Nunca
antes na história deste país o Direito Financeiro esteve tão em
evidência, mas as razões que levaram a isso não são motivo de
comemoração. O contumaz descumprimento das normas de Direito Financeiro
que se tem observado nos últimos anos, e que agora é o principal
fundamento do pedido de
impeachment da presidente da República
ora sob análise da Câmara dos Deputados, trouxeram esse ramo do Direito
para o centro do debate, que se acirra nesta semana, quando se aproxima a
definição de importante etapa do processo, com a apresentação da defesa
[1] e decisão do Congresso Nacional.
Momento
oportuno para que sejam esclarecidos vários pontos no âmbito do Direito
Financeiro que estão sendo discutidos com intensidade nesses últimos
dias.
A petição inicial
[2],
firmada pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior, Janaína
Paschoal e Flávio Pereira, contendo denúncia contra a presidente Dilma
Rousseff pela prática de crime de responsabilidade, com o pedido de
decretação da perda do cargo e inabilitação para exercer função pública
por oito anos, descreve condutas que são diretamente relacionadas ao
Direito Financeiro, e sobre as quais é relevante esclarecer e informar,
ainda que de forma sucinta, dadas as limitações deste espaço.
Sobre
os decretos ilegais de abertura de créditos suplementares, a denúncia
imputa à presidente da República os crimes de responsabilidade
tipificados na Lei 1079/1950, artigo 10, itens 4
[3], 5
[4] e 6
[5], por ter editado decretos não numerados para abrir créditos suplementares sem autorização legal, da ordem de R$ 18 bilhões.
As
condutas descritas foram apuradas, constatadas e reconhecidas como
ilegais pelo Tribunal de Contas da União, em decisão tomada na sessão de
7 de outubro de 2015 (acórdão 2461/2015 — Plenário), na qual emitiu
parecer pela rejeição das contas de governo referentes ao exercício de
2014.
Como os fatos se repetiram em 2015, conforme descreve a denúncia,
os esclarecimentos a seguir são feitos com base neste último ano.
A
lei orçamentária contém a previsão de receitas e a autorização de
gastos, que, em face de alterações nas circunstâncias de fato ocorridas
na execução orçamentária, podem ser modificadas, desde que com
autorização legal.
A lei orçamentária federal de 2015 (Lei 13.115,
de 20/4/2015), em seu artigo 7º, concedeu autorização prévia para que o
Poder Executivo editasse decretos abrindo créditos suplementares, mas
condicionados à observância dos requisitos fixados, entre os quais está a
necessidade de compatibilização com as metas de resultado primário
[6].
Referidas
metas de resultado primário estão na Lei de Diretrizes Orçamentárias —
no caso, a Lei 13.080, de 2/1/2015, que estabeleceu as diretrizes para o
exercício de 2015. Essa lei definiu a meta de superávit primário no
montante de R$ 66 bilhões (artigo 2º). Os relatórios de execução
orçamentária produzidos no período de edição dos decretos atacados já
mostravam a inviabilidade do cumprimento da meta, fato reconhecido pelo
próprio governo, ao encaminhar projeto de lei propondo a alteração da
LDO vigente, ante a constatação da frustração de receitas e elevação das
despesas. Evidentemente, as condições para a abertura dos créditos
suplementares devem estar presentes no momento da respectiva abertura.
Sendo assim, os decretos aludidos na denúncia foram baixados em
desacordo com a autorização prevista na lei orçamentária, pois editados
sem a observância dos requisitos fixados, o que ocorreu mesmo após o
reconhecimento de que a meta não seria atingida.
Tendo em vista
que a apuração do resultado primário faz-se ao final do exercício
financeiro, pouco antes de seu término foi proposta e aprovada a Lei
13.199, em 3/12/2015, modificando a LDO vigente, para fazer constar não
mais uma meta de resultado primário de R$ 66 bilhões, mas uma meta de
resultado deficitário de R$ 49 bilhões
[7].
Uma manobra cuja única finalidade foi, inequivocamente, afastar
formalmente a ilegalidade dos decretos, que, embora editados sem
observar os requisitos legais à época de sua publicação, no final do
exercício passam a estar de acordo com as metas
posteriormente
fixadas. Desnecessários argumentos mais densos para demonstrar que se
trata de uma fraude, que está em desacordo com todos os princípios de
responsabilidade fiscal, não sendo admissível que se aceite como
justificativa para afastar o reconhecimento da ilegalidade dos decretos.
Diante do descumprimento evidente da regra, mudou-se a regra, e não a
conduta — medida que só engana quem faz absoluta questão de ser
enganado.
Importa em anular por completo as funções da LDO e da
lei orçamentária e deixar de reconhecer seu caráter sistêmico no
ordenamento jurídico, para dar crédito a um argumento que se afasta
completamente das mais comezinhas regras de interpretação, exigindo que
essas leis sejam inteiramente descontextualizadas do sistema de
planejamento orçamentário da ação governamental.
Integram a
denúncia também as “pedaladas fiscais”, apelido que se convencionou
atribuir à “prática recorrente de atrasar o pagamento de serviços
prestados por fornecedores do setor público, atrasos no repasse dos
ministérios setoriais para que bancos públicos e privados paguem os
benefícios sociais e postergação no pagamento de subsídios devido a
bancos públicos”
[8].
Tais
fatos, denunciados pelo Ministério Público de Contas, foram
identificados e apurados pelo Tribunal de Contas da União, no exercício
de sua competência de fiscalizar a atividade financeira da administração
pública federal, que, em decisão tomada em 7/10/2015 (acórdão 2461/2015
— Plenário), emitiu parecer pela rejeição das contas de governo
referentes ao exercício de 2014, por estarem comprovadas, entre outras
irregularidades, a ocorrência das “pedaladas fiscais”, reconhecendo como
operações de crédito ilegais os adiantamentos concedidos pela Caixa
Econômica Federal para despesas dos programas Bolsa Família,
seguro-desemprego e abono salarial, bem como os adiantamentos concedidos
pelo FGTS para despesas do Programa Minha Casa Minha Vida
[9].
A
defesa do governo à época, que pretendia ver reconhecidos esses atos
não como operações de crédito, e sim como meros fluxos de caixa,
suprimento de fundos ou operações que representam prestações de serviços
bancários, não foi acolhida, após análise técnica exaustiva e minuciosa
por ocasião da apreciação das contas junto ao TCU. Os atrasos, como
deixa claro o TCU no caso da CEF, “longe de se justificarem por
necessidades de adequações da dinâmica dos fluxos de desembolsos,
redundaram na utilização da CEF como grande financiadora das políticas
públicas de que tratam os benefícios em tela, por meio da realização de
operações de crédito vedadas pela LRF”, não tendo a instituição
reconhecido os atos como rotineiros, tanto que recorreu à Câmara de
Conciliação e Arbitragem da administração federal para solucionar a
controvérsia. As movimentações financeiras representadas pelos atrasos
sistemáticos no repasse de recursos do Tesouro Nacional às instituições
financeiras estatais, concluiu o TCU, “tem natureza jurídica de operação
de crédito, independentemente do
nomen juris que porventura lhe tenha sido atribuída, o qual obviamente não tem o condão de modificar a sua essência”
[10].
Essas
condutas foram incluídas na denúncia por tipificarem crime de
responsabilidade, descrevendo a peça inicial a ocorrência tanto no
período analisado pelo TCU, como no exercício de 2015, neste último sob a
forma de adiantamentos do Banco do Brasil em relação ao Plano Safra, de
alongamento de crédito rural, em se apuraram valores expressivos, da
ordem de R$ 3 bilhões, devidos por equalização de taxa de juros.
Imputa-se violação aos artigos 85, VI, da Constituição e 10, alíneas 6,
7, 8 e 9 da Lei 1079/50. O artigo 85, VI, da Constituição tipifica como
“crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que
atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra a lei
orçamentária”. A Lei 1079/50, ao especificar as condutas dos respectivos
crimes em seu artigo 10, descreve, no item 6, já referido, “ordenar ou
autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites
estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária
ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal”; no
item 7, “deixar de promover ou de ordenar, na forma da lei, o
cancelamento a amortização ou a constituição de reserva para anular os
efeitos de operação de crédito realizada com inobservância de limite,
condição ou montante estabelecido em lei”; no item 8, “deixar de
promover ou de ordenar a liquidação integral de operação de crédito por
antecipação de receita orçamentária, inclusive os respectivos juros e
demais encargos, até o encerramento do exercício financeiro”; e no item
9, “ordenar ou autorizar, em desacordo com a lei, a realização de
operação de crédito com qualquer um dos demais entes da federação,
inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que na forma
de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída
anteriormente”.
É denunciada ainda a presidente pela prática do
crime de responsabilidade previsto no artigo 10, item 4 (“São crimes de
responsabilidade contra a lei orçamentária infringir, patentemente, e de
qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária”), por irregularidades
no registro de valores como dívida líquida do setor público, decorrentes
das operações que integraram o rol das “pedaladas fiscais”, causando
distorções nas informações da lei orçamentária e desvios na apuração do
resultado fiscal, fato que também foi analisado pelo TCU na já citada
decisão.
Não é segredo que este governo tem sido marcado — e não é
de hoje — pela irresponsabilidade na gestão das finanças públicas,
tantas vezes denunciada neste espaço
[11].
Desprezo e desrespeito às normas de finanças públicas são evidentes e
têm sido constantes, e os danos causados estão aí para serem vistos.
Isso não pode ser aceito pelos operadores, aplicadores e intérpretes do
Direito. Nem relativizado, sob o argumento de que possam ter ocorridos
desvios em outros períodos e entes da federação. Esta é uma oportunidade
ímpar para rechaçar essas condutas reprováveis e mostrar que as normas
de finanças públicas existem para serem cumpridas, e as consequências
das suas violações são graves.
Outras imputações foram feitas, de
natureza financeira e não financeira, que permitem o enquadramento em
infrações de natureza penal, civil, administrativa e financeira, como já
exposto em texto anterior
[12].
Há ainda outras denúncias, como a recentemente protocolada pela OAB,
nas quais outras condutas apontadas como violadoras das normas de
Direito Financeiro são descritas como crimes de responsabilidade. O
espaço, no entanto, é curto, razão pela qual foram expostos apenas os
fundamentos que justificam parte das acusações, a fim de permitir que
seja possível conhecer melhor as razões que podem levar a presidente a
perder seu cargo.
Convém deixar claro que, quando se fala em
“golpe”, a palavra se justifica apenas em função de seu aspecto
retórico, mas não técnico, como bem explicitou o ministro Ricardo
Lewandowski, presidente do STF, em entrevista recente, ao dizer que
“golpe é uma expressão que pertence ao mundo da política. E nós aqui
[referindo-se ao STF] usamos apenas expressões do mundo jurídico”, uma
vez que o processo de impeachment está fundado nos artigos 85 e
86 da Constituição e na Lei 1.079/1950 (e alterações posteriores),
razão pela qual, sendo observados os dispositivos constitucionais e
legais, não há que se falar em desrespeito ao ordenamento jurídico.
Nas
acusações que envolvem o Direito Financeiro, o que se pode concluir é
que os fatos descritos na denúncia ocorreram e tipificam condutas
descritas como crimes de responsabilidade. Não falta base legal, nem
fatos e fundamentos jurídicos na denúncia formulada. Cabe ao Congresso
Nacional a palavra final sobre o reconhecimento da procedência do
pedido.
[1] Esta coluna foi escrita antes de ser apresentada a defesa da presidente.
[2] Datada de 15/10/2015, com o respectivo aditamento.
[3] “Infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária.”
[4]
“Deixar de ordenar a redução do montante da dívida consolidada, nos
prazos estabelecidos em lei, quando o montante ultrapassar o valor
resultante da aplicação do limite máximo fixado pelo Senado Federal.”
[5]
“Ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites
estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária
ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal.”
[6]
“Fica o Poder Executivo autorizado a abrir créditos suplementares,
observados os limites e condições estabelecidos neste artigo, desde que
as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis
com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o
exercício de 2015 (...).”
[7] Assunto já abordado na coluna
2015: o ano de triste memória para o Direito Financeiro que não quer terminar, publicada em 15/12/2015.
[8] ALMEIDA, Mansueto.
Pedaladas fiscais,
in Blog do Mansueto Almeida, <
http://mansueto.wordpress.com/2014/08/29/pedaladas-fiscais/>, e sobre as quais já nos referimos na coluna
Atenção caro leitor, pedalar faz mal à saúde!, publicada em 23/9/2014.
[9] Tema já abordado em outras colunas, como a publicada em 30/6/2015,
Julgamento das contas do governo precisa ser feito com rigor, e
Julgamento do TCU que reprovou as contas do governo entrou para a história do Direito, publicada em 20/10/2015.
[10] TCU, acórdão 2461/2015, voto do ministro Augusto Nardes.
[11] Vide as colunas
Contas “maquiadas” não vão tornar nosso país mais bonito, publicada em 12/2/2013,
O Direito Financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, publicada em 10/2/2015,
Irresponsabilidade fiscal ainda persiste, 15 anos após a publicação da lei, publicada em 7/4/2015, dentre outras.
[12] Coluna
Cuidado, pedalar pode dar cadeia!, publicada em 5/5/2015.
http://www.conjur.com.br/2016-abr-05/contas-vista-agressoes-direito-financeiro-dao-razoes-impeachment