O País ganha uma janela de oportunidade com o campo de libra, que
pode garantir até R$ 1 trilhão em divisas nos próximos 35 anos. O
pré-sal, finalmente, decolou
Por Carla JIMENEZ
Confira os bastidores da reportagem da editora de economia, Carla Jimenez
Na manhã da segunda-feira 21, o senador Delcídio Amaral (PT-MS),
tuiteiro contumaz, anunciou, em 127 caracteres, que o leilão a ser
realizado naquela tarde, no Rio de Janeiro, poderia surpreender. “Leilão
de Libra: a probabilidade de um consórcio estatal vencer é grande.
Qualquer surpresa pode passar pela Shell.
A conferir!” Às 15 horas, no
hotel Barra Windsor, na Barra da Tijuca, a previsão de Amaral mostrou-se
acertada. Ao contrário do que se pensava até a véspera, o grupo
vencedor não se restringiu a uma aliança entre as estatais chinesas e a
Petrobras nem foi marcado pela ausência das maiores petroleiras privadas
do mundo.
Ontem e hoje: em 1948, o País clamava pelo monopólio do petróleo. Na semana passada,
a Petrobras repartiu os 12 bilhões de barris do Campo de Libra com a iniciativa privada
O envelope entregue no último minuto do tempo regulamentar trazia
uma proposta com a assinatura da anglo-holandesa Shell, a segunda da
lista no Global Energy Company Ranking, bem como do conglomerado francês
Total (7ª na lista) e das chinesas Petrochina e CNOOC (9ª e 13ª,
respectivamente), todas elas parceiras no condomínio articulado pela
Petrobras. “Empresa forte atrai empresa forte”, comemorou Graça Foster,
presidente da companhia brasileira, a 18° entre as maiores do setor. Não
houve concorrência no leilão – como o governo já esperava – e o grupo
vencedor pôde oferecer o lance mínimo de partilha do óleo excedente
extraído da área para a União: 41,65%.
Esse seria o critério de desempate em caso de disputa pelo campo da
Bacia de Santos, o que frustrou os mais afoitos. Para explorar o
pré-sal no novo modelo de parceria (partilha, em vez de concessão), o
consórcio irá pagar R$ 15 bilhões à União, dinheiro que vem em boa hora
para reforçar as contas públicas.
O sucesso do leilão viabilizará
investimentos vultosos na cadeia produtiva do petróleo. O ministro da
Fazenda, Guido Mantega, que preside o Conselho da Petrobras, calcula que
serão necessários US$ 181 bilhões ao longo dos 35 anos de vigência do
contrato de Libra. Diante do fracasso de alguns leilões de
infraestrutura neste ano – como o da rodovia 262 –, a conclusão do
certame na semana passada trouxe otimismo ao governo.
“Nós gostaríamos de um valor maior, é claro”, disse a diretora da
Agência Nacional de Petróleo, Magda Chambriard. “Mas, desde que
envolvesse as mesmas empresas.” Magda diz ter certeza absoluta de que
Libra terá o desenvolvimento mais correto possível com as cinco
petroleiras. O consórcio vencedor uniu o que para muitos seria uma
mistura entre água e óleo: a estatal brasileira, que deve empregar sua
expertise em exploração na camada pré-sal, com quatro empresas que estão
entre os maiores produtores globais. Somadas, a Petrochina e CNOOC
ficaram com 20% de participação na sociedade, mesmo percentual da Total e
da Shell, enquanto a Petrobras tornou-se majoritária, com 40%.
Martelo batido: o ministro Lobão (2º da esq. para a dir.), entre os representantes
das empresas e da Petrosal, comemora o resultado do leilão
Juntas, vão explorar o potencial estimado entre 8 bilhões e 12
bilhões de barris da reserva do Campo de Libra. Em cadeia nacional, a
presidenta Dilma Rousseff capitalizou a vitória e as receitas que
receberá em forma de royalties, petróleo excedente e bônus de R$ 15
bilhões, além de impostos. “Em 35 anos, será arrecadado mais de R$ 1
trilhão, que será gasto em educação e saúde”, disse a presidente. Para
as sócias privadas, o leilão criou um horizonte promissor de bons
negócios, uma vez que será possível extrair o ouro negro a preços
competitivos. “Queremos aproveitar a experiência global da Shell em
águas profundas para dar suporte a essa extraordinária oportunidade”,
disse Peter Voser, presidente mundial da Shell.
O interesse da companhia anglo-holandesa já era de conhecimento do
Planalto havia algum tempo. Em maio deste ano, o executivo suíço tentava
um encontro com a presidente Dilma Rousseff, mas não conseguia se
acertar com a agenda oficial. A Shell, então, pediu a intervenção do
senador Delcídio Amaral para articular uma reunião. “A partir dali,
começaram encontros sistemáticos, que confirmaram o papel estratégico do
Brasil para a Shell”, diz o senador. Segundo ele, Voser saíra bastante
impressionado do primeiro encontro com a presidente, convencido da
seriedade dos interlocutores brasileiros.
VELHAS CONHECIDAS Com um faturamento de US$ 467
bilhões em 2012, três vezes e meia a receita da Petrobras, a Shell
fincou raízes no Brasil há um século e vinha fortalecendo o papel da
corporação no setor de energia. Um dos lances mais ousados foi feito em
2010, quando se uniu à Cosan na joint venture Raízen, para a produção de
etanol. O grupo já trabalha também em dobradinha com a Petrobras em
alguns blocos na Bacia do Espírito Santo. No início de outubro, a
companhia adquiriu a participação da estatal brasileira num bloco
uruguaio por US$ 17 milhões. A francesa Total, por sua vez, que faturou
US$ 232 bilhões em 2012, com presença em 130 países, também tem
operações conjuntas com a Petrobras na Bacia de Campos e na Foz do
Amazonas.
Velhas conhecidas, Total e Shell participam de joint ventures na
Nigéria. Da mesma forma, a petroleira anglo-holandesa mantém parcerias
com os chineses em vários projetos globais. “Trabalhamos com a
CNPC (Petrochina) e com a CNOOC há bastante tempo”, diz André Araújo,
presidente da Shell do Brasil. “Somos parceiros deles dentro e fora da
China.” Segundo Araújo a associação em Libra vinha sendo costurada há
alguns meses e foi facilitada, sem dúvida, pelo conhecimento anterior
entre os protagonistas. Com a entrada no consórcio, as
asiáticas asseguraram uma reserva futura fundamental, uma vez que a
China é importadora de petróleo, cuja demanda cresce à medida que a
renda da população aumenta e se transforma em consumo.
O mercado dava como certo que as duas petroleiras seriam autoras de
lances agressivos, o que terminou não se confirmando – a
hispano-chinesa Repsol Sinopec, também inscrita no certame, acabou,
inclusive, desistindo de fazer um lance pouco antes da abertura do
envelope vencedor. “As chinesas estão considerando mais projetos de
produção de curto prazo”, afirma Carlos Assis, sócio do Centro de
Energia Sustentável da consultoria EY, a antiga Ernst Young. “Essas
grandes reservas no longo prazo garantem o futuro e completam o
portfólio delas.” Por ora, o maior interesse da China seria a parceria
com a Petrobras em refinarias – a Sinopec já tem um acordo de intenções
de investir nas unidades de refino Premium I e Premium II, no Maranhão e
no Ceará, respectivamente.
Assis acredita que, se as asiáticas tivessem entrado sozinhas, as
chances de sucesso não seriam as mesmas que as criadas pelo consórcio
vencedor. “A formação é muito positiva e haverá um alinhamento natural
entre os sócios em busca de custos mais competitivos e do melhor retorno
para seus acionistas”, afirma. Jean Paul Prates, diretor do Centro de
Estratégias em Recursos Naturais e Energia, concorda com ele. Para
Prates, a entrada das quatro empresas no grupo representa um equilíbrio
fundamental, diante dos desafios implícitos na exploração do pré-sal.
“Isso vai dar agilidade ao consórcio, porque a Petrobras não terá
maioria”, avalia. Já a Shell e a Total consolidam suas estratégias
globais em óleo e gás, dada a importância da nova bacia. “São empresas
que precisam buscar a aquisição de novas reservas, pois estavam perdendo
espaço no mercado mundial.” Na segunda-feira 21, conhecido o resultado
do leilão, o presidente da Total no Brasil, Denis de Besset, confirmou a
importância do ingresso no clube de Libra, que eleva as operações do
grupo em território nacional a outro patamar. “O Brasil é um país
estratégico para nós”, disse Besset.
“Somos um dos líderes do mundo em exploração em águas profundas e
em projetos de grande magnitude, duas características presentes aqui.” A
Total já tem engatilhado um plano de investimentos de cerca de US$ 300
milhões no Brasil em 2014, sem incluir as somas demandadas por Libra.
“Não vamos parar de crescer.” Por sua participação no certame, o
conglomerado francês pagará R$ 3 bilhões ao governo brasileiro,
relativos aos 20% do bônus pela entrada no Campo de Libra. Os grandes
investimentos, entretanto, só começarão a chegar no fim da década,
quando a extração terá início efetivo.
Uma fonte próxima aos chineses estima que eles estariam dispostos a
desembolsar até US$ 50 bilhões tanto para o pré-sal quanto para as
refinarias no Nordeste. Seja como for, nos próximos quatro anos a
prioridade é explorar o bloco. “Nesse período, nossas equipes, em
conjunto com as empresas consorciadas, realizarão as atividades do
programa exploratório mínimo com levantamentos sísmicos 3D em toda a
área do bloco a perfuração de dois poços exploratórios e realização de
um teste de longa duração”, disse a presidenta Graça Foster, em carta
aos funcionários.
Os minoritários: com 20% de participação, a China pode ser o fiel da balança.
Na foto, Magda Chambriard, da ANP, e Edison Lobão, ministro de Minas e Energia,
entre dois representantes chineses
Só então as estimativas sobre o volume de óleo, custos e cronograma
de produção serão conhecidos. A parceria com a iniciativa privada em
Libra é vista como uma janela de oportunidades para a Petrobras, que
tenta recuperar o brilho no mercado. Ganhar um horizonte de longo prazo
com o apoio de grandes nomes do setor fez as ações da estatal subirem
logo após o leilão. No entanto, se, por um lado, a estatal ganha um
reforço fundamental para acertar o rumo dos seus negócios, por outro,
aumenta a pressão sobre a eficiência de sua gestão.
DÚVIDAS NO CAMINHO Há, ainda, dúvidas sobre o
sucesso de modelo de partilha de óleo excedente, que para muitos é uma
incógnita e seria responsável por afastar outras grandes petroleiras da
disputa. “É uma divisão que pode requerer ajustes com o tempo”, diz
Cesar Guzzetti, da Gaffney Cline, responsável pela prospecção de Libra,
que apontou o nível de reservas potenciais na região. Outras
incertezas no caminho são a variação do preço internacional do petróleo
nas próximas décadas, além do custo e da produtividade que serão
alcançados. No dia seguinte ao leilão, o ministro de Minas e Energia,
Edison Lobão, procurou desfazer as desconfianças que pairam no ar.
“Posso tranquilizar o Brasil quanto à Petrobras”, disse Lobão. Segundo
ele, a empresa sabia o que estava fazendo quando decidiu pela
participação nesse projeto. “Ela só assumiu o compromisso depois de uma
avaliação interna e de discutir o assunto.” Trata-se de uma prova de
fogo para a presidente Graça Foster, que precisa retomar a confiança dos
investidores. “Nós trabalhamos alucinadamente para que vocês tenham
muito orgulho de nós, em especial aqueles que investem em nossas ações”,
disse Graça, na quinta-feira 24, depois de uma apresentação para
executivos no evento CEO Summit, em São Paulo.
A executiva aposta no aumento da produção com a extração do óleo em
bacias nas quais estão entrando em operação novas plataformas.
“Queremos ter capacidade de produzir até 4,2 milhões de barris em 2020,
sem contar Libra, e, com isso, colocar as ações da empresa no patamar
que elas merecem estar.” O óleo do Campo de Libra deve começa a jorrar
em 2020, quando entrará em operação uma plataforma por ano, capaz de
produzir 150 mil barris/dia. A expectativa é de que em 2031 seja
atingido o pico da retirada, de 1,4 milhão de barris/dia, equivalente a
65% da produção atual de petróleo no País, de 2,2 milhões de
barris/dia.
Bem antes disso, em 2017, o Brasil já terá se tornado
autossuficiente em petróleo e, melhor ainda, exportador da
matéria-prima, o que pode representar um alívio para a balança
comercial. “São perspectivas auspiciosas por todos os ângulos”, afirma
Cesar Magalhães, presidente da Georadar, de Belo Horizonte,
especializada em estudos sísmicos e geológicos. “Além do óleo em si, uma
indústria local está se consolidando.” Alvo de controvérsias, a
política de conteúdo nacional estabelece que 37% do que as petroleiras
utilizarem em bens de capital, na fase de exploração, deve ser produzido
localmente.
Esse percentual evolui para 55%, em média, na fase de
desenvolvimento, até 2022, e, depois disso, sobe para 59%. Os críticos
dessa política consideram que há grandes chances de engessar os
projetos, se não houver flexibilidade para importar equipamentos em caso
de necessidade. Mas o governo está tranquilo. Os índices de nacionalização foram acordados com as empresas, que teriam proposto, inclusive, porcentuais maiores. O
fato é que o Brasil está mais uma vez diante do clássico dilema de
enxergar o copo meio cheio ou meio vazio, em razão das novas descobertas
de petróleo.
Se bem conduzido o processo de exploração, os ambiciosos projetos
de petróleo podem pressionar pela melhoria de outros nós típicos
brasileiros, como a logística e a burocracia. O setor precisa, por
exemplo, ter a flexibilização das leis trabalhistas para importar mão de
obra qualificada, que será demandada quando a indústria de petróleo
estiver a todo vapor, e de portos eficientes para exportar uma parte da
produção dentro de alguns anos. No caso, o Brasil tem um copo cheio de
petróleo à sua frente, que precisa ser tratado como política de Estado,
seja quem for o governante que assumir o leme no ano que vem.
Do monopolio à partilha
Por Ana Paula Ribeiro e Rodrigo Caetano
A expectativa de uma disputa acirrada pelo leilão de Libra, marcada
para as 14h, pode não ter se confirmado do lado de dentro do Windsor
Barra Hotel, onde foi realizado o certame. Mas o Rio de Janeiro viveu
momentos de embate severos do lado de fora. Manifestantes entraram em
confronto com a polícia e com o Exército, que foi convocado para
garantir a segurança do evento. A avenida Lúcio Costa, onde está
localizado o hotel, precisou ser interditada. Uma hora antes do pleito,
executivos e representantes do governo corriam para dentro das
dependências do hotel fugindo do gás lacrimogêneo que, espalhado pelo
vento, tornava impossível permanecer na rua.
Nas cercanias da sala de conferências, profissionais engravatados
misturavam-se a soldados do Exército e policiais federais. Em meio à
confusão, o leilão foi adiado em uma hora. Os manifestantes, em sua
maioria funcionários da Petrobras, tiveram o apoio até de um grupo de
Black Blocks. Eles romperam a barreira de militares e acabaram entrando
em confronto. Alguns deles chegaram a virar um carro da tevê Record, que
cobria a manifestação, para usá-lo como escudo. As forças policiais
revidaram com balas de borracha e bombas de efeito moral. Cerca de dez
pessoas ficaram feridas. Além dos protestos, o governo teve de driblar
dezenas de ações na Justiça que contestavam a validade do leilão, que
ameaçaria a soberania brasileira.
Batalha campal: manifestantes enfrentam a Força Nacional de Segurança e o Exército,
a poucos metros do hotel onde foi realizado o leilão, na Barra da Tijuca (no Rio)
Todas foram derrubadas. A exploração de petróleo desperta paixões
no Brasil, e não é de hoje. A disputa em torno da propriedade das
reservas já foi tema até de história infantil. O escritor Monteiro
Lobato, defensor empedernido do monopólio do Estado, fez jorrar óleo no
Sítio do Pica-Pau Amarelo e criou a primeira petrolífera brasileira, a
Donabentense de Petróleo, em 1938. No final da década seguinte, o ideal
nacionalista ganhou força e a campanha “O petróleo é nosso” saiu às
ruas. A motivação era barrar a intenção do presidente Eurico Gaspar
Dutra de permitir a participação de empresas estrangeiras na exploração
do petróleo no Brasil.
O objetivo do movimento, que contava com o apoio do Centro de
Estudos e Defesa do Petróleo e dos setores nacionalistas das Forças
Armadas, era romper com o discurso vigente na época de que apenas
grandes companhias internacionais seriam capazes de operar a indústria
petrolífera no Brasil. E o resultado foi alcançado em outubro de 1953,
com a criação da Petróleo Brasileiro S/A, hoje Petrobras, que passou a
deter o monopólio de exploração, refino e distribuição de derivados de
petróleo no País. De lá para cá, algumas coisas mudaram.
A Petrobras deixou de ter o monopólio em 1997, com a aprovação da
Lei do Petróleo, que permitiu a realização de leilões para venda de
poços para a iniciativa privada, nacional ou estrangeira. Isso não quer
dizer, no entanto, que o nacionalismo tenha sido deixado de lado. O que
se viu no leilão do Campo de Libra foi a volta de protestos, organizados
por diferentes movimentos sociais e sindicatos, com o objetivo de
evitar “a entrega do patrimônio nacional”. Não teve jeito. Mais da
metade desse patrimônio agora está nas mãos da iniciativa privada, que
tem o capital necessário para transformar o óleo em riqueza. A
Petrobras, por sua vez, é detentora de conhecimento geológico e da
tecnologia para extrair a matéria-prima.
Colaboraram: Denize Bacoccina, Rodrigo Caetano e Ana Paula Ribeiro