1. Por que o BBB interessa tanto?
O que interessa mesmo aos estudantes e bacharéis em Direito? Há nove anos, no BBB 2015, a notícia da ConJur mais lida tratou do afastamento de uma conciliadora do TJ-RS por causa do Big Brother Brasil (BBB).
Isso, já na época, dava uma boa amostra daquilo que mais interessa à
média dos leitores de Pindorama. Talvez a saída esteja em estocar
comida.
Na época escrevi contestando um artigo na ConJur sobre ensino jurídico (ler aqui). Dizia eu há nove anos: quem assiste ao BBB
por certo não passa no Exame da OAB. Ou consegue escrever algum texto
reflexivo. É incompatível. Trabalhei isso com uma crítica irônica e
alegórica. Complementei: para ver BBB, bastam dois neurônios (mesmo sendo um acarunchado); já para fazer reflexões, são necessários bem mais.
2. A crise do ensino jurídico e a prova da OAB
O tema de minha coluna era a prova da OAB e a crise do ensino
jurídico. Acrescentava: não há como aprender Direito sem que os alunos
leiam… livros. Sim, livros-a-mancheias… e não resumos de livros
ou livros orelhados. É lendo livros — e não os resumos de livros — que
os candidatos conseguirão responder perguntas longas (sic) ou curtas
(sic) do exame de Ordem (mais detalhes, leiam o artigo do link acima).
Já em 2024, por estes dias, o MEC lança uma tentativa de reforma do
currículo dos cursos de Direito. É bem heterogênea a lista dos
participantes. Tem para todos os gostos e ideologias. Não sei como
funcionará. A ver.
3. Do que necessitamos para uma reforma?
De todo modo, escrevo sobre isso há “apenas” 30 anos. Em 2015,
escrevi algumas observações sobre o que é e como pode(ria) ser o ensino
jurídico. Assim, disse então que precisaríamos:
a) reformular as grades curriculares, dando ênfase às disciplinas formativas e não às meramente informativas;
b) pois passados esses anos, vejo que acontece o contrário: as disciplinas reflexivas estão sendo chutadas para fora dos currículos. O que será que a Comissão da Reforma do MEC pensa disso?
c) quando me refiro à formação, quero dizer que, inclusive nas
cadeiras de processo, deve o aluno compreender os acessos filosóficos ao
processo de formação da prova; e estudar os paradigmas filosóficos que
estão por trás dos procedimentos; estudar processo não é saber fazer
petição (há modelos no Google…); e agora há o ChatGPT (quando escrevi em
2015 nem se falava disso);
d) disciplinas formativas — Filosofia do Direito, Hermenêutica,
Introdução etc. — devem ser ministradas por professores com formação em
Teoria do Direito e não por biqueiros (quebradores de galho), que chegam
na aula dizendo: regras é no tudo ou nada, princípios é na ponderação…;
ou professores que dizem: agora ensinarei Direito, porque há pouco
vocês tiveram Introdução ou Filosofia do Direito… e ainda ri;
e) as faculdades devem fazer um processo de seleção acerca do tipo de
bibliografia que está sendo indicada pelo professor. Não estou aqui a
pregar uma espécie de index sobre o que não deve ser lido; mas a
coordenação ou os órgãos deliberativos do curso (colegiados de curso e
núcleos docentes estruturantes) deveriam, no mínimo, estimular os
professores das respectivas áreas a debater a literatura utilizada em
aula. Não parece razoável que professores utilizem literatura
pequeno-gnosiológica tipo “Direito facilitado” e similares;
f) é comum, nestes dias (vejam que escrevi há nove anos), mencionar a falta de “espírito crítico” (sic)
por parte dos alunos. Pois é. Isso todo mundo fala. Mas, cabe
perguntar: como cobrar algum tipo de postura investigativa por parte do
discente se, na maioria dos casos, os professores colocam-se passivamente diante dos conteúdos que existem na literatura standard sobre o Direito?
Deve haver, no mínimo, uma recomendação por parte dos órgãos
deliberativos no sentido de serem evitados
resumos-tipo-puxadinho-da-laje, resumões-tipo-gambiarra,
plastificações-tipo-piscina (existem resumos plastificados), e resumos
feitos pelo vigarista do ChatGPT [1];
g) de sua parte, o acadêmico de Direito precisa também operar um
processo de autoanálise para colocar em questão o tipo de atitude por
ele assumida com relação à própria formação.
4. A forma(ta)ção do aluno
Nesse aspecto desenvolvido acima, algumas questões são fundamentais:
4.1. deve-se abandonar a postura do acadêmico-consumidor que se
relaciona com o curso de direito do mesmo modo que cuida de seus
interesses nos supermercados ou no âmbito de uma megastore. Ora, a educação não é um bem de consumo. O que está em jogo aqui não é um produto estragado ou com mau funcionamento. É da própria formação que estamos falando.
4.2. é preciso livrar-se das “muletas” utilizadas para apoiar algum
tipo de deficiência na própria formação em algum elemento institucional.
De se registrar: é claro que as demandas dos discentes por melhoras na
infraestrutura do curso são salutares. Todavia, deficiências ou falhas
institucionais não são motivos para, a priori, justificar gaps
formativos. Exemplos: se na sua faculdade não existe pesquisa
institucionalizada, procure um professor-mestre-ou-doutor que possa lhe
orientar e busque financiamento de sua pesquisa em algum órgão de
fomento à pesquisa; se sua faculdade não produz eventos científicos
interessantes, tente viabilizá-los juntos aos órgãos de representação
acadêmica (DAs; CAs etc..). Não incentive showmícios pequeno-epistêmicos
feitos por professores mais preocupados em vender seu “peixe” de
cursinho ou coisas similares. E incentive os seus colegas a, antes de
frequentarem congressos, pesquisarem acerca do curriculum dos palestrantes. Alguns congressos de direito podem ser prejudiciais à saúde cultural dos acadêmicos.
4.3. aprenda a usar a biblioteca; faça o uso devido de sua autonomia
intelectual. Ali você vai descobrir um universo muito além da sala de
aula e de seu professor. Faça um exercício consigo mesmo e se pergunte: quantas
vezes você, desde que começou a frequentar o curso de Direito, foi até a
biblioteca despido de alguma obrigação institucional? Quantos livros você tomou emprestado que não foram indicados pelo professor?
É importante ir a uma biblioteca e não simplesmente requerer ao
bibliotecário ou a quem responda por ele o exemplar que você procura.
4.4. e por fim, mas não menos importante, leia livros de literatura.
Leia aos montes… Você terá, além de um contato com a língua na sua forma
mais emblemática, a possibilidade de se deparar com personagens
fictícios que enfrentam dramas da vida próximos daqueles que os
cientistas sociais enfrentam; próximo daqueles que os juristas
enfrentam. Frustrações, paixões, um desfile de dilemas morais, tudo que
nos leva a sentirmos mais humanos, menos bestializados.
5. Tópicos indispensáveis em uma reforma
Desse modo, necessitamos transformações:
5.1. Uma de ordem estrutural institucional: cursos que
apresentem currículos mais consistentes e que busquem um material
adequado para trabalhar os conteúdos. Há coisas que necessariamente
devem ser abordadas e há livros que fazem isto melhor do que outros;
5.2. Na contramão do “império do simples” e da massificação,
precisamos fugir das simplificações, das facilitações; façamos o
seguinte raciocínio: fosse o Direito um saber como a Medicina,
perguntemo-nos: você se operaria com um médico que estudou em livros como “operação cardíaca facilitada ou resumida”? A partir dessa resposta comecemos uma reflexão profunda sobre “o que fizemos do Direito”.
5.3. Por outro lado, é necessário que os discentes deixem a
passividade de lado e passem a ser mais ativos com relação à própria
formação. Não para, simplesmente, reivindicar “os seus direitos” (sic), mas, muito além, por estarem conscientes dos deveres que possuem para com a sua própria formação.
5.4. Devemos levar em conta a advertência de Raymundo Faoro, em livro
em homenagem a Roberto Lyra Filho, no ano de 1986, no artigo chamado O Jurista “Marginal”: a atividade do advogado, do juiz e do jurista não há de permanecer um adestradamento, uma mera especialização. Antes
de tudo, preparar no aspirante aos nossos círculos a consciência, que
se perdeu, de que um profissional do Direito é um intelectual, com a
incumbência primeira e fundamental de atuar na sociedade, para, ao
conhecê-la, levar a ela o inconformismo da necessária mudança. E nem a atividade do estudante deve ser um adestramento.
5.5. Finalmente, atenção alunos: se o professor que leciona na
graduação não conseguiu lhe passar um leque de saberes (não meras
informações tipo-estão-no-google) em cinco anos, não
será em alguns meses que um cursinho conseguirá essa façanha e muito
menos se o docente for o mesmo ou do
mesmo-tipo-que-lhe-deu-aulas-na-graduação. No máximo você
ficará treinado. Mas treino é treino e jogo é jogo. E o jogo da vida é
mais duro que fazer um jogral para decorar o conceito de legítima defesa
ou usar truques para memorizar a Constituição. Fuja disso. Por mais
tentador que seja.
Post Scriptum: esta coluna de 2015 foi escrita em
homenagem aos que sofrem cinco anos na faculdade estudando em (e por)
resumos e resumões e depois… Bom, todos sabem. E depois vem o Exame da
Ordem. E concursos. E advocacia. Mas a vida real não é um quiz show. Não tem múltipla escolha.
Por isso, não me parece que o busílis do problema seja “saber escolher ou não o que fazer na segunda fase” (o artigo que critiquei tratava disso).
Também não adianta estar “focado” ou estar repleto de autoconfiança se
só sabe superficialidades. Autoajuda não encurta orelha. O resto são
consequências, que, como dizia o insigne Conselheiro Acácio, “vem sempre
depois”.
Vejam: escrevi isso em 2015. Em breve tudo isso sai atualizado no livro Ensino Jurídico e(m) Crise – uma radiografia da graduação e da pós-graduação em direito.
Isso. E o BBB? Bom, o Big Brother Brasil está bem na altura da época que vivemos. O BBB, como diz a jornalista Mariliz Pereira Jorge (FSP), o BBB é “o suco do Brasil”. Bingo! E eu acrescento: o BBB
é o Brasil em que o sujeito que nada tem para fazer na vida ou
fracassou, inventa de ser influencer. Dali é um passo para participar de
BBB. Ou ser comentarista de BBB. Ou fazer fofoca sobre BBB. Quanto mais audiência tiver o BBB, mas exsurge a certeza de nosso fracasso. Certa vez Pedro Bial, querendo filosofar, chegou a dizer que o BBB seria algo como Guimarães Rosa… É. Pois é.
E o que o BBB tem a ver com o ensino jurídico?
O que você acha? Leiam a nota no rodapé da coluna. Eis o sintoma.
[1]
O mundo jurídico virou terra sem lei. Inúmeros truques de memorização,
picaretagens das mais variadas pululam nas redes. A mais recente é de um
causídico que nunca foi causídico (como se diz no jargão popular, quem sabe, sabe; quem não sabe, ensina!) lançou um novo elixir da felicidade: você pega uma palestra do YouTube sobre Direito, clica num link que transcreve a palestra e já resume para o preguiçoso ler.
Esse é o suco do Direito brasileiro. O estudante médio quer isso.
Nirvana. Como disse meu amigo Mário Barbosa, lá de Nazaré da Mata,
grande causídico, “não bastasse a técnica para passar no concurso, agora temos a técnica para ter técnica para estudar para passar no concurso”. E piora dia a dia.
Isto é, fracassamos totalmente. Retumbante fracasso.
é professor, parecerista e advogado. Sócio fundador do Streck & Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br