminuir — esse estado de embaraço semântico-conceitual.

No cone-sul, as ditaduras que queriam ser chamadas de democracias foram se esfarelando uma a uma. Em alguns casos, antes mesmo que a queda do muro de Berlim estabelecesse o marco definitivo do crepúsculo soviético. E, no lugar da pseudodemocracia, anunciava-se a era da efetiva democracia. Na África do Sul, o regime do apartheid foi derrotado e, em seu lugar, erigiu-se um governo que se dizia inclusivo, não racial e democrático. No Leste Europeu, na Ásia, na Oceania, cada vez mais, apareciam nações que adotavam a democracia e suas instituições como fórmula de governo. Porém, não tardou muito para que cientistas políticos e sociólogos começassem a perguntar: serão mesmo, todas essas “novas democracias”, democracias?

Novamente, então, a questão da definição conceitual, posta por Sartori anos antes, voltava a ser um problema importante para a avaliação critica do regime político, efetivamente praticado, nessas nações que pretendiam se reinventar politicamente a partir da fórmula democrática. Ou seja: o que existe entre o nome e a coisa; entre o rótulo e aquilo que, de fato, encontramos nas vivencias dessas comunidades.

Alguns autores, como é o caso de Guilhermo O’Donnell, procuravam recuperar Robert Dahl e seu conceito de poliarquia para se livrar do embaraçoso problema de ter que chamar de democracia um regime político que não parecia satisfazer às expectativas projetadas pelo conceito, que envolvem um regime de inclusão, com igualdade política universalizada e efetiva participação do povo nas deliberações públicas fundamentais (importante considerar que, na fórmula de Dahl, ou mesmo na discussão de Sartori, essa situação não representa uma peculiaridade de países periféricos, mas se aplicam, também, à modelos políticos experimentados na modernidade central).

Desse modo, em vez de perguntar se um determinado regime político satisfaz as exigências conceituais da democracia, cria-se um termo novo que pode ser atribuído a todas as realidades que, preenchendo certos requisitos, façam jus a ele. Trata-se de um conceito, poder-se-ia dizer, menos exigente que o de democracia. Porém, Sartori, já ao tempo em que escreveu Teoria Democrática, não aceitava essa solução. Dizia ele que as dificuldades em torno de definir o que seja a democracia não poderiam ser solucionadas de uma forma simples: criando-se um termo novo que se apresentasse como um rótulo mais adequado para a realidade encontrada nos Estados que se pretendem “democráticos”. Até porque, dizia Sartori, é exatamente em regimes precários, “onde a democracia é desafiada”, que “respostas provisórias não servem”.

Para Sartori, é impossível abrirmos mão da dimensão deontológica do conceito de democracia. Ou seja, uma democracia só existe quando determinados ideais e valores podem ser transformados em realidades. Isso significa que, quando se pretende falar em democracia, não é possível aceitar a máxima de que “qualquer coisa serve”. Não basta simplesmente observar a existência de instituições que funcionem dentro de certa normalidade e que possuem espaços ocupados por pessoas legitimadas pelo voto popular, colhido em eleições periódicas e regulares, sem que nelas se observem embaraços ou interferências indevidas. O conceito de democracia exige certo compromisso com uma dimensão de dever ser: deve haver na realidade analisada níveis aceitáveis de concretização de direitos fundamentais, com inclusão e projeção universal de igualdade política entre os cidadãos.

No entanto, criar uma definição de democracia não representa tarefa fácil. Os manuais que usamos nos cursos de Direito, nas disciplinas de Teoria do Estado ou Direito Constitucional, que o digam. Parcela considerável desse material opta por enfrentar o problema da definição conceitual de democracia a partir da tática mais elementar e que, de plano, é rejeitada por Sartori: a etimológica. Todo estudante de Direito já ouviu ou leu, em algum estágio do curso, que democracia significa “poder do povo” (ou, de forma ainda mais vulgarizada, governo do povo). Ora, essa é uma definição vazia e absolutamente imprecisa. Além de soar paradoxal com relação àquilo que efetivamente encontramos na prática política de diversos Estados, pesa ainda contra ela o fato de apontar de forma muito transparente para o ideal de autogoverno que, em termos contemporâneos, exige uma construção bastante complexa.

Sartori propõe, então, que busquemos uma definição que, sem perder de vista os elementos deontológicos/normativos da democracia, seja também consciente da necessidade descritiva que esse conceito deve possuir. Vale dizer: é preciso que essa definição nos permita analisar aquilo que a política realmente “é”. Assim, uma definição adequada deve ser, ao mesmo tempo, descritiva e prescritiva.

Esse texto de Sartori mostra-se de grande validade para quem busca compreender o conturbado momento político que vivemos por aqui, em terras brasileiras. Cabe-nos perguntar: nossa “democracia” pode mesmo ser chamada de democracia? E isso vem à tona não apenas porque estamos vivenciando um processo de impeachment. Mais do que isso, os primeiros dias do governo interino deram amostras de que o modelo de governo de coalizão — nomeado, ainda na década de 1980, por Sérgio Abranches como presidencialismo de coalizão — encontra-se mais vivo do que nunca. Desde a redemocratização, essa fórmula de estabilização da governabilidade foi uma espécie de bênção mista: permitiu o avanço de algumas necessárias reformas, a conquista da estabilidade econômica e a expansão dos direitos sociais, incrementando nossos índices de inclusão; por outro lado, é nela que se encontra a raiz dos principais escândalos de corrupção das últimas décadas, além de contribuir para elevação do nível de fisiologismo na política.

Portanto, precisamos começar rapidamente a construir as condições para deixar de lado a perspectiva do combate — que acirrou e ainda acirrará os ânimos em razão dos desdobramentos do processo de impeachment — para fomentar um debate sobre o que podemos dizer sobre a nossa democracia. Nessa discussão, o presidencialismo de coalizão estará no banco dos réus. Se é possível afirmar que nele se encontra uma forma de explicação do funcionamento de nosso sistema político, falta-lhe, por outro lado, a necessária dimensão deontológica e normativa que está presente no conceito de democracia. Sem falarmos amplamente sobre isso, não avançaremos. Continuaremos a vivenciar, a cada novo governo que se forma — seja ele interino ou não — um eterno retorno ao mesmo. E, por isso, mais do que dizer que queremos democracia, precisamos saber responder qual democracia queremos!

[1] SARTORI, Giovanni. Teoria Democrática. São Paulo: Editora Fundo de Cultura, 1965, passim.

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