Depois de 30 anos advogando,
Antônio Amaral Maia
decidiu criar uma empresa que oferece serviço jurídico e novas
tecnologias. A iniciativa foi testada por conta própria, depois que ele
decidiu trocar o sistema de acompanhamento de processos do seu
escritório.
Utilizando até então um aplicativo generalista de
gestão de documentos, o Evernote, Maia adaptou-o para uso nas suas
tarefas diárias, envolvendo casos ligados à infraestrutura, em contratos
com a administração pública. A partir daí começou o trabalho da
Tikal Tech, que nasceu em 2015 e hoje fornece outros serviços.
Maia
critica duramente o papel que a Ordem dos Advogados do Brasil faz como
reguladora: “A OAB não permite que o advogado empreenda. São as
restrições que empobrecem a classe, que impedem que o profissional
barateie o serviço dele contra a tabela para ganhar escala e ganhar mais
dinheiro”, afirma.
Ele também defende a liberdade de contratação
entre o advogado e seus clientes. “Sempre se teve uma vergonha de tratar
o direito como negócio, na profissão. Mas o Direito é um negócio, tem
dinheiro envolvido, prestação de serviço.
” Para o advogado, tabelar honorários equivale a orquestrar preço.
“A
GM pode combinar preço com a Ford? Não. E por que nós podemos combinar
preço? Há a necessidade de se caminhar para isso, em se ter essa
liberdade.”
Antônio Amaral Maia é advogado há 30 anos,
sócio-fundador do Amaral Maia Sociedade de Advogados e um dos sócios da
Tikal Tech com Erica Motta, Derek Oedenkoven e Fernando Freitas Alves.
Escreve o blog
Advogado do Futuro, sobre Legal Services e Legal Tech.
As
atividades da empresa incluem o robô ELI, que automatiza tarefas e
cálculos: quando o advogado cadastra nomes de clientes no ELI ICMS
Energia, por exemplo, a ferramenta busca contas de energia elétrica em
nome dos consumidores, calcula eventuais tributações indevidas e gera já
uma petição inicial com as principais informações, inclusive com
valores corrigidos com base na inflação.
Há também o LegalNote,
plataforma digital de acompanhamento processual por celular, tablet ou
notebook, hoje com mais de 92 mil usuários. Já o Diligeiro ajuda a
buscar contratação de correspondentes jurídicos por meio da descrição da
demanda, com localização por GPS – são 28.657 disponíveis na plataforma
para cumprir diligências.
Confira a entrevista:
ConJur — Como o senhor avalia o cenário dos escritórios de advocacia hoje em dia?
Amaral Maia —
Falta o espírito empreendedor nos escritórios e todo o uso de
tecnologia, como novas maneiras de cobrar honorários. Falta espírito
empreendedor para oferecer serviços empacotados de maneira diferente,
precificados de maneira diferente, em que de alguma forma esteja um
pouquinho mais voltado ao risco da atividade do cliente. O problema é os
advogados não serem empreendedores: essa é a grande âncora que amarra a
nossa carreira e é infelizmente o que dá força a esse discurso
retrógrado da OAB, essa pouca familiaridade dos advogados em geral a
assumir mais riscos. Tudo isso impede que eu mude a minha maneira de
trabalhar e impede que eu combine várias disciplinas na prestação de
serviços.
ConJur — O fenômeno das startups ligadas ao Direito esbarra em entendimentos da OAB?
Antonio Amaral Maia — O
advogado pode lançar mão de qualquer novidade tecnológica, de qualquer software na condição de sua atividade, ele é o soberano de como vai conduzir a solução para aquele determinado problema. A
Tikal sempre soube muito bem o que estava fazendo. Existem alguns
advogados que consultam a OAB quando vão contratar o ELI. A pessoa vai
lá e fala "estou em vias de contratar esse robô e eu queria saber se vou
estar de acordo com a ética"; o Tribunal de Ética libera.
ConJur — Então não existe controvérsia?
Antonio Amaral Maia — Tem algumas
startups que fazem
um tipo de contratação muito parecida com leilão. O advogado interage
com a plataforma, dando lances. É o chamado leilão reverso, em função
daquele serviço. E a OAB acha que isso avilta os honorários, e esse tipo
de empresa é processada. A Ordem usa a ação civil pública para proteção
dos advogados, vai na Justiça para tentar derrubar essas empresas. Mas
aí acontece uma coisa bem interessante: quando a empresa é legítima,
mesmo a OAB não pode fazer nada contra ela. O comportamento ético é do
advogado, não do empresário. O empresário não está sujeito ao Código de
Ética da OAB, ninguém está, só o advogado. Então a Ordem não pode alegar
violação ética para fechar
startup. Principalmente se ela não puniu eticamente os advogados que usam aquela
startup.
ConJur — Os advogados dessas startups estão sendo punidos?
Antonio Amaral Maia — Não, não. As empresas que foram punidas nem têm advogados como donos. O que acontece? Alguns advogados usam a
startup
ou outra estrutura empresarial para driblar os impedimentos éticos.
Isso é mais com modelos de negócio tipo aquelas associações de
mutuários, de quem briga com construtora. Você sabe que tem várias
pessoas com problema de financiamento de imóveis, mas não pode acessar
essas pessoas porque o advogado tem que ter uma publicidade
passiva. Então certos profissionais criam uma associação de mutuários,
disfarçam os honorários de contribuição associativa e captam no
escritório um serviço que veio da associação. Aí claramente a associação
é dissolvida. Mas não porque a associação comete falta ética, mas
porque o objeto social dela é ilícito: mascarar uma conduta vetada
eticamente. A OAB só consegue derrubar uma empresa quando a empresa é
usada por algum advogado para burlar uma proibição ética. O advogado em
si, usando tecnologia, não infringe regra nenhuma.
ConJur — Com essa oferta de serviços, advogados poderiam ser mais agressivos na publicidade?
Antonio Amaral Maia —
A Ordem dos Advogados do Brasil tem uma posição estranha em relação a
isso: nossa classe é vista como se fôssemos artesãos, como se
trabalhássemos numa oficina qualquer em que falar de dinheiro é até
feio. Sempre se teve uma vergonha de tratar o Direito como negócio, na
profissão. Mas o Direito é um negócio, tem dinheiro envolvido, prestação
de serviço. S
e você não cobra os seus honorários a Ordem teoricamente pode até te punir por falta ética. Por
isso há a necessidade de se caminhar para se ter essa liberdade, porque
normalmente a regulação muito dura da OAB pune basicamente os advogados
mais pobres e os advogados em começo de carreira.
ConJur — São os que mais precisam de publicidade, aparecer.
Antonio Amaral Maia —
Basicamente, a OAB impede a concorrência de outros profissionais com os
advogados, externamente. Internamente, impedir a concorrência dos mais
novos contra os mais velhos. Então a Ordem vive brigando com contador,
vive brigando com auditor, vive tentando passar lei para colocar
mediação como ato privativo de advogado, ou mesmo querer colocar as
startups como exercício ilegal de profissão, ampliar a ideia de conceito jurídico para poder punir as
startups ou ameaçá-las de punição criminal.
A
entidade tenta controlar esse tipo de concorrência institucionalmente.
Quando se impede que o advogado trate a profissão dele como um negócio,
coloca-se menos dinheiro no mercado; quando tem menos dinheiro no
mercado vende-se menos tecnologia, então nesse sentido nos prejudica.
São as restrições que empobrecem a classe, são essas restrições que
impedem que o profissional barateie o serviço dele contra a tabela para
ganhar escala e ganhar mais dinheiro. Entende? É a OAB que não deixa que
ele empreenda...
ConJur – E quanto à estipulação de valores de honorários?
Antonio Amaral Maia —
Deveríamos tratar os honorários como preço do serviço por uma atividade
profissional regulamentada e organizada. A advocacia ficaria sujeita às
leis do mercado. A justificativa de que o problema é o excesso de
advogado no Brasil é uma besteira, argumento para justificar nossos
problemas. Esse tipo de paternalismo normalmente dá com os burros
n’água, porque não adianta passar uma tabela se ninguém cumpre… Até
porque o cliente também não está obrigado pela tabela. O cliente não
comete falta ética, e o cliente não existe para respeitar a dignidade da
advocacia. Na minha opinião, só é digno o advogado que cumpre a sua
função social.
ConJur — A tabela não deveria existir, na sua opinião?
Antonio Amaral Maia —
Não deveria existir, até porque a tabela mesma é questionada. Existe
mais de um processo administrativo no Cade [Conselho Administrativo de
Defesa Econômica] questionando a medida. Porque é orquestração de preço,
nós somos um mercado relevante. A GM pode combinar preço com a Ford?
Não. E por que nós podemos combinar preço? É inaceitável! Os planos de
saúde já derrubaram as tabelas médicas há muito tempo. No fundo quem
sofre os efeitos da tabela é a população mais pobre e desassistida.
O
novo Código de Ética estabeleceu a falta ética por não obedecer a
tabela. E aí o Tribunal de Ética fica naquela situação: toda hora tem
que analisar a conduta de advogados, com base no contexto.
ConJur — Como o senhor começou a empreender?
Antonio Amaral Maia — A iniciativa nasceu dentro do meu
escritório. Quando decidi trocar o meu sistema de acompanhamento de
processos, concluí que nenhum dos que existiam, ou pelo menos dos que eu
conhecia na época, eram bons. Aí eu resolvi utilizar o Evernote, um
aplicativo generalista de gestão de documentos, e adaptar para uso do
escritório de advocacia. Foi um projeto muito interessante, custou perto
de R$ 7,5 mil, um custo ridículo perto do que a gente tinha feito.
ConJur — Como era esse aplicativo?
Antonio Amaral Maia — No finzinho de 2014 a gente trabalhou
muito na ideia e apareceu um nome, que foi o LegalNote, a empresa
inteira era para chamar LegalNote. No ano seguinte já tínhamos um lema,
de que ela seria o “escritório no bolso”. Eu queria que as pessoas
fizessem tudo pelo celular. O "produto mínimo viável" seria pegar os
processos do site do tribunal pelo CNPJ e o aplicativo baixava tudo para
o Evernote, abria uma nota ali e enviava uma notificação para o
usuário, passando a pegar todos os andamentos a partir de então.
ConJur — O que tem de diferente nesses aplicativos em relação aos sistemas de consulta processual oficiais dos tribunais?
Antonio Amaral Maia — O que é “J Intimação”? As pessoas não
sabem, porque aquela informação do site do tribunal não é feita para que
as pessoas entendam, ela é feita para guiar a atuação do cartorário. Na
verdade a Justiça é o povo. Então era preciso fazer um sistema que
explicasse o negócio. Nós temos o dever moral de simplificar esse
acesso, por mais que seja um negócio.
ConJur — Mas se
alguém se cadastra no seu aplicativo, consegue acesso a informações de
terceiros? E terceiros podem conseguir minhas informações? Não é
perigoso?
Antonio Amaral Maia — É um ponto sensível, a Tikal já sofreu
processo por isso, mais de uma vez, mas fomos vitoriosos em todos. Se
você entrar no meu site com o nome pode ser que encontre informações,
mas não é tão simples. A gente vai questionar ‘com quem você litiga?’,
‘quais são os nomes das partes?’. Não contribuímos com a indústria
nefasta da lista negra e muito menos admitimos que uma empresa nos
contrate para fazer lista negra. Os robôs da Tikal trabalham só com as
informações permitidas: número do processo e nome das partes, só, nós
não cruzamos outras informações. Mas como indexamos as nossas intimações
em mais ou menos 360 mil intimações por dia, temos uma política: se a
pessoa reclamar, a gente desindexa a página na hora.
Quando o ELI
foi criado, fomos ao mercado, começamos a oferecer para alguns advogados
para que eles nos relatassem seus problemas e suas necessidades e nos
ajudassem a desenvolver teses que pudessem ser automatizadas. Hoje, o
advogado procura a Tikal e fala o problema que ele quer resolver.
ConJur — O que faz o ELI?
Antonio Amaral Maia — A partir do que o cliente necessita, a
gente monta o robô, desde que envolva automação de documentos e a
inteligência gerando a classificação. O robô combina uma dessas
habilidades para resolver um problema específico do cliente. O ELI busca
informações em outros sites e classifica os processos e documentos. Ele
pode, por exemplo, ir no site da CPFL, baixar 60 contas, ler e
cadastrar e extrair informações sobre o ICMS dessas contas. E gerar uma
planilha e uma petição.
ConJur — O senhor disse que a
empresa é procurada por advogados. O profissional da área quer
compartilhar o conhecimento que tem?
Antonio Amaral Maia — Quer. O que limita o advogado a pegar
novos clientes? Ele está limitado pela clientela. E a ampliação da
clientela é limitada geograficamente. É o seguinte: se minha tese é
nacional, mas meus clientes estão em Goiás, não vou pegar nenhum cliente
no Rio Grande do Norte, no Pará. Por isso faz sentido que eu
disponibilize isso. Se a tese é nacional e eu não tenho condições de
trabalhar nela de maneira nacional, vou licenciar minha tese para outros
escritórios e aí a gente reparte o lucro.
ConJur — Os sistemas processuais dos tribunais causam algum obstáculo?
Antonio Amaral Maia — É
uma missão hercúlea, até hoje não terminada e ninguém vai terminar
nunca, porque é uma enxugação de gelo, que é fazer os robozinhos
funcionarem em todos os 27 tribunais de Justiça. Cada estado tem um
sistema diferente. Quantos sistemas são ao todo? Uma coisa de 60, 70
sistemas. Cada um é de um jeito, às vezes o estado do Tribunal de
Justiça é de um jeito e o Juizado Especial é de outro. Às vezes, não. Na
Justiça Federal são diferentes. Na Justiça do Trabalho tem os captchas [sistemas de verificação para acesso aos bancos de dados], um grande desserviço que os tribunais prestam.
ConJur — Como tribunais podem usar os serviços de automação para organização e estratégia?
Amaral Maia —
O problema de se atacar acervo é que não existe tecnologia isenta. Se
crio um algoritmo para atacar um acervo, quem programar esse algoritmo
vai ter a palavra final. Nos Estados Unidos essa discussão é presente,
eu tenho o
software que avalia reincidência e a possibilidade de se soltar um preso. Isso é uma coisa grave para um tribunal deixar na mão de um
software, porque o robô em si vai refletir os vieses que quem o programou tiver.
ConJur — Então de que maneira a inteligência artificial pode ser útil para os serviços públicos do Estado?
Antonio Amaral Maia — Permitir a rápida classificação dos litígios é uma prática isenta: criar os chamados
clusters,
classificando rapidamente todas as ações e permitindo que o juiz
escolha a solução que vai dar naquele lote de ações conexas. O juiz
poderia automatizar um sistema de classificação, e não propriamente um
sistema de inteligência artificial, na montagem das respostas.
Isso já seria um grande avanço.
https://www.conjur.com.br/2018-jun-17/entrevista-antonio-amaral-maia-advogado-socio-tikal-tech