terça-feira, 28 de junho de 2016

Abusos do governo federal agravaram deterioração financeira estadual







Em 2012, o economista Daron Acemoglu, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), e o cientista político James Robinson, da Universidade Harvard, ficaram famosos com a publicação de Why Nations Fail: The Origins of Power, Prosperity, and Poverty (Nova Iorque: Crown Publishers, 2012).[1] O best-seller parte de uma perspectiva institucionalista, para oferecer uma reinterpretação das razões que historicamente levaram nações ao sucesso e ao fracasso, em termos econômicos.

Nessa nova proposta teórica, as macroestruturas sociais são agrupadas em duas grandes categorias: instituições extrativistas e instituições inclusivas. E dessa divisão, extrai-se que o sucesso econômico e a prosperidade são resultantes da prevalência do segundo tipo de arranjos institucionais.

Ou seja, esquemas políticos e econômicos fundados no pluralismo, na participação e na inclusão social, com governos garantidores de direitos, rule of law e competitividade nos mercados, seriam os únicos capazes de promover o que o economista Joseph Schumpeter chamou de “destruição criadora”, dispersando a riqueza e o poder entre os membros da sociedade (ao invés de concentrar recursos em uma pequena elite privilegiada) e, assim, garantindo um crescimento sustentável de longo prazo.

Aí está seu grande mérito: distanciando-se das velhas teorias da modernização, que tendem a atribuir a pobreza, o baixo crescimento e o acúmulo nas mãos de poucos a fatores culturais, étnicos, religiosos, ou mesmo geográficos, a dupla desconstrói uma série de mitos sobre o desenvolvimento e o progresso econômicos. Para eles, é a forma como instituições político-econômicas são moldadas que, em última análise, determina quais países serão ricos e quais serão pobres.

Em que pese a importância desse trabalho, não se pode deixar de destacar uma deficiência. Como bem percebeu o sociólogo Roberto Patricio Korzeniewicz, não são apenas elementos internos que ditam o futuro de um povo.[2] Embora Acemoglu e Robinson tenham acertado na opção pelo institucionalismo,[3] no lugar de visões preconceituosas sobre as sociedades humanas, eles incorrem no erro de tomar Estados-nação como se fossem “ilhas”, ignorando o forte papel exercido por estruturas “para além do horizonte nacional” (como as dinâmicas do capitalismo global) na performance econômica de cada país.[4]

Se essa crítica se mostra adequada no plano das relações internacionais, faz muito mais sentido quando se analisa o desempenho de estados-membros que compõem uma federação. Afinal, todo Estado federal é composto por uma União que se coloca acima das demais unidades políticas, exercendo sobre elas influência direta e constante.

No Brasil, é a própria Constituição Federal de 1988 que diz, já em seu primeiro artigo, que a república federativa é “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”. Logo, ações levadas a cabo pelo governo central, sobretudo no campo econômico-financeiro, inevitavelmente repercutirão nos entes menores, tanto positiva quanto negativamente.

Pois é precisamente essa a conclusão de um cuidadoso estudo realizado pela Auditoria Cidadã da Dívida acerca da crise dos estados brasileiros, no contexto do exame pelo STF do artigo 3º da LC 148/14 (desconto da dívida com a União).[5] O referido estudo se posicionou a favor dos mandados de segurança impetrados pelos estados, “[...] tendo em vista que referidos julgados minoram os impactos das numerosas ilegalidades perpetuadas ao longo dos últimos 17 anos [pela União].”[6]

De fato, a União sistematicamente impôs e continua a impor perdas arrecadatórias aos governos estaduais, inviabilizando a quitação da dívida.[7] Um exemplo impressionante compreende os prejuízos da LC 87/96 (apelidada Lei Kandir), que a União insiste em não rever.[8] Para se ter uma ideia, Minas Gerais teve uma perda líquida não compensada correspondente a cerca de R$ 62 bi. Isso é quase o valor total da dívida, que soma mais ou menos R$ 79 bi.

É importante lembrar, ainda, aquilo que o ministro Gilmar Mendes denominou de “inversão do quadro de partilha constitucional”:[9] ao longo dos anos, a União aprovou renúncias a tributos cuja arrecadação deve ser compartilhada com os estados (exonerações do IPI, como em 2009; deduções no IR) e, para cobrir seu déficit, ampliou as contribuições sociais (tributos não compartilhados), desvinculando parcela das receitas. Com isso, os recursos foram se concentrando no ente federativo maior, em claro movimento centrípeto, contrário à tendência centrífuga idealizada pelo constituinte de 1988.[10]

Para piorar, os estados receberam os encargos mais gravosos, como educação, saúde, segurança pública, previdência.[11] Não é de se espantar, pois, que tenham ficado com suas finanças combalidas, sendo hoje os mais endividados,[12] o que coloca em sério risco a autonomia estadual e a prestação de serviços essenciais à garantia da dignidade humana.[13] Como noticiado pela Folha de S. Paulo,[14] a situação só não é mais dramática por conta das leis que autorizaram o uso de depósitos judiciais e/ou extrajudiciais, cuja constitucionalidade está em discussão no STF.[15]

Se, por um lado, falece aos estados competência para “inventar” outras fontes de recursos, não podendo sequer emitir moeda para equilibrar suas finanças, tal como faz constantemente o ente federal,[16] por outro, cabe a eles, em essência, os maiores gastos com pessoal, porque devem arcar, notadamente, com as despesas com polícia e professores primários, para não falar nos dispendiosos sistemas de saúde e previdenciário. Em Minas Gerais, isso tudo consome em torno de 88% do orçamento, mesmo sendo o padrão remuneratório de seus servidores significativamente inferior ao da União.

Como consequência, não restou outra alternativa aos estados senão cortar despesas fulcrais, sacrificando sua própria capacidade operacional. Mas esses ajustes não resolvem o problema, apenas o retardam. O verdadeiro desafio é eliminar a obrigação de verter recursos de “baixo para cima”, com o pagamento juros a taxas elevadíssimas à União.

Aliás, uma questão que passou despercebida é que a exigência da Selic capitalizada nem mesmo é a taxa mais apropriada para indicar o custo de captação de recursos no mercado financeiro. Corresponde, na verdade, à taxa média de financiamento no mercado interbancário para operações de curtíssimo prazo, lastreadas em títulos públicos federais e com compromisso de recompra. Essas operações, que remuneram a chamada taxa de overnight (cuja média ponderada apurada é justamente a Selic), ocorrem em apenas um dia. Trata-se de uma taxa média do mercado para operações de curtíssimo prazo, nas quais o custo efetivo é significativamente maior do que ocorreria em operações de longo prazo (em 20, 30 ou 40 anos, como é o caso da dívida dos estados).

O que deve ficar claro é que foram os inúmeros abusos cometidos pelo governo federal,[17] atentatórios ao federalismo cooperativo de participação, que terminaram por agravar o quadro de deterioração financeira estadual. Pode-se mesmo afirmar que a União tentou equilibrar suas contas aumentando a carga tributária global e cobrando juros escorchantes dos estados. Vários tiveram de apertar os cintos[18] e, agora, começam a colocar em risco a possibilidade de atender a direitos humanos fundamentais da população.[19]

É inadmissível pensar que, mesmo com atrasos e parcelamentos dos salários de servidores estaduais, subsista a obrigação dos estados de comprometerem de 11% a 15% de suas receitas para pagar juros à União. Nesse compasso, não podendo sequer pagar a folha, só lhes restará cortar gastos inarredáveis (menos gasolina na viatura da PM; menos medicamentos; presídios superlotados, etc.). Naturalmente, readequações ainda podem ser feitas, mas o volume de recursos que saem na forma de juros para a União é enorme e mortal para os estados e, consequentemente, para o próprio federalismo.

Caso o STF decidisse favoravelmente aos estados (prestigiando os comandos manifestos do legislador complementar), a União teria de diluir a “perda” pelos próximos 22 anos. Isso significa que o alegado rombo de aproximadamente R$ 300 bilhões (de uma dívida federal de mais de R$ 3 trilhões) seria diluído até 2038 — uma gota d’água no oceano de recursos à disposição do governo federal. Não por outra razão, concluiu a Nota Técnica da Auditoria Cidadã da Dívida que “a União não quebra com a aplicação dos juros simples”.

Contribuintes de que estado forem (mais pobres ou mais ricos) já não suportam mais pagar juros e tributos para engordar os cofres federais, assim sujeitando-se, cada vez mais, aos mandos e desmandos de um distante, concentrado e incontrolável governo central. O ideal democrático incorporado pelo direito constitucional brasileiro exige que se privilegie a descentralização, impondo-se sempre uma interpretação jurídica pró-federação.

Na lição de Dalmo de Abreu Dallari: “O respeito ao Federalismo como princípio deve condicionar a legislação, as iniciativas e ações dos governos e também as decisões judiciais. Todo ato com implicações jurídicas que for antifederativo será, por isso mesmo, inconstitucional.”[20]


1 A obra, já com tradução para o português, recebeu elogios de diversos ganhadores do “Nobel de Economia” (Kenneth Arrow, Gary Becker, Peter Diamond, Michael Spence, Robert Solow), bem como de importantes nomes das ciências sociais (Niall Ferguson, Francis Fukuyama, Ian Morris, Dani Rodrik).
2 Cf. KORZENIEWICZ, R.P. The logic of global capitalism: “Why nations fail” has been widely praised for its explanatory power. But it oversimplifies the workings of global capitalism. Jacobin, 30 out. 2015 (https://www.jacobinmag.com/2015/10/robinson-acemoglu-inclusive-extractive-poverty-wealth/).
3 Associado a quatro nobelistas: Ronald Coase, Douglass North, Elinor Ostrom e Oliver Williamson.
4 Para uma investigação mais profunda, cf. BATISTA Jr., O.A. O outro Leviatã e a corrida ao fundo do poço: guerras fiscais e precarização do trabalho, a face perversa da globalização, a necessidade de uma ordem econômica global mais justa. São Paulo: Almedina, 2015.
5 Para uma melhor compreensão da controvérsia, remetemos o leitor a nossa coluna anterior: http://www.conjur.com.br/2016-abr-25/recalculo-divida-estados-quem-realmente-paga-pato.
7 O que já era observado no ano de 1999 pelos mais renomados juristas e professores de direito (Aloízio Gonzaga de Andrade de Araújo, Misabel Abreu Machado Derzi, Lúcia Valle Figueiredo, Américo Masset Lacombe, Dalmo de Abreu Dallari, Eros Roberto Grau, Fábio Konder Comparato, Menelick de Carvalho Netto, Celso Antônio Bandeira de Mello, José Alfredo de Oliveira Baracho, Sebastião Alves dos Reis), que contribuíram com relevantes pareceres e artigos para o primeiro volume da Revista da Procuradoria Geral do Estado de Minas Gerais, intitulada Direito Público, sob a temática O Pacto Federativo e os Contratos de Renegociação de Dívida entre a União e os Estados Federados.
8 A propósito, cf. ARRETCHE, M. Continuidades e descontinuidades da federação brasileira: de como 1988 facilitou 1995. In: ARRETCHE, M. Democracia, federalismo e centralização no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2012, p. 33-75.
9 Tributação e finanças públicas na Constituição Federal de 1988. In: MENDES, G.F.; BRANCO, P.G.G. Curso de direito constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 1.346-1.380, p. 1.353 et seq.
10 Como registrou o ministro Fachin (http://s.conjur.com.br/dl/ms-dividas-estados-uniao-voto-fachin.pdf): “No campo da receita, há um acirramento dos conflitos acerca da distribuição da carga tributária, uma vez que no exercício financeiro de 2014 a Secretaria da Receita Federal noticia que a União deteve 68,47% da arrecadação, ao passo que os Estados ficaram com 25,35% e os Municípios, 6,19% do total (BRASIL. MINISTÉRIO DA FAZENDA. SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL. Carga Tributária no Brasil – 2014: análise por tributo e bases de incidência. Brasília: Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros, 2015, p. 5).”
11 Também é preciso salientar o dever de garantir as condições mínimas de integridade física e moral dos presos, previsto tanto na CRFB/88, quanto em documentos internacionais (Pacto dos Direitos Civis e Políticos, Convenção Interamericana de Direitos Humanos), mormente depois da ADPF 347, em que o STF passou a adotar a chamada Teoria do Estado de Coisas Inconstitucional.
12Asfixiados pelo encolhimento da economia e da arrecadação de impostos, os Estados sofrem mais diretamente que o governo federal o impacto da crise orçamentária. Enquanto a União consegue se endividar no mercado financeiro e postergar as medidas mais amargas de ajuste, os governos estaduais dispõem de poucas opções para equilibrar suas contas – além de elevar tributos e atrasar pagamentos quanto falta dinheiro no caixa.” (http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2016/05/1775806-queda-na-arrecadacao-no-brasil-deixa-estados-mais-estrangulados.shtml).
13 Nesse sentido, o terceiro volume da Direito Público: Revista da Procuradoria Geral do Estado de Minas Gerais, de 2000, voltou a abordar a difícil questão relativa ao pagamento do serviço da dívida, porém tomando – nos dizeres da Profa. Misabel Derzi, então Procuradora-Geral do Estado de Minas Gerais – “como unidade temática Os Direitos Humanos Fundamentais, neles incluídos, como não poderia deixar de ser, os direitos sociais, talvez o mais belo e importante tema jurídico, a própria raiz do Direito.
16 Dentre os impostos constitucionalmente reservados aos estados (art. 155), estão o ICMS (cuja base foi, no decorrer dos anos, esvaziada pela “guerra fiscal”, sob o beneplácito da União) e outros dois de baixo potencial arrecadatório, o IPVA e o ITCMD (este, ainda limitado à alíquota de 8%, por resolução do Senado Federal). Podem até instituir taxas (art. 145, II) e contribuições de melhoria (art. 145, III), mas tais figuras tributárias têm finalidade meramente retributiva, e não contributiva – não se prestam a abastecer os cofres estaduais, restando limitadas ao valor do serviço e da fiscalização (no primeiro caso) ou da obra (no segundo caso). No mais, inexiste previsão de empréstimos compulsórios estaduais e, no campo das contribuições sociais, só há possibilidade de cobrança de exações cuja receita é inteiramente vinculada, a saber, as contribuições previdenciárias de seus respectivos servidores (art. 149, § 1º). Enfim, só a União pode emitir moedas (art. 21, VII) e estabelecer políticas monetárias, cambiárias, creditícias e de comércio exterior (art. 21, VIII; art. 22, VI, VII e VIII), sendo o único ente competente para criar novos tributos (art. 154, I; art. 195, § 4º).
17A dívida e os contratos dos entes federados se encontrarem inflados por ilegalidades e ilegitimidades desde a origem dos convênios firmados com base na Lei 9.496/97, cuja gênese está expressa em Carta de Intenções de dezembro/1991 com o FMI, itens 24 e 26.” (http://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2016/04/Nota-Te%CC%81cnica-ACD-1.2016-para-o-STF.pdf).
18 Nos informa o economista José Roberto Afonso (em apresentação na Câmara dos Deputados de 28/04/2015), especialista em contas estaduais, que: “Governos estaduais e municipais apoiam e já promovem um ajuste em suas contas mais profundo até que o Governo Central.” Mesmo dispondo de um ¼ a menos de receita tributária e possuindo um raio mínimo de manobra, “o superávit primário dos governos regionais (R$ 10,5 bilhões) superou o do governo central (R$ 10 bilhões)”. O resultado, como observa o professor e pesquisador da FGV, é ainda mais valorizado devido à (1) forte queda da arrecadação estadual no início deste ano, sendo muito maior do que a do governo federal (recuo real na casa de 5% do ICMS e 3% do FPE/FPM); (2) impossibilidade de criar ou majorar contribuições, como a União.
19 Mais uma vez, vale transcrever as palavras do ministro Fachin (http://s.conjur.com.br/dl/ms-dividas-estados-uniao-voto-fachin.pdf), que buscou a filosofia de Hannah Arendt para ressaltar “o ideal de promoção da cidadania em sua dimensão fiscal na República Federativa do Brasil, sob as luzes da necessária conexão entre direitos fundamentais, cidadania e finanças públicas, traduzível no ‘direito a ter direitos’, célebre expressão de Hannah Arendt.
20 Implicações do pacto federativo. Direito Público: Revista da Procuradoria Geral do Estado de Minas Gerais, v. 1, n. 1, p. 77-82, 1999, p. 78.

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